Miguel Martins – Para o meu pai

Muito poucos foram os dias cuja acidez não tragaste do princípio ao fim,
vinho branco retintado pela morte dos teus sonhos, um a um,
e uma bola de fogo a crescer-te no estômago, uma inteireza brutal,
virada do avesso, como se uma queda tão lenta, tão evidentemente
queda, tão claramente desesperada do futuro, pudesse ser exemplo
para quem nem sequer ouve os tiros e as fábricas de fabricar cadáveres,
ufanos da sua própria falta de desejo. Eu sei, não o duvides, António:
não podias ter vivido de outro modo e, mesmo assim, a vida ficará,
para sempre, a dever-te a maior parte dos teus anos, talvez todos,
menos algumas horas de olhos ancorados entre Jersey e Granville
(onde nunca foste), menos alguns passeios entre a mística flora
intestinal do mundo, menos algumas tardes entre as coxas ardentes
de uma qualquer beirã, cujo nome recordas, e a quem foi dado o dom
de ser mais natural que a pureza dos padres. Apenas por isso escrevo,
agora, este poema e, se quiser pensar, o que não quero, talvez conclua
que já só por ti sujo os dedos de papel: é para tentar pagar-te um pouco
dessa dívida, para imaginar-te a sorrir de olhos fechados,
como quando à memória te acudia o nome de uma gueixa que leras
entre lençóis frios, no tempo em que ainda tinhas fé na madrugada.

Miguel Martins – [Do lado de fora, tudo parece pouco]

Do lado de fora, tudo parece pouco.
Borborinho. Intemperança. Sono.
O rosto não faz prova da memória
mas a memória testemunha a evolução do rosto,
os pares de óculos que por ali passaram,
a fome e o consolo,
o medo,
a morte de cada beijo,
o milagre do seu renascimento
e, por fim, o extremo cansaço,
a gloriosa vitória da derrota.
Por dentro, o tempo acumula-se,
chuva numa piscina abandonada
às sombras de um Inverno
que só se interrompe ante a imensa ternura dos teus olhos
nos dias em que o fogo me consome.

Miguel Martins – Sou eu

são as minhas mãos que tremem até não poder segurar os talheres
sou eu sentado na cama, transido de medo de acordar para viver
sou eu a vomitar de medo como desde os tempos da escola primária
sou eu a driblar o futuro, acabando por sair pela linha lateral
sou eu agora em espasmos, assemelhando-me a um campo de minas
sou eu agarrando-me aos poucos que me disseram alguma coisa
eu tentando não cair, não sabendo como vim parar a esta copa
sou eu com a morte nos olhos que trago dentro dos meus olhos
eu, fidelíssimo traidor, não entendendo porque me achei só
eu a fugir de encontrar-me e sempre na exaustão de me encontrar
eu em cada vivo, em cada morto, em cada esquina da cidade
sou eu não conseguindo adormecer e, adormecendo, não dormindo
sou eu sem saber fugir a uma luxúria que jamais me faz feliz
eu a habitar um corpo doloroso, como semáforo amarelo
eu vendo outra coisa em cada coisa e em tudo palavras de papel
eu carregando o peso do passado sobre um futuro inexorável
eu mais mortal que os mortais e defrontando a imortalidade
sou eu com a cara e a alma à venda nos escaparates insensíveis
eu pedindo esmola a quem despreza o que lhe posso dar
sou eu rindo-me de mim para evitar chorar por tudo o mais
sou eu irremediavelmente sozinho para toda a eternidade
sou eu sem música de fundo, vendo-me num espelho desbotado
sou eu a fumar como se me defumasse para me poder comer
sou eu silenciando um grito por minuto e escrevendo no mel
eu vestindo toda esta nudez, só para só amar a verdade do amor

e se isto é difícil de entender, dizendo-te outra coisa não seria eu.

Miguel Martins – Fine

Os sentimentos são paisagens áridas, imprecisas, tremeluzentes, desconfortáveis.

Dito isto, poderia fechar a porta, correr as grades, trancar o cadeado, dar a loja por encerrada, sem previsões de reabertura.

Fechados lá dentro, os sentimentos, bem, seria como se não existissem.

Talvez morressem, se desidratassem, se pulverizassem, talvez deles restasse apenas uma mancha de gordura no chão.

Em qualquer caso, emudeceriam. Ou não seriam escutados, o que vem a dar ao mesmo.

Nunca contemplei esta hipótese por mais de cinco minutos – certamente, nem tanto.

Não consigo. Não sei. Julgo que, no fundo, é o que menos quero. E que essa é a raiz da minha resistência. Crónica e aguda.

Os sentimentos são onde sei viver, onde me sinto menos morto.

Os sentimentos sou eu.
Os melhores.
Os piores.
O beijo.
A bala.
(Ou vice-vresa).
Todos os nomes da intranquilidade.