Yehuda Amichai – Outra Vez o Amor Terminou

Outra vez o amor terminou, como uma boa safra de laranjas,
ou como uma boa temporada de escavações, que extraiu das profundezas
coisas comovidas que buscavam o esquecimento.

Outra vez o amor terminou. E como depois de se demolir
uma casa grande e retirar os escombros, visitamos
o terreno vazio e quadrado e dizemos: como era pequeno
o lugar onde ficava a casa
com tantos andares e tantas pessoas.

E dos vales distantes chega
o som de um trator solitário,
e do passado distante chega o bater
do garfo no prato de porcelana, misturando
e batendo gema de ovo com açúcar para o menino,
e bate e bate.

Trad.: ?

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 05/02/2017

Francisco Brines – Esplendor negro

Somente uma vez experimentaste aquele Esplendor negro,
e intermitentemente recordas a experiência com imprecisão,
aproximações difusas, iminências,
e assim, desde a tua juventude, arrastas frio
um invisível manto escarlate de cinzas.
E não foi necessário cegar os olhos,
pois das brancas luzes das estrelas
chegou aquele delírio, a possibilidade mais exata e singela:
em vez de Deus ou do mundo
aquele negro Esplendor,
que nem sequer é um ponto, pois não há nele espaço,
nem se pode nomear, porque não se expande.
Serenidade e Vertigem têm o mesmo valor,
pois as palavras já estão ditas desde a aurora da terra,
e as palavras são apenas a expressão de um engano.
Voltar para o centro daquilo é ir para a periferia da vida
sem conhecer a vida, um não-mundo impossível,
pois somente não ter nascido poderia aproximar-te desta experiência.
Criar a inexistência e sua totalidade
não te fez poderoso,
nem derramou teu pranto, e nada redimiste.
A mesma incompreensão ao contemplar o mundo
produziu em ti o terror daquele Esplendor negro,
e aquele desamparo ao cobrirem-te os lençóis.

Trad.: Nelson Santander

Esplendor negro

Sólo una vez pudiste conocer aquel Esplendor negro,
e intermitentemente recuerdas la experiencia con vaguedad,
aproximaciones difusas, inminencias,
y así, desde tu juventud, arrastras frío,
un invisible manto de ceniza escarlata.
Y no fue necesario cegar los ojos,
pues de las luces claras de los astros
llegó el delirio aquel, la posibilidad más exacta y sencilla:
en vez de Dios o el mundo
aquel negro Esplendor,
que ni siquiera es punto, pues no hay en él espacio,
ni se puede nombrar, porque no se dilata.
Valen igual Serenidad y Vértigo,
pues las palabras están dichas desde la noche de la tierra,
y las palabras son tan solo expresión de un engaño.
Volver al centro aquel es ir por las afueras de la vida,
sin conocer la vida, un no mundo imposible,
pues sólo el no nacer te pudiera acercar a esa experiencia.
Crear la inexistencia y su totalidad,
no te hizo poderoso,
ni derramó tu llanto, y nada redimiste.
La misma incomprensión que contemplar el mundo
te produjo el terror de aquel Esplendor negro,
y aquel desvalimiento al cubrirte las sábanas.

Walter de la Mare – Os que Ouviam

‘Tem alguém em casa?’ indagou o Viajante
   Defronte à porta enluarada;
Seu cavalo no silêncio ruminava o capim
   Da forragem fértil e enfolhada:
E uma ave voou para muito além da torre,
   Acima de sua cabeça:
E de novo a porta ele outra vez castigou;
   ‘Tem alguém em casa?’ ele disse.
Mas ninguém desceu para atender o Viajante;
   Do peitoril ninguém nem nada
Inclinou-se para olha-lo nos olhos cinzentos,
   Onde ele estava, pasmo e mudo.
Somente uma horda vigilante de fantasmas
   Que habitava tal casa então
Ficou ouvindo em silêncio, à luz da lua,
   A voz vinda do humano chão:
Imóveis à luz do luar sobre a escada escura
   Que dava num salão sem nada,
Ouvindo, atentos, num ar revolto e agitado
   O apelo que dele emanava.
E sentiu em seu peito como eram diferentes,
   Eles quietos, ele exaltado,
Seu cavalo inquieto a pastar na relva escura,
   Sob o denso céu estrelado;
De repente então ele bateu na porta, ainda
   Mais alto, e a cabeça ergueu: -
‘Diga-lhes que eu vim, e que ninguém me respondeu,
   Que fui correto’, esclareceu.
Nem o menor meneio fizeram os que ouviam,
   Conquanto as palavras cortantes
Ditas rompessem as sombras da casa silente
   Para longe do Viajante:
Sim, eles ouviram seus pés por sobre os estribos,
   Sons de ferraduras no chão,
E o sutil silêncio que suavemente ascendeu,
   Enquanto os cascos se afastavam.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 02/02/2017

Sobre o poeta, o poema e a tradução

Walter de la Mare nasceu em 25 de abril de 1873, em Charlton, Kent, Inglaterra, e morreu em 22 de junho de 1956, em Twickenham, Middlesex, Inglaterra. Começou a escrever por volta de 1890 e nunca mais parou. Sua produção foi enorme, incluindo romances, novelas, contos, poemas, antologias, ensaios, críticas e comentários. Pouco conhecido no Brasil, ele é lembrado, principalmente nos países de língua inglesa, como um poeta das primeiras letras e um contador de histórias de fantasmas, o que, segundo seus críticos, desviaria a atenção da busca espiritual, que é o ponto central da escrita.
O poema acima, com cuja tradução eu contribuí, é o seu trabalho mais conhecido. “The Listeners”, com efeito, figura em inúmeras antologias de poemas e foi, durante décadas, o poema preferido dos professores ingleses para ensinar recitação a seus alunos.
No poema, que foi publicado pela primeira vez em “The Listeners, and Others Poems” (1912), um incógnito viajante chega com seu cavalo a uma casa (castelo? Château?) que parece deserta. Ele bate à porta, mas ninguém responde. Ele insiste, mas os fantasmas que aparentemente ocupam a casa escutam mas nunca respondem aos apelos do Viajante. O viajante insiste, mas ninguém responde. Perplexo, ele volta a bater na porta, com mais força ainda, e, levantando a cabeça grita: “Diga-lhes que eu vim, e que ninguém me respondeu, que fui correto”. Ainda sem respostas, o Viajante vai embora. Os fantasmas ouvem o viajante indo embora e o silêncio que retorna quando os cascos do cavalo se afastam.
Ao final da leitura do poema, inúmeras questões surgem, como bem resumiu Braulio Tavares:
“Que lugar é este? Que mansão é esta? Não sabemos. Vemos o desfecho de uma história que não nos foi contada, mas que ressoa dentro de nós como as batidas do cavaleiro noturno ressoam à porta da casa deserta. Por que esse homem voltou? Por que os fantasmas lá dentro se escondem, silenciam, fazem de conta que não o ouvem chamar? Quem é esse Viajante que vem de tão longe, a essa hora, somente para cumprir uma palavra dada?”
A internet está repleta de interpretações acerca do poema. Há de tudo: o visitante queria dizer aos seus fantasmas – pessoas que ele amava, hoje já mortas – que quitou alguma dívida que tinha para com eles em vida. Que, ao contrário, o viajante é quem seria o fantasma que bate insistentemente à porta da casa sem se fazer ouvir pelos habitantes, pessoas vivas como nós (à semelhança do que ocorre no filme “Os Outros”, de Alejandro Amenábar). Em uma viagem psicanalítica, o viajante seria a voz interior de alguém, tentando nos alertar acerca de algum perigo. Há os que digam também que o poema seria uma metáfora para os mistérios com os quais nos defrontamos na vida, seja como “visitantes”, seja como ouvintes. Nós passaríamos nossas vidas fazendo perguntas, sem nem sempre conseguir obter as respostas.
Não importa a mensagem em si – ou importa, mas apenas para quem lê. O que realmente importa é que, do ponto de vista do fazer poético, o poema é extremamente bem construído. Seu mérito está em conseguir evocar com eficiência uma atmosfera fantasmagórica que permanece no espírito do leitor mesmo depois de horas após a leitura do poema. Para tanto, o autor se vale de todos os recursos poéticos disponíveis – aliterações, anáforas, metáforas, metonímias, paradoxos – que emprestam ao poema uma força insuspeita.
Ao decidir traduzi-lo, procurei na internet em busca de alguma tradução, para fins de comparação. Nada encontrei. Pode até ser que exista, mas não logrei êxito em localizar. Talvez pelo fato do nome do autor não estar no panteon dos grandes poetas, ou pela fama que o poema granjeou como literatura escolar (mal comparando, seria o equivalente, no Brasil, a um poema de J G de Araújo Jorge), o fato é que, aparentemente, ninguém se aventurou a traduzi-lo (se alguém conhecer uma tradução, por favor me mande).
Ao fazê-lo, procurei manter o esquema das rimas (ABCB, DEFE, e assim por diante). Na métrica, enquanto o original segue um esquema não muito rígido e alternado que vai de seis a quatorze sílabas, predominando, quanto ao ritmo, os pés anapestos e jambos, optei por manter um esquema rígido na metrificação (para facilitar para mim, é claro), alternando versos bárbaros de treze sílabas com octassilábicos. Quanto ao ritmo, tentei manter, tanto quanto pude, a opção original pelos anapestos e jambos.

Nelson Santander, 02/02/2017

Gale, Cengage Learning – A Study Guide for Walter de la Mare’s “The Listeners”; https://books.google.com.br/books?id=_7Y3DQAAQBAJ&pg=PT13&dq=the+listeners+la+mare+meter&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwjWlLzv_PHRAhUCgZAKHZ2QCPMQ6AEIGjAA#v=onepage&q=the%20listeners%20la%20mare%20meter&f=false (consultado em 02/02/2017)

Tavares, Braulio. Os que Escutavam. Texto publicado no blog Mundo Fantasmo, do escritor Braulio Tavares. Em http://mundofantasmo.blogspot.com.br/search/label/Walter%20de%20la%20Mare (consultado em 02/02/2017)

O poema original:

Walter de la Mare – The Listeners

‘Is there anybody there?’ said the Traveller,
   Knocking on the moonlit door;
And his horse in the silence champed the grasses
   Of the forest’s ferny floor:
And a bird flew up out of the turret,
   Above the Traveller’s head:
And he smote upon the door again a second time;
   ‘Is there anybody there?’ he said.
But no one descended to the Traveller;
   No head from the leaf-fringed sill
Leaned over and looked into his grey eyes,
   Where he stood perplexed and still.
But only a host of phantom listeners
   That dwelt in the lone house then
Stood listening in the quiet of the moonlight
   To that voice from the world of men:
Stood thronging the faint moonbeams on the dark stair,
   That goes down to the empty hall,
Hearkening in an air stirred and shaken
   By the lonely Traveller’s call.
And he felt in his heart their strangeness,
   Their stillness answering his cry,
While his horse moved, cropping the dark turf,
   ’Neath the starred and leafy sky;
For he suddenly smote on the door, even
   Louder, and lifted his head:—
‘Tell them I came, and no one answered,
   That I kept my word,’ he said.
Never the least stir made the listeners,
   Though every word he spake
Fell echoing through the shadowiness of the still house
   From the one man left awake:
Ay, they heard his foot upon the stirrup,
   And the sound of iron on stone,
And how the silence surged softly backward,
   When the plunging hoofs were gone.

Source: The Collected Poems of Walter de la Mare (1979)

Sobre o poeta, o poema e a tradução

Walter de la Mare nasceu em 25 de abril de 1873, em Charlton, Kent, Inglaterra, e morreu em 22 de junho de 1956, em Twickenham, Middlesex, Inglaterra. Começou a escrever por volta de 1890 e nunca mais parou. Sua produção foi enorme, incluindo romances, novelas, contos, poemas, antologias, ensaios, críticas e comentários. Pouco conhecido no Brasil, ele é lembrado, principalmente nos países de língua inglesa, como um poeta das primeiras letras e um contador de histórias de fantasmas, o que, segundo seus críticos, desviaria a atenção da busca espiritual, que é o ponto central da escrita.
O poema acima, com cuja tradução eu contribuí, é o seu trabalho mais conhecido. “The Listeners”, com efeito, figura em inúmeras antologias de poemas e foi, durante décadas, o poema preferido dos professores ingleses para ensinar recitação a seus alunos.
No poema, que foi publicado pela primeira vez em “The Listeners, and Others Poems” (1912), um incógnito viajante chega com seu cavalo a uma casa (castelo? Château?) que parece deserta. Ele bate à porta, mas ninguém responde. Ele insiste, mas os fantasmas que aparentemente ocupam a casa escutam mas nunca respondem aos apelos do Viajante. O viajante insiste, mas ninguém responde. Perplexo, ele volta a bater na porta, com mais força ainda, e, levantando a cabeça grita: “Diga-lhes que eu vim, e que ninguém me respondeu, que fui correto”. Ainda sem respostas, o Viajante vai embora. Os fantasmas ouvem o viajante indo embora e o silêncio que retorna quando os cascos do cavalo se afastam.
Ao final da leitura do poema, inúmeras questões surgem, como bem resumiu Braulio Tavares:
“Que lugar é este? Que mansão é esta? Não sabemos. Vemos o desfecho de uma história que não nos foi contada, mas que ressoa dentro de nós como as batidas do cavaleiro noturno ressoam à porta da casa deserta. Por que esse homem voltou? Por que os fantasmas lá dentro se escondem, silenciam, fazem de conta que não o ouvem chamar? Quem é esse Viajante que vem de tão longe, a essa hora, somente para cumprir uma palavra dada?”
A internet está repleta de interpretações acerca do poema. Há de tudo: o visitante queria dizer aos seus fantasmas – pessoas que ele amava, hoje já mortas – que quitou alguma dívida que tinha para com eles em vida. Que, ao contrário, o viajante é quem seria o fantasma que bate insistentemente à porta da casa sem se fazer ouvir pelos habitantes, pessoas vivas como nós (à semelhança do que ocorre no filme “Os Outros”, de Alejandro Amenábar). Em uma viagem psicanalítica, o viajante seria a voz interior de alguém, tentando nos alertar acerca de algum perigo. Há os que digam também que o poema seria uma metáfora para os mistérios com os quais nos defrontamos na vida, seja como “visitantes”, seja como ouvintes. Nós passaríamos nossas vidas fazendo perguntas, sem nem sempre conseguir obter as respostas.
Não importa a mensagem em si – ou importa, mas apenas para quem lê. O que realmente importa é que, do ponto de vista do fazer poético, o poema é extremamente bem construído. Seu mérito está em conseguir evocar com eficiência uma atmosfera fantasmagórica que permanece no espírito do leitor mesmo depois de horas após a leitura do poema. Para tanto, o autor se vale de todos os recursos poéticos disponíveis – aliterações, anáforas, metáforas, metonímias, paradoxos – que emprestam ao poema uma força insuspeita.
Ao decidir traduzi-lo, procurei na internet em busca de alguma tradução, para fins de comparação. Nada encontrei. Pode até ser que exista, mas não logrei êxito em localizar. Talvez pelo fato do nome do autor não estar no panteon dos grandes poetas, ou pela fama que o poema granjeou como literatura escolar (mal comparando, seria o equivalente, no Brasil, a um poema de J G de Araújo Jorge), o fato é que, aparentemente, ninguém se aventurou a traduzi-lo (se alguém conhecer uma tradução, por favor me mande).
Ao fazê-lo, procurei manter o esquema das rimas (ABCB, DEFE, e assim por diante). Na métrica, enquanto o original segue um esquema não muito rígido e alternado que vai de seis a quatorze sílabas, predominando, quanto ao ritmo, os pés anapestos e jambos, optei por manter um esquema rígido na metrificação (para facilitar para mim, é claro), alternando versos bárbaros de treze sílabas com octassilábicos. Quanto ao ritmo, tentei manter, tanto quanto pude, a opção original pelos anapestos e jambos.

Nelson Santander, 02/02/2017

Gale, Cengage Learning – A Study Guide for Walter de la Mare’s “The Listeners”; https://books.google.com.br/books?id=_7Y3DQAAQBAJ&pg=PT13&dq=the+listeners+la+mare+meter&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwjWlLzv_PHRAhUCgZAKHZ2QCPMQ6AEIGjAA#v=onepage&q=the%20listeners%20la%20mare%20meter&f=false (consultado em 02/02/2017)

Tavares, Braulio. Os que Escutavam. Texto publicado no blog Mundo Fantasmo, do escritor Braulio Tavares. Em http://mundofantasmo.blogspot.com.br/search/label/Walter%20de%20la%20Mare (consultado em 02/02/2017)

Alberto Ríos – Coelhos e fogo

Tudo já foi dito
Menos uma última coisa – terrível – sobre o
Deserto: durante os incêndios no deserto de Sonora,
Incêndios rasteiros que ocorrem antes das monções e no grande,
Profundo, extenso e sufocante calor dos meses mais quentes,
Os meses mais longos,
Nas hipnóticas e imensuráveis tréguas de agosto e julho —
Durante esses incêndios de verão, lebres —
Lebres e qualquer outra coisa
Que viva nas matas das encostas,
Mas especialmente lebres —
As lebres podem acabar presas entre as chamas,
Não importa quão grandes e velozes e fortes e lisas elas sejam.
E quando são apanhadas,
Acossadas dentro e contra os grossos
Troncos e os finos ferrões dos cactos,
Quando não podem mais recuar,
Quando não podem mais se mover, a chama —
Ela as toca,
E seus pelos pegam fogo.
É claro, elas fogem da chama,
Encontrando força mesmo quando não há nenhuma para ser encontrada,
Dando grandes saltos para o alto sobre a onda de fogo, ou recuando
Ainda mais através do impenetrável
Emaranhado de saguaro endurecido
E figo-da-índia e cholla e espinheiro,
Mas seja qual for o caminho que elas encontram,
O que acontece é o que acontece: elas pegam fogo
E depois levam o fogo com elas quando correm.
No início, elas não sabem que estão pegando fogo,
Correndo tão rápido que fazem as chamas
Explodir como um motor de foguete e fumaça atrás deles,
Mas então as lebres se cansam
E a chama as alcança,
Coladas a elas como os espinhos dos cactos,
Que a princípio deve ser o que elas pensam que sentem em suas peles.
Eles já sentiram isso antes, todos os coelhos.
Mas desta vez a sensação não para.
E, claro, eles incendeiam os arbustos e o capim secos
Mais uma vez, provocando mais fogo, ao redor deles.
Eu lamento pelos coelhos.
E lamento que
Saibamos disso.

Trad.: Nelson Santander

Rabbits and Fire

Everything’s been said
But one last thing about the desert,
And it’s awful: During brush fires in the Sonoran desert,
Brush fires that happen before the monsoon and in the great,
Deep, wide, and smothering heat of the hottest months,
The longest months,
The hypnotic, immeasurable lulls of August and July—
During these summer fires, jackrabbits—
Jackrabbits and everything else
That lives in the brush of the rolling hills,
But jackrabbits especially—
Jackrabbits can get caught in the flames,
No matter how fast and big and strong and sleek they are.
And when they’re caught,
Cornered in and against the thick
Trunks and thin spines of the cactus,
When they can’t back up any more,
When they can’t move, the flame—
It touches them,
And their fur catches fire.
Of course, they run away from the flame,
Finding movement even when there is none to be found,
Jumping big and high over the wave of fire, or backing
Even harder through the impenetrable
Tangle of hardened saguaro
And prickly pear and cholla and barrel,
But whichever way they find,
What happens is what happens: They catch fire
And then bring the fire with them when they run.
They don’t know they’re on fire at first,
Running so fast as to make the fire
Shoot like rocket engines and smoke behind them,
But then the rabbits tire
And the fire catches up,
Stuck onto them like the needles of the cactus,
Which at first must be what they think they feel on their skins.
They’ve felt this before, every rabbit.
But this time the feeling keeps on.
And of course, they ignite the brush and dried weeds
All over again, making more fire, all around them.
I’m sorry for the rabbits.
And I’m sorry for us
To know this.

Paulo Henriques Britto – de “Nenhuma Arte”

Os deuses do acaso dão, a quem nada
lhes pediu, o que um dia levam embora;
e se não foi pedida a coisa dada
não cabe se queixar da perda agora.
Mas não ter tido nunca nada, não
seria bem melhor — ou menos mau?
Mesmo sabendo que uma solidão
completa era o capítulo final,
a anestesia valeria o preço?
(Rememorar o que não foi não dá
em nada. É como enxergar um começo
no que não pode ser senão o fim.
Ontem foi ontem. Amanhã não há.
Hoje é só hoje. Os deuses são assim.)

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 04/02/2017

Lynn Emanuel – Minha vida

Como Jonas pelo peixe, eu fui por ela recebida,
revirada e varrida por suas águas escuras,
por ela conduzida para as profundezas e para além de incontáveis rochas.
Sem ser tocada por seus dentes, caí nela
sem um esforço maior que um grão de areia
entrando pela porta de uma catedral, tão largas eram suas mandíbulas.
Desci, de cabeça e calcanhar,
pela vasta viela de sua goela, parei no interior
do seu peito amplo como um salão, e, como Jonas, me levantei
perguntando onde estava a besta e não a encontrando em lugar nenhum,
ali, de gordura e tristeza, construí meu caramanchão.

Trad.: Nelson Santander
My Life

Like Jonas by the fish was I received by it,
swung and swept in its dark waters,
driven to the deeps by it and beyond many rocks.
Without any touching of its teeth, I tumbled into it
with no more struggle than a mote of dust
entering the door of a cathedral, so muckle were its jaws.
How heel over head was I hurled down
the broad road of its throat, stopped inside
its chest wide as a hall, and like Jonas I stood up
asking where the beast was and finding it nowhere,
there in grease and sorrow I build my bower.

Paulo Henriques Britto – De “Bonbonnière”

I

A seletividade da memória —
a cor exata da pele, a textura,
o odor de cada côncavo e orifício,
o lábio, a língua, o dente, o plexo

solar, a sola do pé, o suor e a
saliva, a coxa arisca, a dobra escura,
o beijo salobro, o sabor difícil,
a carne assombrada, o esperma perplexo

— falsa perfeição, mero artifício
do tempo, a desmaiar todos os tons
do que destoaria do desejo

como um menino a retirar sem pejo
da caixa que lhe deram os bombons
de que ele abre mão sem nenhum sacrifício.

(…)

IV

Só não dói mais porque não é preciso.
Se fosse o caso, a dor era pior.
Não há nada nisso de extraordinário:

A natureza odeia o desperdício,
tal como o vácuo. Sem tirar nem pôr.
É exatamente a conta necessária,

até que alguma solução se encontre.
O que aliás não acontece nunca.
E isso também é natural. No entanto
há sempre um tralalá, um deus, um bálsamo

pra não perder a esperança e o bonde:
A caixa de bombons. A “Marcha húngara”
de Liszt. Ou Brahms. Um dos dois. Ou não. Tanto
faz. A dor continua. Hoje é sábado.

REPUBLICAÇÃO: poemas publicados no blog originalmente em 16 e 17/01/2017

Billy Collins – A vida após a morte

Enquanto você se prepara para dormir, escovando os dentes,
ou folheando uma revista na cama,
os defuntos do dia estão iniciando sua jornada.

Eles se movem em todas as direções imagináveis,
cada qual de acordo com sua crença pessoal,
e este é o segredo que o silencioso Lázaro não quis revelar:
todos estão certos, no fim das contas.
Você vai para o lugar que sempre imaginou que iria,
o lugar que você manteve aceso em uma alcova em sua cabeça.

Alguns estão sendo jogados por um funil de cores cintilantes
para uma zona de luz, branca como um sol de janeiro.
Outros estão nus diante de um juiz intimidante que se senta
com uma escada dourada de um lado e uma calha de carvão do outro.

Alguns já se juntaram ao coro celestial
e cantam como se tivessem feito isto desde sempre,
enquanto os menos inventivos encontram-se presos
em uma grande sala com ar condicionado cheia de coristas e comida.

Alguns se aproximam do apartamento do Deus feminino,
uma mulher na casa dos quarenta com cabelos curtos e crespos
e óculos pendurados no pescoço por um cordão.
Com um dos olhos, ela mira os mortos através de um furo em sua porta.

Há aqueles que se espremem em corpos
de animais – águias e leopardos – e um que experimenta
a pele de um macaco como a um terno apertado,
pronto para começar outra vida em uma chave mais simples,

enquanto outros flutuam em uma espécie de imprecisão benigna,
pequenas unidades de energia rumo ao definitivo lugar.

Há até mesmo alguns classicistas sendo conduzidos ao submundo
por uma mitológica criatura com cascos e barbas.
Ela os levará para a boca da furiosa caverna
guardada por Edith Hamilton1 e seu cão de três cabeças.

Os demais estão deitados de costas em seus caixões
desejando poder voltar para aprender italiano
ou ver as pirâmides, ou jogar um pouco de golfe sob a chuva rala.
Eles gostariam de poder acordar de manhã, como você,
e ficar em uma janela apreciando as árvores de inverno,
cada ramo traçado com a caligrafia fantasmagórica da neve.

(E alguns apenas sorriem, para sempre)

Trad.: Nelson Santander

Nota:

1. Edith Hamilton foi uma educadora, escritora e historiadora americana do Século XX e renomada classicista, frequentemente creditada por haver repopularizado a mitologia clássica 

The Afterlife

While you are preparing for sleep, brushing your teeth,
or riffling through a magazine in bed,
the dead of the day are setting out on their journey.

They’re moving off in all imaginable directions,
each according to his own private belief,
and this is the secret that silent Lazarus would not reveal:
that everyone is right, as it turns out.
You go to the place you always thought you would go,
The place you kept lit in an alcove in your head.

Some are being shot into a funnel of flashing colors
into a zone of light, white as a January sun.
Others are standing naked before a forbidding judge who sits
with a golden ladder on one side, a coal chute on the other.

Some have already joined the celestial choir
and are singing as if they have been doing this forever,
while the less inventive find themselves stuck
in a big air conditioned room full of food and chorus girls.

Some are approaching the apartment of the female God,
a woman in her forties with short wiry hair
and glasses hanging from her neck by a string.
With one eye she regards the dead through a hole in her door.

There are those who are squeezing into the bodies
of animals–eagles and leopards–and one trying on
the skin of a monkey like a tight suit,
ready to begin another life in a more simple key,

while others float off into some benign vagueness,
little units of energy heading for the ultimate elsewhere.

There are even a few classicists being led to an underworld
by a mythological creature with a beard and hooves.
He will bring them to the mouth of the furious cave
guarded over by Edith Hamilton and her three-headed dog.

The rest just lie on their backs in their coffins
wishing they could return so they could learn Italian
or see the pyramids, or play some golf in a light rain.
They wish they could wake in the morning like you
and stand at a window examining the winter trees,
every branch traced with the ghost writing of snow.

(And some just smile, forever on)

Paulo Henriques Britto – De “Biographia Literária”

(…)

ii

Não volta mais, aquele voo cego
rumo ao que nunca esteve lá, porém
só surge em pleno ar. E não renego
a rota tonta que segui. Ninguém
se faz em linhas retas. Todo porto
a que se chega é a meta desejada.
E o caminho tomado, por mais torto,
acaba sempre sendo a exata estrada
a dar naquilo que, afinal, se é.
Assim, todo e qualquer passado, até
o que se esqueceria, se pudesse,
vai pouco a pouco virando uma espécie
de bala que se chupa com deleite,
mesmo se azeda. Isso, chupe. Aproveite.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 14/01/2017

Dorianne Laux – No limite

Depois que sua mãe morrer, você aprenderá a viver
no limite da vida, a se segurar
como ela fazia, uma mão no painel,
a outra agarrando sua bolsa enquanto você
passa pelo sinal de pare, ombros tensos,
olhos totalmente fechados, esperando pela colisão
que não vem. Você aprenderá
a ficar acordada a noite toda sabendo que ela se foi,
vendo a manhã se abrir
como um cisne de origami, o céu,
um caminho se abrindo, a pergunta
que você não pode responder. Na prisão, mulheres
fazem tatuagens com cinzas de cigarro
e xampu. É o que elas têm.
Imagine o peixe, escamas cinzas
e bigodes pretos, crescendo lentamente
em suas costas, seus lábios beijando seu pescoço.
Imagine as letras do nome de sua filha
uma escura corrente ao redor do seu pulso.
Qual é a distância entre este momento
e o último? A última visita e a próxima?
Eu quero minha mãe de volta. Quero
procura-la como ao presente perfeito,
aquele que você busca de loja em loja
até que seus pés o encontrem, delirando com seu cheiro.
Esta é a bagagem de sua vida, um sinal
de sua fé, este permanecer desperto
após a exaustão, esta agulha em sua garganta.

Trad.: Nelson Santander

On the Edge

After your mother dies, you will learn to live
on the edge of life, to brace yourself
like she did, one hand on the dashboard,
the other gripping your purse while you drive
through the stop sign, shoulders tense,
eyes clamped shut, waiting for the collision
that doesn’t come. You will learn
to stay up all night knowing she’s gone,
watching the morning open
like an origami swan, the sky
a widening path, a question
you can’t answer. In prison, women
make tattoos from cigarette ash
and shampoo. It’s what they have.
Imagine the fish, gray scales
and black whiskers, growing slowly
up her back, its lips kissing her neck.
Imagine the letters of her daughter’s name
a black chain around her wrist.
What is the distance between this moment
and the last? The last visit and the next?
I want my mother back. I want
to hunt her down like the perfect gift,
the one you search for from store to store
until your feet ache, delirious with her scent.
This is the baggage of your life, a sign
of your faith, this staying awake
past exhaustion, this needle in your throat.