Jorge Luis Borges – Mortes de Buenos Aires

I
La Chacarita

Porque a entranha do cemitério do Sul
foi saciada pela febre amarela até dizer basta;
porque os tugúrios fundos do Sul
lançaram morte sobre a face de Buenos Aires
e porque Buenos Aires não pôde encarar essa morte,
golpes de pá te abriram
na ponta perdida do Oeste,
atrás das tempestades de pó
e do barro pesado e primitivo que moldou os quarteadores.
Ali só existia o mundo
e os costumes das estrelas sobre umas chácaras,
e o trem saía de um galpão em Bermejo
com os esquecimentos da morte:
mortos de barba desabada e olhos desvelados,
mortas de carne desalmada e sem magia.

As trapaças da morte — suja como o nascimento do homem —
continuam multiplicando teu subsolo e assim recrutas
teu cortiço de almas, tua guerrilha clandestina
de ossos
que caem no fundo de tua noite, tão enterrada
quanto as profundezas de um mar.
Uma dura vegetação de restos desolados
investe contra teus paredões intermináveis
cujo sentido é perdição,
e as margens, compenetradas de mortalidade,
apressam sua vida quente a teus pés
em ruas transpassadas por um lampejo pálido de barro
ou se atordoam com desgosto de bandoneões
ou com balidos de cornetas insossas no carnaval.
(A sentença inalterável do destino
que dura em mim eu ouvi nessa noite em tua noite
quando a viola na mão do ribeirinho
disse o mesmo que as palavras, e elas diziam:
A morte é vida vivida,
a vida é morte que vem;
a vida não é outra coisa
senão morte se exibindo.)

Macaco do cemitério, La Quema
gesticula adventícia morte a teus pés.
Gastamos e adoecemos a realidade: 210 carroças
infamam as manhãs, levando
a essa necrópole de fumaça
as coisas cotidianas que contagiamos de morte.
Cúpulas desengonçadas de madeiras e cruzes no alto
se movem — peças pretas de um xadrez final — por tuas ruas
e sua enfermiça majestade vai encobrindo
as vergonhas de nossas mortes.
Em teu disciplinado recinto
a morte é incolor, oca, numérica;
reduz-se a datas e a nomes,
mortes da palavra.

Chacarita:
desaguadouro desta pátria de Buenos Aires, encosta final,
bairro que sobrevives aos outros, que sobremorres,
lazareto que estás nesta morte, não na outra vida,
ouvi tua palavra de caducidade e não acredito nela,
porque tua própria convicção de angústia é ato de vida
e porque a plenitude de uma só rosa é maior que teus mármores.

II
La Recoleta

Aqui a morte é briosa,
é a recatada morte portenha,
a consangüínea da duradoura luz venturosa
do átrio do Socorro
e da cinza minuciosa dos braseiros
e do fino doce de leite dos aniversários
e das fundas dinastias de pátios.
Combinam bem com ela
essas velhas doçuras e também os velhos rigores.

Tua fronte é o pórtico valoroso
e a generosidade de cego da árvore
e a dicção de pássaros que aludem, sem conhecê-la, à morte
e o rufo, endeusador de peitos, dos tambores
nos enterros militares;
teu dorso, os tácitos cortiços do norte
e o paredão das execuções de Rosas.

Cresce em dissolução sob os sufrágios de mármore
a nação irrepresentável de mortos
que se desumanizaram em tua treva
desde que María de los Dolores Maciel, menina do Uruguai
— semente de teu jardim para o céu —
adormeceu, definhada, em teu descampado.

Mas eu quero demorar-me no pensamento
das flores leves que são teu comentário piedoso
— chão amarelo sob as acácias de tua encosta,
flores içadas para comemorar em teus mausoléus —
e no porquê de seu viver belo e adormecido
junto às terríveis relíquias dos que amamos.

Falei do enigma e direi também sua palavra:
as flores sempre vigiaram a morte,
porque nós, homens, sempre soubemos, de um modo incompreensível
que seu existir adormecido e belo
é o que melhor pode acompanhar os que morreram
sem ofendê-los com soberba de vida,
sem ser mais vida que eles.

Trad.: Josely Vianna Baptista

Muertes de Buenos Aires

I

La Chacarita

Porque la entraña del cementerio del sur
fue saciada por la fiebre amarilla hasta decir basta;
porque los conventillos hondos del sur
mandaron muerte sobre la cara de Buenos Aires
y porque Buenos Aires no pudo mirar esa muerte,
a paladas te abrieron
en la punta perdida del oeste,
detrás de las tormentas de tierra
y del barrial pesado y primitivo que hizo a los cuarteadores.

Allí no había mas que el mundo
y las costumbres de las estrellas sobre unas chacras,
y el tren salía de un galón en Bermejo
con los olvidos de la muerte:
muertos de barba derrumbada y ojos en vela,
muertas de carne desalmada y sin magia.

Trapacerías de la muerte -sucia como el nacimiento del hombre-
siguen multiplicando tu subsuelo y asi reclutas
tu conventillo de ánimas, tu montonera clandestina de huesos
que caen al fondo de tu noche enterrada
lo mismo que a la hondura del mar.

Una dura vegetación de sobras en pena
hace fuerza contra tus paredones interminables
cuyo sentido es la perdición,
y convencidas de mortalidad las orillas
apuran su caliente vida a tus pies
en calles traspasadas por una llamarada baja de barro
o se aturden con desgano de bandoneones
o con balidos de cornetas sonsas de carnaval.

(El fallo de destino más para siempre,
que dura en mí lo escuche esa noche en tu noche
cuando la guitarra bajo la mano del orillero
dijo lo mismo que las palabras, y ellas decían:
La muerte es vida vivida
la vida es muerte que viene;
la vida no es otra cosa
que muerte que anda luciendo.)

Mono del cementerio, la Quema
gesticula advenediza muerte a tus pies.
Gastamos y enfermamos la realidad: 210 carros
infaman las mañanas, llevando
a esa necrópolis de humo
las cotidianas cosas que hemos contagiado de muerte.

Cúpulas estrafalarias de madera y cruces en alto
se mueven -piezas negras de un ajedrez final- por tus calles
y su achacosa majestad va encubriendo
las vergüenzas de nuestras muertes.

En tu disciplinado recinto
la muerte es incolora, hueca, numérica;
se disminuye a fechas y a nombres,
muertes de la palabra.

Chacarita:
desaguadero de esa patria de Buenos Aires, cuesta final,
barrio que sobrevives a los otros, que sobremueres,
lazareto que estas en esta muerte no en la otra vida,
he oído tu palabra de caducidad y no creo en ella,
porque tu misma convicción de angustia es acto de vida
y porque la plenitud de una sola rosa es más que
tus mármoles.

II

La Recoleta

Aquí es pundonorosa la muerte
aquí es la recatada muerte porteña,
la consanguínea de la duradera luz venturosa
del atrio del Socorro
y de la ceniza minuciosa de los braseros
y del fino dulce de leche de los cumpleaños
y de las hondas dinastías de los patios.
Se acuerdan bien con ella
esas viejas dulzuras y también los viejos rigores.

Tu frente es el pórtico valeroso
y la generosidad de ciego del árbol
y la dicción de pájaros que aluden, sin saberla, a la muerte
y el redoble, endiosador de pechos, de los tambores
en los entierros militares;
tu espalda, los tácitos convetillos del norte
y el paredón de las ejecuciones de Rosas.

Crece en disolución bajo los sufragios de mármol
la nación irrepresentable de los muertos
que se deshumanizaron en tu tiniebla
desde que María de los Dolores Maciel, niña del Uruguay
-simiente de tu jardín para el cielo-
se durmió, tan poca cosa, en tu descampado.

Pero yo quiero demorarme en el pensamiento
de las livianas flores que son tu comentario piadoso
-suelo amarillo bajo las acacias de tu costado,
flores izadas a conmemoración en tus mausoleos-
y el porqué de su vivir gracioso y dormido
junto a las terribles reliquias de los que amamos.

Dije el enigma y diré también su palabra:
siempre las flores vigilaron la muerte,
porque siempre los hombres incomprensiblemente supimos
que su existir dormido y gracioso
es el que mejor puede acompañar a los que murieron
sin ofenderlos con soberbia de vida,
sin ser mas vida que ellos.

Fernando Pessoa – No Túmulo de Christian Rosencreutz

NO TÚMULO DE CHRISTIAN ROSENCREUTZ

      Não tínhamos ainda visto o cadáver de nosso Pai prudente e sábio. Por isso afastámos para um lado o altar. Então pudemos levantar uma chapa forte de metal amarelo, e ali estava um belo corpo célebre, inteiro e incorrupto…, e tinha na mão um pequeno livro em pergaminho, escrito a oiro, intitulado T., que é, depois da Bíblia, o nosso mais alto tesouro nem deve ser facilmente submetido à censura do mundo.
          Fama fraternitatis roseae crucis.

I

Quando, despertos deste sono, a vida,
Soubermos o que somos, e o que foi
Essa queda até Corpo, essa descida
Até à Noite que nos a Alma obstrui,

Conheceremos pois toda a escondida
Verdade do que é tudo que há ou flui?
Não: nem na Alma livre é conhecida…
Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui.

Deus é o Homem de outro Deus maior:
Adam Supremo, também teve Queda;
Também, como foi nosso Criador;

Foi criado, e a Verdade lhe morreu…
De além o Abismo, Espírito Seu, Lha veda;
Aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.

II

Mas antes era o Verbo, aqui perdido
Quando a Infinita Luz, já apagada
Do Caos, chão do Ser, foi levantada
Em Sombra, e o Verbo ausente escurecido.

Mas se a Alma sente a sua forma errada,
Em si, que é Sombra, vê enfim luzido
O Verbo deste Mundo, humano e ungido.
Rosa Perfeita, em Deus crucificada.

Então, senhores do limiar dos Céus,
Podemos ir buscar além de Deus
O Segredo do Mestre e o Bem profundo;

Não só de aqui, mas já de nós, despertos,
No sangue actual de Cristo enfim libertos
Do a Deus que morre a geração do Mundo.

III

Ah, mas aqui, onde irreais erramos,
Dormimos o que somos, e a verdade,
Inda que enfim em sonhos a vejamos,
Vemo-la, porque em sonho, em falsidade.

Sombras buscando corpos, se os achamos
Como sentir a sua realidade?
Com mãos de sombra, Sombras, que tocamos?
Nosso toque é ausência e vacuidade.

Quem desta Alma fechada nos liberta?
Sem ver, ouvimos para além da sala
De ser; mas como, aqui, a porta aberta?

……

Calmo na falsa morte a nós exposto,
O Livro ocluso contra o peito posto,
Nosso Pai Roseacruz conhece e cala.

César Vallejo – Os passos distantes

  Meu pai dorme. Seu semblante augusto
exprime um tranquilo coração;
está agora tão doce…
se há algo nele de amargo, serei eu.

  Há solidão no lar; se reza;
e não há notícias das crianças hoje.
Meu pai desperta, ausculta
a fuga para o Egito, o último adeus.

  Está agora tão perto;
se há algo nele de ausente, serei eu.
e minha mãe passeia entre os pomares,
saboreando um sabor já sem sabor.
Está agora tão suave,
tão alada, tão fugidia, tão amorosa.

  Há solidão no lar sem algazarra,
sem novidades, sem o verde, sem infância.
E se há algo partido nesta tarde,
e que encolhe e que range,
são dois velhos caminhos brancos, curvos.
Por eles, caminha a pé meu coração.

Trad.: Nelson Santander

Los pasos lejanos

  Mi padre duerme. Su semblante augusto
figura un apacible corazón;
está ahora tan dulce…
si hay algo en él de amargo, seré yo.

  Hay soledad en el hogar; se reza;
y no hay noticias de los hijos hoy.
Mi padre se despierta, ausculta
la huida a Egipto, el restañante adiós.

  Está ahora tan cerca;
si hay algo en él de lejos, seré yo.
Y mi madre pasea allá en los huertos,
saboreando un sabor ya sin sabor.
Está ahora tan suave,
tan ala, tan salida, tan amor.

  Hay soledad en el hogar sin bulla,
sin noticias, sin verde, sin niñez.
Y si hay algo quebrado en esta tarde,
y que baja y que cruje,
son dos viejos caminos blancos, curvos.
Por ellos va mi corazón a pie.

Rainer Maria Rilke – Torso arcaico de Apolo

Não conhecemos sua cabeça inaudita
Onde as pupilas amadureciam. Mas
Seu torso brilha ainda como um candelabro
No qual o seu olhar, sobre si mesmo voltado

Detém-se e brilha. Do contrário não poderia
Seu mamilo cegar-te e nem à leve curva
Dos rins poderia chegar um sorriso
Até aquele centro, donde o sexo pendia.

De outro modo erguer-se-ia esta pedra breve e mutilada
Sob a queda translúcida dos ombros
E não tremeria assim, como pele selvagem.

E nem explodiria para além de todas as suas fronteiras
Tal como uma estrela. Pois nela não há lugar
Que não te mire: Precisas mudar de vida.

Trad.: Mário Faustino

Archaïscher Torso Apollos

Wir kannten nicht sein unerhörtes Haupt,
darin die Augenäpfel reiften. Aber
sein Torso glüht noch wie ein Kandelaber,
in dem sein Schauen, nur zurückgeschraubt,

sich hilt and glänzt. Sonst könnte nicht der Bug
der Brust dich blenden, and im leisen Drehen
der Lenden könnte nicht ein Lächeln gehen
zu jener Mitte, die die Zeugung trug.

Sonst stünde dieser Stein entstellt and kurz
unter der Schultern durchsichtigem Sturz
and flimmerte nicht so wie Raubtierfelle;

und bräche nicht aus alien seinen Rändern
aus wie ein Stern: denn da ist keine Stelle,
die dich nicht sieht. Du musst dein Leben ändern.

Jorge Luis Borges – A noite que no sul o velaram

A noite que no sul o velaram

                    para Letizia Álvarez de Toledo

Pelo passamento de alguém
— mistério cujo desconhecido nome possuo e cuja realidade
não abarcamos —
há até o alvorecer uma casa aberta no Sul,
uma casa ignorada que não estou destinado a rever,
mas que me espera esta noite
com tresnoitada luz nas altas horas do sono,
consumida por noites em claro, diferente,
minuciosa de realidade.

Para sua vigília que gravita em morte caminho
por ruas elementares como lembranças,
pelo tempo exuberante da noite,
sem outra vida audível
que não os vadios do bairro junto ao armazém apagado
e algum assovio perdido no mundo.

O andar lento, na posse da espera,
chego à quadra e à casa e à singela porta que busco
e me recebem homens constrangidos à seriedade
que viveram na época de meus antepassados,
e nivelamos destinos no aposento arrumado que dá para
o pátio
— pátio que está sob o poder e na integridade
da noite —
e dizemos, porque a realidade é maior, coisas indiferentes
e somos apáticos e argentinos no espelho
e o mate compartilhado mede horas vãs.

Comovem-me as miúdas sabedorias
que em todo falecimento se perdem
— hábito de alguns livros, de uma chave, de um corpo
entre os outros —
Eu sei que todo privilégio, embora obscuro, é da linhagem
do milagre
e é grande o de participar desta vigília,
reunida ao redor do que não se sabe: do Morto,
reunida para acompanhar e guardar sua primeira noite
na morte.

(O velório gasta os rostos;
nossos olhos estão morrendo no alto como Jesus.)

E o morto, o incrível?
Sua realidade está sob as flores diferentes dele
e sua mortal hospitalidade vai nos dar
uma lembrança a mais para o tempo
e sentenciosas ruas do Sul para merecê-las devagar
e brisa obscura sobre a fronte que se volta
e a noite que nos livra da maior angústia:
a prolixidade do real.

Trad.: Davi Arrigucci Jr., Heloisa Jahn e Josely Vianna Baptista

 

La noche que en el Sur lo velaron

                    A Letizia Álvarez de Toledo

Por el deceso de alguien
– misterio cuyo vacante nombre poseo y cuya reali-
dad no abarcamos –
hay hasta el alba una casa abierta en el Sur,
una ignorada casa que no estoy destinado a rever,
pero que me espera esta noche
con desvelada luz en las altas horas del sueño,
demacrada de malas noches, distinta,
minuciosa de realidad.

A su vigilia gravitada en muerte camino
por las calles elementales como recuerdos,
por el tiempo abundante de la noche,
sin más oíble vida
que los vagos hombres de barrio junto al apagado
almacén
y algún silbido solo en el mundo.

Lento el andar, en la posesión de la espera,
llego a la cuadra y a la casa y a la sincera puerta que
busco
y me reciben hombres obligados a gravedad
que participaron de los años de mis mayores,
y nivelamos destinos en una pieza habilitada que mira
al patio
-patio que est?bajo el poder y en la integridad de la
noche-
y decimos, porque la realidad es mayor, cosas indife-
rentes
y somos desganados y argentinos en el espejo
y el mate compartido mide horas vanas.

Me conmueven las menudas sabidurías
que en todo fallecimiento de hombres se pierden
-hábito de unos libros, de una llave, de un cuerpo
entre los otros-
frecuencias irrecuperables que fueron
la precisión y la amistad del mundo para él.
Yo s?que todo privilegio, aunque oscuro, es de linaje
de milagro
y mucho lo es el de participar en esta vigilia,
reunida alrededor de lo que no se sabe: del muerto,
reunida para incomunicar y guardar su primera noche
en la muerte.

(El velorio gasta las caras;
los ojos se nos están muriendo en lo alto como Jesús).

¿Y el muerto, el increíble?
Su realidad est?bajo las flores diferentes de él
y su mortal hospitalidad nos dar?
un recuerdo más para el tiempo
y sentenciosas calles del Sur para merecerlas despacio
y brisa oscura sobre la frente que vuelve
y la noche que de la mayor congoja nos libra:
la prolijidad de lo real.

Charles Bukowski – Manual de Combate

Eles chamaram Celine de nazista
eles chamaram Pound de fascista
eles chamaram Hamsun de nazista
eles puseram Dostoiévski diante de um esquadrão
de fuzilamento
e você sabe que eles atiraram em Lorca
submeteram Hemingway a tratamento de choque
e você sabe que ele se matou
e eles levaram Villon para fora da cidade (Paris)
e Mayakovsky
se desiludiu com o regime
e depois de uma desavença amorosa
bem
ele se matou.
Chatterton ingeriu veneno de rato
e funcionou.
e alguns dizem que Malcom Lowy morreu
afogado no próprio vômito
enquanto estava bêbado.
Crane tomou o rumo da hélice
do navio ou dos tubarões.

Era escuro o sol de Harry Crosby.
Berryman preferiu a ponte.
Plath não acendeu o forno.

Pascal cortou seus pulsos na
banheira (é melhor assim:
na água morna).
Thomas e Behan beberam
até a morte.
há muitos outros
e você quer ser um
escritor?
é esse tipo de guerra,
sabe:
criação mata;
muitos enlouquecem,
alguns perdem o rumo e
não conseguem
prosseguir.
uns poucos chegam à velhice.
uns poucos fazem dinheiro.
uns passam fome (como Vallejo).
é esse tipo de guerra:
baixas por todo lado.

tudo bem, vá em frente
mas quando eles o descartarem
pelo seu ponto fraco
não me venha com os seus
problemas

eu datilografei isso esta noite
sobre a mesa da cozinha
enquanto ouvia
Music for the Royal Fireworks
de Handel.

agora vou fumar um cigarro
na banheira
e depois vou
dormir.

Trad.: Nelson Santander

combat primer

they called Celine a Nazi
they called Pound a fascist
they called Hamsun a Nazi
they put Dostoevsky in front of a firing
squad
and you know they shot Lorca
gave Hemingway shock treatments
and you know he shot himself
and they ran Villon out of town (Paris)
and Mayakovsky
disillusioned with the regime
and after a lover’s quarrel
well
he shot himself.
Chatterton took rat poison
and it worked.
and some say Malcom Lowry died
swallowing his own vomit
while drunk.
Crane went the way of the boat
propellor or the sharks.

Harry Crosby’s sun was black.
Berryman preferred the bridge.
Plath didn’t light the oven.

Pascal cut his wrists in the
bathtub (it’s best that way:
in warm water).
Thomas and Behan drank themselves
to death.
there are many others
and you want to be a
writer?
it’s that kind of war,
you know:
creation kills;
many go mad,
some lose the way and
can’t do it
anymore.
a few go into old age.
a few make money.
some starve (like Vallejo).
it’s that kind of war:
casualties everywhere.

all right, go ahead
but when they sandbag you
from the blind side
don’t come to me with your
troubles.

I typed this tonight
on this kitchen table
while listening to
Music for the Royal Fireworks
by Handel.

now I’m going to smoke a cigarette
in the bathtub
and then I’m going to
sleep.

Ferreira Gullar – Reflexão sobre o osso da minha perna

A parte mais durável de mim
    são os ossos
    e a mais dura também

como, por exemplo, este osso
    da perna
    que apalpo
    sob a macia cobertura

ativa
de carne e pele
    que o veste e inteiro
    me reveste
    dos pés à cabeça
         esta vestimenta
         fugaz e viva

sim, este osso
a mais dura parte de mim
dura mais do que tudo o que ouço
e penso
mais do que tudo o que invento
e minto
este osso
    dito perônio

é, sim,
a parte mais mineral
e obscura
de mim
já que à pele
e à carne
    irrigam-nas o sonho e a loucura

têm, creio eu,
algo de transparente
e dócil
tendem a solver-se
a esvanecer-se
    para deixar no pó da terra

o osso
o fóssil

    futura
    peça de museu

    o osso
    este osso
    (a parte de mim
    mais dura
    e a que mais dura)
    é a que menos sou eu?

Jane Hirschfield – Meu esqueleto

Meu esqueleto,
que um dia doeu
com o próprio crescimento,

está agora,
a cada ano
imperceptivelmente menor,
mais leve,
absorvido por sua própria
concentração.

Quando eu dancei,
você dançou.
Quando você quebrou,
eu.

E assim foi, deitando,
caminhando,
subindo os fatigantes degraus.
Seus maxilares. Meu pão.

Algum dia você,
o que resta de você,
será extirpado deste casamento.

Artrite dos ossos do pulso,
harpa trincada da caixa torácica,
ponta partida do calcanhar,
exposta cavidade do crânio,
pratos gêmeos da pélvis –
cada pedaço seu me deixará para trás,
afinal serena.

O que sabia eu de seus dias,
suas noites,
eu que o segurei por toda minha vida
em minhas mãos
e pensei que elas estivessem vazias?

Você que me segurou a vida toda
em suas mãos
como uma mãe recente
segura seu próprio filho indefeso,
sem pensar em nada.

Trad.: Nelson Santander

My skeleton

My skeleton,
who once ached
with your own growing larger,

are now,
each year
imperceptibly smaller,
lighter,
absorbed by your own
concentration.

When I danced,
you danced.
When you broke,
I.

And so it was lying down,
walking,
climbing the tiring stairs.
Your jaws. My bread.

Someday you,
what is left of you,
will be flensed of this marriage.

Angular wristbone’s arthritis,
cracked harp of rib cage,
blunt of heel,
opened bowl of the skull,
twin platters of pelvis—
each of you will leave me behind,
at last serene.

What did I know of your days,
your nights,
I who held you all my life
inside my hands
and thought they were empty?

You who held me all your life
in your hands
as a new mother holds
her own unblanketed child,
not thinking at all.

Louise Glück – Nostos

Havia uma macieira no quintal –
isso teria sido há
quarenta anos – nos fundos,
apenas prados. Excesso
de crocus na relva úmida
Eu estava naquela janela:
fim de abril. Flores
da primavera no quintal do vizinho.
Quantas vezes, realmente, a árvore
floresceu no meu aniversário,
no dia exato, nem antes
nem depois? Substituição
do imutável
por transformação, por evolução.
Substituição da imagem
pela terra implacável. O que
sei eu deste lugar,
o papel que foi da árvore por décadas
desempenhado por um bonsai, vozes
subindo das quadras de tênis –
Campos. Cheiro de grama alta, recém
cortada.
Como se espera de um poeta lírico.
Nós vemos o mundo uma única vez, na infância.
O resto é memória.

Trad.: Nelson Santander

Nostos

There was an apple tree in the yard —
this would have been
forty years ago — behind,
only meadows. Drifts
of crocus in the damp grass.
I stood at that window:
late April. Spring
flowers in the neighbor’s yard.
How many times, really, did the tree
flower on my birthday,
the exact day, not
before, not after? Substitution
of the immutable
for the shifting, the evolving.
Substitution of the image
for relentless earth. What
do I know of this place,
the role of the tree for decades
taken by a bonsai, voices
rising from the tennis courts —
Fields. Smell of the tall grass, new cut.
As one expects of a lyric poet.
We look at the world once, in childhood.
The rest is memory.

Denise Levertov – Naquele dia

Do outro lado de um lago na Suíça, cinquenta anos atrás,
a luz duelava com uma longa lança, esgrimindo com sabres
de um lado para o outro entre picos nublados e colinas.
Observávamos de um pequeno pavilhão, minha mãe e eu,
fascinadas.
E então, eis que um feixe, uma coluna,
um corpo definido, não de luz mas de chuva prateada,
se formou e partiu da costa distante, deixou para trás
as fintas e investidas silenciosas, e avançou
firmemente, a um ritmo constante,
em nossa direção.
Eu conhecia aquilo! Eu já vira aquilo! Não a sensação
de déjà vu: era a visão de Blake em aquarela,
‘O Espírito de Deus Movendo-se sobre a Face das Águas’!
A coluna avançava firmemente
através do lago em nossa direção; em ambos os lados
não havia chuva. Levantamo-nos, sem fôlego –
e então ela nos atingiu, apanhou-nos
em seu véu de prata, envolveu-nos
na melhor trama molhada
e rimos de alegria, maravilhadas.

Trad.: Nelson Santander

That day

Across a lake in Switzerland, fifty years ago,
light was jousting with long lances, fencing with broadswords
back and forth among cloudy peaks and foothills.
We watched from a small pavilion, my mother and I,
enthralled.
And then, behold, a shaft, a column,
a defined body, not of light but of silver rain,
formed and set out from the distant shore, leaving behind
the silent feints and thrusts, and advanced
unswervingly, at a steady pace,
toward us.
I knew this! I’d seen it! Not the sensation
of déjà vu: it was Blake’s inkwash vision,
‘The Spirit of God Moving Upon the Face of the Waters’!
The column steadily came on
across the lake toward us; on each side of it,
there was no rain. We rose to our feet, breathless —
and then it reached us, took us
into its veil of silver, wrapped us
in finest weave of wet,
and we laughed for joy, astonished.