Nuno Júdice – Como Aves, Cuja Passagem

Como sombras passaram entre nós,
como sombras. Uma vez perante alguns amigos
e desconhecidos, afirmei conhecê-los e citei
os seus nomes. Mas o que não correspondia
a um acto heroico, nada significava
hoje, mesmo entre amigos e desconhecidos.
Só se eu próprio
me tornar uma sombra, e também eu passar
a uma outra vida. Durante algum tempo
alguém falará de mim dizendo “conheci-o”,
ou “há tanto tempo falei com ele”. Mas
em breve outros se tornarão sombras,
e depois outros, até que o meu gesto
se confunda com esses, e todos por fim
se dissipem na obscuridade do tempo
passado.

Nuno Júdice (1949 — 2024)

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Nuno Júdice – Outra Imagem

Conheço o mundo dos mortos. É frio, com terra
Por cima, restos de tábuas, ossos desfeitos pelos invernos.
Os mortos vêem-nos; de onde eles estão, eles chamam pelos nomes
Familiares, num murmúrio, e o vento dispensa-lhes os sopros
– música de ciprestes. Por isso há quem ande entre as campas
ao fim da tarde, com os ouvidos tapados; quem reze,
entre lábios, datas estéreis como as antigas pedras;
quem persiga a própria sombra, temendo que ela desapareça
sob a erva fresca. Memórias vagas e finais, atormentando-me
num secreto espelho – no canto de mim, absorto
e pálido, quem me diz o nome em silêncio, sem olhos,
sem lábios, sem os cabelos que outrora toquei?

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 15/10/2018

Nuno Júdice – Carpe Diem

Confias no incerto amanhã? Entregas
às sombras do acaso a resposta inadiável?
Aceitas que a diurna inquietação da alma
substitua o riso claro de um corpo
que te exige o prazer? Fogem-te, por entre os dedos,
os instantes; e nos lábios dessa que amaste
morre um fim de frase, deixando a dúvida
definitiva. Um nome inútil persegue a tua memória,
para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém,
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias;
e abraças a própria figura do vazio. Então,
por que esperas para sair ao encontro da vida,
do sopro quente da primavera, das margens
visíveis do humano? “Não”, dizes, “nada me obrigará
à renúncia de mim próprio — nem esse olhar
que me oferece o leito profundo da sua imagem!”
Louco, ignora que o destino, por vezes,
se confunde com a brevidade do verso.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 06/08/2018

Nuno Júdice – Fotografia

Naquilo a que o jornal chama um nu sulfuroso de
atget (1925) a mulher está de gatas em cima da cama,
e olha para trás, de esguelha, como se quisesse
mostrar-se ao fotógrafo, por um lado, e esconder-se
de nós, por outro. Mas quando a olhamos, adivinha-se
um sorriso que, não se sabe porquê, se esbate com
essa espécie de névoa com que o tempo envolve
as fotografias antigas, a sépia, em que não é
possível disfarçar a certeza que temos de que aquela
mulher, hoje, não passa de cinza nalgum canto
de cemitério de província. Porém, a sua nudez
desafia a morte; e quase que lhe podíamos pedir
que esqueça o fotógrafo, e regresse à realidade
onde ele a foi descobrir, para que a sua vida
retome o curso habitual, e não nos perturbe com
esse sentimento de que a vida é breve, e já foi.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 16/07/2023

Nuno Júdice – Réquiem por Muitos Maios

Conheci tipos que viveram muito. Estão
mortos, quase todos: de suicídio, de cansaço.
de álcool, da obrigação de viver
que os consumia. Que ficou das suas vidas? Que
mulheres os lembram com a nostalgia
de um abraço? Que amigos falam ainda, por vezes,
para o lado, como se eles estivessem à sua
beira?

No entanto, invejo-os. Acompanhei-os
em noites de bares e insónia até ao fundo
da madrugada; despejei o fundo dos seus copos,
onde só os restos de vinho manchavam
o vidro; respirei o fumo dessas salas onde as suas
vozes se amontoavam como cadeiras num fim
de festa. Vi-os partir, um a um, na secura
das despedidas.

E ouvi os queixumes dessas a quem
roubaram a vida. Recolhi as suas palavras em versos
feitos de lágrimas e silêncios. Encostei-me
à palidez dos seus rostos, perguntando por eles – os
amantes luminosos da noite. O sol limpava-lhes
as olheiras; uma saudade marítima caía-lhes
dos ombros nus. Amei-as sem nada lhes dizer – nem do amor,
nem do destino desses que elas amaram.

Conheci tipos que viveram muito – os
que nunca souberam nada da própria vida.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 14/06/2018

Nuno Júdice – Passado

Passou o vento, passou o dia,
passou a noite e a manhã,
passou o tempo, passou a gente,
passou cada hora de amanhã;

passou um canto esquecido
nos cantos de cada passo,
passou ao dizer que passo
sem se lembrar do compasso;

passou a vida como se nada fosse,
só passou e foi-se embora,
passou à pressa, sem demora,
e passou tudo a quem ficou;

e se mais não passou
no fim de tudo ter passado,
foi porque algo se passou
no último passo que foi dado.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 25/05/2018

Nuno Júdice – Jogo

Eu, sabendo que te amo,
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.

Nuno Júdice – Epidemia

Passa de um para o outro através do olhar, de uma palavra,
de um toque de mãos; por vezes, basta um leve suspiro
para adivinhar a febre, e atrás dele descobre-se que
não é preciso cura nem tratamento. Instala-se na cabeça,
no corpo, na boca, nos dedos, sem dor nem cansaço,
apenas aquela ânsia a que se dá o nome de desejo e,
para que abrande, o remédio é ver quem se ama, ouvir
a voz que alivia a solidão, saber onde está, o que faz,
o que veste. E a doença está nos que a evitam, nos
que a não conhecem por ignorância ou por medo,
nos que nunca ousaram e, um dia, rejeitaram o que
se lhes oferecia. Assim, dizem os especialistas,
não evitem o olhar que vos procura, não esqueçam
a palavra que vos chega, tão inesperada; e recebam
sem receio essa mão que tereis sonhado e vos
procura, fazendo com que entreis, para sempre,
no campo dos atingidos pelo mais doce dos contágios.

Maria Mercedes Carranza – Kavafiana

O desejo aparece de repente,
em qualquer sítio, a propósito de nada.
Na cozinha, caminhando pela rua.
Basta um olhar, um aceno, um roçar.
Mas dois corpos
têm também o seu amanhecer e o seu acaso,
a sua rotina de amor e de sonhos,
de gestos sabidos até ao cansaço.
Dispersam-se os risos, deformam-se.
Há cinzas nas bocas
e o íntimo desdém.
Dois corpos têm a sua vida
e a sua morte um frente ao outro.
Basta o silêncio.

Trad.: Nuno Júdice

Kavafiana

El deseo aparece de repente,
en cualquier parte, a propósito de nada.
En la cocina, caminando por la calle.
Basta una mirada, un ademán, un roce.
Pero dos cuerpos
tienen también su amanecer y su ocaso,
su rutina de amor y de sueños,
de gestos sabidos hasta el cansancio.
Se dispersan las risas, se deforman.
Hay cenizas en las bocas
y el íntimo desdén.
Dos cuerpos tienen su vida
y su muerte el uno frente al otro.
Basta el silencio.

Nuno Júdice – Fábula industrial

As chaminés das fábricas tinham
pescoços de cegonha, e quando deitavam
fumo era como se as cegonhas abrissem
as asas. Quando o fumo era preto,
porém, as cegonhas transformavam-se
em corvos de grandes pescoços feitos
de tijolo; e ao contrário das cegonhas
não voavam, mas faziam soar as sirenes
com os bicos metálicos, para que
os operários saíssem do seu ventre
em direção a casa. No dia
seguinte, se o fumo fosse branco, as operárias
agarrar-se-iam às asas da cegonha
e puxá-las-iam, como se fossem
linho, para as enrolar e meter
nos contentores que os barcos esperam
no cais, para as levar para os países
com falta de lençóis. É por isso que
os ninhos de cegonha, nos grandes postes
eléctricos estão vazios; e que as raposas
correm de uma árvore para outra,
à procura de um ramo em que esteja
um corvo, sem conseguirem encontrar
o queijo que a fábula lhes prometeu.

Nuno Júdice, inédito, 31/12/2019

peguei daqui ó: http://poems.bitcliq.com/through-the-looking-glass-2/