Miguel-Manso – Na morte da avó

não bastasse a humilhação pública de morrer
espera-se do corpo que cumpra com indiscutível
pompa o intolerável protocolo de ausentar-se

a penosa execução circular e noturna do velório
a presença inconveniente dos agentes funerários
os adereços lutuosos a obscena maquiagem

no dia seguinte, o inventário das orações, a concisa
cerimônia (não há muito a dizer, sejamos honestos
e soa até a insulto que se pronuncie o nome de

Lázaro) o caixão é fechado, o dia põe-se bonito
– é quase tão imoral como alguém ter trazido uma
gravata com motivos facetos, uma camisa florida –

depois, em casa, parece que as vozes ressoam como numa
sala a que tivessem subtraído os móveis e houvesse, por isso
a estranheza de uma extensão desprovida, dissemelhante

o avô vai buscar as memórias da infância (por que
razão obscura omite ele as lembranças de casado?) há
na sua voz qualquer coisa de paciente melancolia

como se aceitasse, com constrangedora submissão, que
o tempo não se detenha nunca, que os anos nos empurrem
para um buraco na terra, nos sujeitem a tão bruta descortesia

a prontidão da morte, a ligeireza do tempo, a estupidez
da vida que nunca vai encontrar cura e razão para ela própria
contra tudo isso eu alardeio o poema, antecipo a derrota

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 02/11/2018

Miguel-Manso – No número de outubro da revista Wire

frente ao fotógrafo e ao leitor
o homem envelhecido parece que já não olha
Mitra o deus sol dos psicadélicos

noutra foto
no interior da revista o poeta está sentado
a uma pequena mesa de frente para a janela
onde as cortinas brancas filtram
a luz e o ruído da rua

sentado na cadeira de rodas
ele espera dentro da claridade
delicada da manhã

e depois durante a noite

assiste ao que resta do mundo
junto à máquina (a soft machine) de escrever
pousada no tampo (eu ia escrever
no tempo) da mesa

não sei se caem pétalas dentro
do olhar de Robert Wyatt não sei o que escreve
agora na tábua das constelações

essa realidade desabitada dos versos
e dos jardins

Miguel-Manso – Na morte da avó

não bastasse a humilhação pública de morrer
espera-se do corpo que cumpra com indiscutível
pompa o intolerável protocolo de ausentar-se

a penosa execução circular e noturna do velório
a presença inconveniente dos agentes funerários
os adereços lutuosos a obscena maquiagem

no dia seguinte, o inventário das orações, a concisa
cerimônia (não há muito a dizer, sejamos honestos
e soa até a insulto que se pronuncie o nome de

Lázaro) o caixão é fechado, o dia põe-se bonito
– é quase tão imoral como alguém ter trazido uma
gravata com motivos facetos, uma camisa florida –

depois, em casa, parece que as vozes ressoam como numa
sala a que tivessem subtraído os móveis e houvesse, por isso
a estranheza de uma extensão desprovida, dissemelhante

o avô vai buscar as memórias da infância (por que
razão obscura omite ele as lembranças de casado?) há
na sua voz qualquer coisa de paciente melancolia

como se aceitasse, com constrangedora submissão, que
o tempo não se detenha nunca, que os anos nos empurrem
para um buraco na terra, nos sujeitem a tão bruta descortesia

a prontidão da morte, a ligeireza do tempo, a estupidez
da vida que nunca vai encontrar cura e razão para ela própria
contra tudo isso eu alardeio o poema, antecipo a derrota