Ivan Junqueira – No Leito Fundo

No leito fundo em que descansas,
em meio às larvas e aos livores,
longe do mundo e dos terrores
que te infundia o aço das lanças;

longe dos reis e dos senhores
que te esqueceram nas andanças,
longe das taças e das danças,
e dos feéricos rumores;

longe das cálidas crianças
que ateavam fogo aos corredores
e se expandiam, quais vapores,
entre as alfaias e as faianças

de tua herdade, cujas flores
eram fatídicas e mansas,
mas que se abriam, fluidas tranças,
quando as tangiam teus pastores;

longe do fel, do horror, das dores,
é que recolho essas lembranças
e as deito agora, já sem cores,
no leito fundo em que descansas.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 09/11/2017

Ivan Junqueira – de “Três Meditações na Corda Lírica”

Only through time time is conquered.
T. S. Eliot, Four Quartets, Burnt Norton, 92

                                  I

Deixa tombar teu corpo sobre a terra
e escuta a voz escura das raízes,
do limo primitivo, da limalha
fina do que é findo e ainda respira.

O que passou (não tanto a treva e a cinza
que os mortos vestem para rir dos vivos)
mais vivo está que toda essa harmonia
de claves e colcheias retorcidas,
mais vivo está porque o escutas limpo,
fora do tempo, mas no tempo audível
de teu olvido, partitura antiga,
para alaúde e lira escrita, timbre
que vibra sem alívio no vazio,
coral de sinos, música de si
mesma esquecida, aquém e além ouvida.

O que passou (à tona, cicatriz)
é dor que nunca dói na superfície,
ao nível do martírio, mas na fibra
da dor que só destila sua resina
quando escondida sob o pó das frinchas
e que, doída assim tão funda e esquiva,
é mais que dor ou cicatriz: estigma
aberto pela morte de outras vidas
nas pálpebras cerradas do existido,
espessa floração de espinhos ígneos,
solstício do suplício, dor a pino
de te saberes resto de um menino
que anoiteceu contigo num jardim
entre brinquedos e vogais partidas.

E tudo é apenas isso, esse fluir
de vozes quebradiças, ida e vinda
de ti por tuas veias e teus rios,
onde o tempo não cessa, onde o princípio
de tudo está no fim, e o fim na origem,
onde mudança e movimento filtram
sua alquimia de vigília e ritmo,
onde és apenas linfa e labirinto,
caminho que retorna ao limo, à fina
limalha do que é findo e ainda respira
para depois, o mesmo, erguer-se a ti,
ao que serás, porque estás vivo aqui,
agora e sempre, antes e após de tudo.

Deixa tombar teu corpo e te acostuma,
húmus, à terra — útero e sepulcro.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 08/11/2017

Ivan Junqueira – Antes que o Sol se Ponha

Antes que o sol se ponha e seja tarde,
e o azul crepuscular me deite a garra,
e eu, nu, retorne à terra sem fanfarra
ou mortalha que o corpo me resguarde;
antes que murche a pétala na jarra,
e eu cale, para sempre, sem alarde,
e tudo o que me coube, por covarde,
não mais recorde a relva que se agarra
às últimas raízes da existência;
antes que eu cerre os olhos e adormeça,
e em minhas próprias células esqueça
as chamas que me arderam na consciência;
antes que a luz regresse e que amanheça,
e eu a mim mesmo já não me conheça.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 06/11/2017

Ivan Junqueira – Lição

À beira do claustro
o monge se inclina
e na pedra aprende
o que a pedra ensina:
que a vida é nada
com a morte por cima,
que o tempo apenas
este fim lhe adia
e que o ser carece
de não ser ainda,
pois à luz se esquiva
do que o purifica:
a doce pedra,
sem musgo ou limo,
o pátio só,
conquanto o sino,
o ermo das coisas
simples e humildes.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 07/11/2017

Ivan Junqueira – Vésperas

A tarde descortina
uma paisagem híspida:
no galho seco, o ninho
é uma inútil relíquia
que a luz do sol calcina
até a estrita cinza.
Gota a gota, o alambique
das horas se esvazia,
e dilui-se a vertigem
do álcool que lhe mordia
as veias retorcidas.
Êxtase da agonia
no crepúsculo a pino.
Sob o céu que definha,
alguém lê, num papiro,
o que afligiu o espírito
de Plotino e Agostinho,
e relembra a lascívia
do fogo que engoliu
Cartago e Alexandria.

Ivan Junqueira – Estamos indo embora

Estamos indo embora. Sobre o piso de ardósia,
por entre caules e corolas que exalam um perfume exótico,
os gatos deslizam. São espíritos leves e sóbrios,
com suas patas de veludo, silenciosas,
que arranham a lombada dos livros e o verniz dos móveis.
Os tapetes abafam seus passos ociosos,
como se faz quando se acolhem os órfãos.

Doze anos se passaram, e estamos indo embora.
A brisa do mar, com seus úmidos braços, nos envolve
e empurra para um outro promontório,
uma outra dimensão de nossa breve história,
de que somos, se tanto, transitórios hóspedes,
peças de um tabuleiro onde o tempo as desloca,
alheio à inútil engrenagem dos relógios,
cujas horas se dissolvem numa névoa incorpórea.

Tanto aqui se escreveu em verso e prosa:
romances, elegias, baladas, novelas e toda uma prole
de rascunhos que iam da perífrase ao apólogo.
Tanto aqui se ouviram o lamento de um fagote,
uma ária de ópera, a lenta pulsação de um órgão,
a inquieta truta de um quinteto de cordas,
essa insistente música que ecoa na memória
e que não pode (nem quer) ir-se embora.
Como estancar as vozes e os acordes
do Réquiem em que Mozart brindou à própria morte?
Como esquecer, Palestrina, teu Kyrie, teu Sanctus, teu Gloria?
Como calar esse jorro de notas, essa clave de sol
na partitura de uma noite em que faz frio e chove?

Estamos indo embora. Passem o trinco nas portas
e tranquem as janelas pelas quais rompia a aurora.
Apaguem-se a lua e as estrelas, o monólogo
do sabiá na varanda, as nervosas
mãos do vento a sacudir os vitrais da abóbada.
Levem tudo: quadros, taças, santos barrocos, oratórios,
todo esse insólito e cediço espólio.
Bebeu-se aqui o álcool da vida até o último gole.
Não se esqueçam da arca que ficou no sótão.
Desliguem a luz (e o gás, senão tudo explode).
Que fique o resto como esmola. Paguem um óbolo
ao barqueiro que nos leva rio afora.
               Estamos indo embora.

Ivan Junqueira – O que sabemos

É quase nada o que sabemos
de nós, do que somos, do frêmito
que nos empurra, débeis duendes,
à cena ambígua da existência.

De onde viemos? Para onde vamos?
Quem nos moldou à sua esplêndida
imagem, se a mão não lhe vemos?
Será mesmo que o fez, consciente

do risco que estava correndo,
da imperdoável imprudência
de dar sopro ao ser cujo empenho
é do deus que o criou ir além,

acuá-lo nas sarças e brenhas
do espírito que, com desdém,
dele duvida e nunca o entende
como algo avesso à estrita ciência?

Quem somos nós? Por que, violentos,
em nossa orgíaca estridência,
não nos curvamos ao silêncio
que pulsa nas sombras de um templo?

Por que nos coube essa doença
de sermos assim tão efêmeros
entre duas datas extremas:
a da morte e a do nascimento?

Pergunto-me às vezes se o engenho
de que, solertes, nos valemos
para negar com veemência
o mistério que nos transcende

não terá sido o tal veneno
que nos fez beber a serpente
a mesma que, pérfida, engendra
a queda com que se abre o Gênesis?

Perguntas sem resposta ou senso,
cinzas que se espalham ao vento,
restos mortais de um frio poente
que nos lançou no esquecimento,

no anódino vaivém de um pêndulo,
à margem daquele supremo
momento para além do tempo
em que ninguém nos mede ou prende.

Não somos nada, e ao nosso exemplo
não cabe pagar nem um cêntimo,
que é o que vale, aliás, nosso sêmen.
É apenas isto o que sabemos.

Ivan Junqueira – O tempo que me resta

Qual o tempo que me resta?
Poderei medi-lo em pétalas
de alguma flor que fenece,
a última da sua espécie?

Poderei fazê-lo em décimos
de um segundo que parece
durar mais do que uma década
ou quem sabe todo um século?

O que é o tempo? Uma névoa
que na ampulheta escorrega,
ou algo que se esfarela
como a areia do deserto?

Será o tempo esse périplo
que não finda nem começa
e que flui antes de que Eva
surgisse de uma costela?

Será ele o tal mistério
de que Agostinho, nas prédicas,
foi o mais cabal intérprete
mas nunca nos disse o que era?

Qual o tempo que me resta?
O de um dia ou o que medra
entre o agora e o que me espera
no sol-posto das exéquias?

Ivan Junqueira – A tua data

Alguém só morre em sua data,
que é única, ôntica, enfática.
Nunca depende de quem vai
nem de quem fica ao pé da lápide.

É quando o corpo, enfim, se acaba,
e, se dele a alma se aparta,
não cabe a ninguém afirmá-lo,
nem se a tinha, em vida, o finado.

É quando as lâmpadas se apagam
e trocam-se então os cenários,
as máscaras, as personagens
e tudo o que havia no palco.

Não mais as luzes da ribalta,
nem da plateia o eco das palmas
ou, no teu caso, as duras vaias
pois que pífio foi o espetáculo.

É quando, tudo terminado,
já não te servem as palavras,
e muito menos as metáforas,
algo impróprias aos epitáfios

ou aos prosaicos obituários
em que tua vida é louvada,
não toda, é claro, pois de lado
ficam os crimes e as trapaças.

Até que vem teu centenário.
Frases, fotos, toda uma farta
recordação do que deixaste:
poemas, ensaios, prefácios,

talvez uma obra laureada,
mas de que hoje ninguém mais fala.
Há quem se lembre de um parágrafo,
de um pobre verso desgarrado.

E o resto – teus feitos, as pálidas
mulheres que amaste, as medalhas,
os troféus – se esvai rumo ao nada
ao som das fanfarras da praça.