Javier Salvago – Convém não esquecer

Por esta via
que chamam vida, vamos
com cautela devida,

tal qual um cego.
Mas em cinzas termina
todo e qualquer fogo.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 27/05/2018

Conviene no Olvidarlo

Por esta senda,
que llaman vida, todos
vamos a tientas,

igual que un ciego.
En ceniza terminan
todos los fuegos.

Keisha Cassel – As nove Sinfonias de Beethoven: um estudo de caso

I

E se eu dissesse que nenhuma guerra acontece dramaticamente?

Nem as guerras em sua casa
nem as guerras em seu corpo
todos somos capazes da violência

de destruir todos em nosso caminho por puro prazer
de desmantelar nossos corpos membro por membro até que sejam menos infames
uma vasilha que alguém esteja disposto a segurar

A brutalidade destrói lentamente, auxiliada pela proximidade,
nenhuma guerra acontece dramaticamente.

II

As línguas são pesadas
e a minha fica tropeçando no idioma de estar viva

esta é a parte em que mordo minha língua
até ela cair da minha boca

III Eroica

O Estado cantava suas canções de guerra
e em seu ventre jazia uma ária
que ressoava
como um Tec pelo ar
deixando a praça da cidade
banhada no sangue de seus inimigos.
O que você esperava?

IV

Não fale mal / dos mortos não/ havia ide/ologia a/ rejeitar/ memórias/para reprimir/
sempre o/ sol e nun/ca a lua/ só as pessoas / feriam/ as pessoas Não/ fale mal dos /
mortos.

V Transformação Transfigurativa

Eu sou uma declaração de desprezo satisfeito com feiura
Eu sou um lugar de perdas
Eu sou um lugar de abundância
Eu sou um estudo de como as instituições causam estragos
Eu estou estagnada
Eu sou do Estado

VI Anti-Pastoral

Você quer que eu seja gentil
ao pegar esses homens pelos colarinhos
arrastando-os pela lama, até que
eles sejam algo que valha a pena olhar
fale mais baixo
use amarelo
atraia-os com um sorriso
deixe-os comer em sua mão

VII

3 homens me disseram que era difícil me amar,
a guerra é calcular a vitimização.
No dia de nossa reconciliação, abandonei meu corpo 6 vezes na esperança de esquecer,
a guerra é calcular a vitimização.
“Envie ajuda” rabiscado 10 vezes no verso de um recibo,
a guerra é calcular a vitimização.
10 anos e 5 terapeutas depois ainda me sinto doente,
a guerra está quantificando a vitimização.

VIII

Deus perdoa. Eu não. Meu corpo não é um templo.

IV Ode à Alegria

Oh, que época para estar viva!
Depois de anos esperando ser puxada para o núcleo da terra
enquanto bebia água envenenada por chumbo
Você imaginou que se sentiria tão radiante?
que o sol a beijaria
em vez de acender o fósforo?
O futuro é brilhante! porque você finalmente se comprometeu com o processo de viver
que você sinta mais; que você chore
você encontrará uma vida extraordinariamente comum
você agora tem permissão para correr por aquele campo de flores.

Trad.: Nelson Santander

A Case Study of Beethoven’s Nine Symphonies

I
What if I told you not a single war happens dramatically.

Not the wars in your home
nor the wars on your body
we’re all capable of violence

of destroying everyone in our path for pure pleasure
of dismantling our bodies limb by limb until they’re less shameful
a vessel someone would be willing to hold

Brutality ravages slowly, it is aided by proximity,
not a single war happens dramatically.

II
Tongues are heavy
and mine keeps tripping over the language of being alive

this is the part where I gnaw on my tongue
until it falls from my mouth

III Eroica
The state sang her war songs
and lying dormant in her belly was an aria
that rang out
like a Tec through the air
leaving the town square
bathed in the blood of her enemies.
What did you expect?

IV
Don’t speak ill/ of the dead there/ were no ide/ologies to/ reject no/ memories/to repress/
always the/ sun and nev/er the moon/ only hurt/ people, hurt/ people Don’t/ speak ill of / the
dead.

V Transfigurative Transformation
I am a statement of contempt content with ugliness
I am a site of loss
I am a site of abundance
I am a study of how institutions wreak havoc
I am stagnant
I am of the state

VI Anti-Pastoral
You want me to be gentle
to grab these men by the collar
dragging them through the mud, until
they’re something worth looking at
speak softer
wear yellows
lure them with a smile
let them eat from your hand

VII
3 men told me I was hard to love,
war is quantifying victimhood.
On the day of our reconciliation I left my body 6 times in hopes of forgetting,
war is quantifying victimhood.
“Send help” scribbled 10 times on the back of a receipt,
war is quantifying victimhood.
10 years 5 therapist, I still feel sick,
war is quantifying victimhood.

VIII
God forgives. I don’t. My body is not a temple.

IV Ode to Joy
Oh, what a time to be alive!
After years of waiting to be pulled to earth’s core
while drinking water laced with lead
Did you ever imagine you’d feel so bright?
that the sun would kiss you
instead of igniting the match.
The future is bright! because you’re finally committed to the process of living
may you feel more; may you cry
you will find a life that is extraordinarily ordinary
you now have permission to run through that field of flowers.

Vítor Nogueira – Gelo

Agora é apenas um café com paredes adornadas,
imagens retratando destemidos ancestrais.
O tempo foi passando, não foi? Um acidente
em câmara lenta a uma escala cataclísmica.

Grande parte daquilo que fazemos é construir
memória, uma promessa frágil ao futuro.
E pensar que na vida acumulamos tanta coisa,
sobretudo se por hábito não deitamos nada fora.

Mas ninguém pode travar a grande máquina.
Diz-se que a viagem conta mais do que o destino.
Perscruto as águas envolventes, em busca de
sombras, enquanto o mar revolto bate no casco.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado originalmente em 26/05/2018

Charlotte Mew – Quartos

Lembro-me de quartos que tiveram relação
Com o constante esgotamento do coração.
O quarto em Paris, o quarto em Genebra,
O quarto pequeno e úmido com cheiro de algas
E aquele som da maré, enlouquecedor e perenal —
Quartos onde as coisas morriam — para o bem ou para o mal.
Mas há um quarto onde nós (duas) mortas jazemos,
Embora a cada manhã pareça que despertamos e pareça que de novo repousamos
como o faremos algures no outro catre mais silencioso e poeirento
lá fora, ao sol - ao relento.
Rooms 

I remember rooms that have had their part
In the steady slowing down of the heart.
The room in Paris, the room at Geneva,
The little damp room with the seaweed smell,
And that ceaseless maddening sound of the tide—
Rooms where for good or ill—things died.
But there is the room where we two lie dead,
Though every morning we seem to wake and might just as well seem to sleep again
as we shall somewhere in the other quieter, dustier bed
out there in the sun—in the rain.

Nuno Júdice – Passado

Passou o vento, passou o dia,
passou a noite e a manhã,
passou o tempo, passou a gente,
passou cada hora de amanhã;

passou um canto esquecido
nos cantos de cada passo,
passou ao dizer que passo
sem se lembrar do compasso;

passou a vida como se nada fosse,
só passou e foi-se embora,
passou à pressa, sem demora,
e passou tudo a quem ficou;

e se mais não passou
no fim de tudo ter passado,
foi porque algo se passou
no último passo que foi dado.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 25/05/2018

Ted Kooser – Fazenda Abandonada

Ele era um homem grande, diz o tamanho
dos seus sapatos sobre uma pilha de pratos quebrados junto à casa;
um homem alto também, diz o comprimento da cama
no quarto do andar de cima; e um homem bom e temente a Deus,
diz a Bíblia com a contracapa arruinada
no chão abaixo da janela, empoeirada de sol;
mas não um fazendeiro, dizem os campos
cobertos por pedregulhos e o celeiro com goteiras.

Uma mulher vivia com ele, dizem as paredes do quarto
forradas com lilases e as prateleiras da cozinha
cobertas com oleado, e eles tinham uma criança,
diz a caixa de areia feita de pneu de trator.
O dinheiro era escasso, dizem os frascos de geleia de ameixa
e de tomates em conserva lacrados no buraco do porão.
E os invernos, gelados, dizem os trapos nos caixilhos das janelas.
Era solitário aqui, diz a estreita estrada rural.

Algo deu errado, diz a casa desabitada
no quintal sufocado por ervas daninhas. Pedras nos campos
dizem que ele não era um fazendeiro; os frascos ainda fechados
no porão dizem que ela partiu precipitadamente.
E a criança? Os brinquedos dela estão espalhados pelo quintal
como ramos depois de uma tempestade — uma vaca de borracha,
um trator enferrujado com um arado quebrado,
um boneco de macacão. Algo deu errado, eles dizem.

Trad.: Nelson Santander

Abandoned Farmhouse

He was a big man, says the size of his shoes
on a pile of broken dishes by the house;
a tall man too, says the length of the bed
in an upstairs room; and a good, God-fearing man,
says the Bible with a broken back
on the floor below the window, dusty with sun;
but not a man for farming, say the fields
cluttered with boulders and the leaky barn.

A woman lived with him, says the bedroom wall
papered with lilacs and the kitchen shelves
covered with oilcloth, and they had a child,
says the sandbox made from a tractor tire.
Money was scarce, say the jars of plum preserves
and canned tomatoes sealed in the cellar hole.
And the winters cold, say the rags in the window frames.
It was lonely here, says the narrow country road.

Something went wrong, says the empty house
in the weed-choked yard. Stones in the fields
say he was not a farmer; the still-sealed jars
in the cellar say she left in a nervous haste.
And the child? Its toys are strewn in the yard
like branches after a storm—a rubber cow,
a rusty tractor with a broken plow,
a doll in overalls. Something went wrong, they say.

Manuel António Pina – O Regresso

Como quem, vindo de países distantes fora de
si, chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho.

Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama.
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E come agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 24/05/2018

Peter Sirr – Uma cartilha saxônica

Uma cartilha saxônica

Para além deste afã e deste verso, aguarda-me inesgotável o universo. – Borges

Penso então em Borges ficando cego,
e no que ele disse sobre a alma.
Ele tentava entender por que
um homem que perde o mundo
busca espadas e monstros
e saxões com vozes rudes no Salão de Hidromel1.

É que a alma sabe-se imortal,
diz ele, e seu faminto círculo espiralado
tudo alcança, realiza o que é possível.
Há um tipo de conhecimento secreto
que nos abraça, atinge tudo o que fazemos ou então
tudo o que fazemos é conhecimento e alma.

Além de tudo isso, a gramática suada,
o esforço de conhecer uma coisa após outra,
do outro lado do poema o universo aguarda,
paciente e inesgotável. Repetidamente,
a luz vai desvanecendo de tudo quanto amamos
embora a ela nos voltemos sempre, cantando

para mitigar a escuridão e recolher a luz de volta.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.:

  1. Um salão de festas na antiga Escandinávia e na Europa germânica, que servia também de residência de um senhor e de seus servos. Na mitologia nórdica, a mead hall era o salão onde eventualmente os mortos aportavam assim que deixavam a vida. P. e., o Valhalla.

A Saxon Primer

Más allá de este afán y de este verso me aguarda inagotable el universo. – Borges

Then I think of Borges going blind,
of what he said about the soul.
He was trying to understand
why a man who was losing the world
would seek out swords and monsters,
blunt-voiced Saxons in the mead hall.

It’s that the soul must know it’s immortal,
he said, and its hungry turning circle
takes everything in, achieves all that’s possible.
There’s a kind of secret knowledge
enfolds us, reaches everything we do
or else all we do is the knowledge and the soul.

Beyond all this, the sweated grammar,
the effort to know one thing after another,
on the other side of the poem the universe is waiting,
patient and inexhaustible. Time and again
the light keeps fading from what we love
though we turn and turn to it, singing

to blunt the darkness, to fold the light back in.

Lawrence Ferlinghetti – Café Notre Dame

Uma espécie de trauma sexual
prende um casal abismado
Ele está segurando as duas mãos dela
nas suas
Ela está beijando as mãos dele
Estão olhando-se
nos olhos
de muito perto
Ela tem um casaco de peles
feito duma centena de coelhos correndo
Ele
tem um casaco clássico sombrio
e calças cinza-de-pardo
Agora estão a examinar as palmas
das mãos um do outro
como se fossem mapas de Paris
ou do mundo
como se estivessem à procura do Metrô
que os levasse juntos
através dos caminhos subterrâneos
através das «estações do desejo»
até ao terminal do amor
até às portas da cidade-luz
É um caso sem saída
e estão perdidos
nas linhas cruzadas
das suas palmas enlaçadas
suas linhas de cabeça e linhas de coração
suas linhas de sorte e linhas de vida
ilegíveis e misturadas
no mons veneris
da sua paixão

Trad.: André e Isabelle Lima

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 22/05/2018

Lawrence Ferlinghetti – Café Notre Dame

A sort of sexual trauma
has this couple in its thrall
He is holding both her hands
in both his hands
They are looking
in each other’s eyes
Up close
She has a fur coat
made of a hundred running rabbits
He
is wearing a formal
dark coat and dove grey trousers
Now they are inspecting the palms
of each other’s hands
as if they were maps of Paris
or of the world
as if they were looking for the Metro
that would take them together
through subterranean ways
through the ‘station of desire’
to love’s final terminals
at the ports of the city of light
It is a terminal case
But they are losing themselves
in the crisscrossing lines
of their intertwined palms
their head-lines and their heart-lines
their fate-lines and life-lines
illegibly entangled
in the mons veneris
of their passion

Paulo Henriques Britto – de “Fim de Verão”

VII

Eis que acabou o tempo dos inícios,
tendo durado o exato suficiente
pra formação do hábito (ou vício)
de habitar não um mísero presente,

mas um futuro sempre a exigir
rigorosíssimo planejamento,
até que se escute a ficha cair:
o tempo se esgotou.

                                  Chegou o momento
de enfim viver conforme o planejado,
ou então — se o plano não ficou pronto —
de se pôr todo o projeto de lado

e, improvisando cada gesto e passo,
rodar em círculos, perplexo, tonto,
a repetir o mantra: "Eu sei o que faço".

.....................................................................


XIII

Era o momento? Era. Foi. A hora
exata só se sabe quando já
passou. O tempo nunca se demora
demais. E tudo que acontece está

certo a priori, por definição.
O destino se escreve a posteriori.
A realidade sempre tem razão,
atroz que seja, por mais que piore.

Já o que se esquece deixa de ter sido.
É como uma borracha vindo atrás
do lápis, conservando uma distância

respeitosa, sempre com a mesma ânsia
de apagar. Tinta ou lápis. Tanto faz.
Escreve. Isto também será esquecido.

BRITTO, Paulo Henriques. “Fim de Verão”. In:_ Fim de Verão. São Paulo: Companhia das Letras, 2022