Adilia Lopes – Absolver (com algumas coisas de Helberto Hélder)

“Mas Maria guardava todas essas coisas,
conferindo-as em seu coração”
Lc 2,19

Chama-se sexo
a uma parte do corpo
como se todo o corpo
as mãos os pés a cabeça
não fossem também sexo
o pênis a vagina
os testículos as maminhas
são frágeis
vulneráveis
estão expostos
à crueldade
são flores
ou musgos
posso estar nua e ser casta
não tenho nada de freira viciosa
e devassa
com toda a minha atenção
toco-te
dou-te os meus sentidos
os meus sentimentos
sinto muito
ter estado muito contigo
é uma coisa boa
que melhora o mundo
que o embeleza
agradeço ter-te encontrado
e ter feito o que fiz contigo
com a cabeça nas mãos
e os olhos cheios de lágrimas
sonho contigo comigo

Mário Chamie – Cervo, Servo

1.
E vem: som em torno,
rumorações de margem, várzea vagido
entre o mato
de onde o mato cerca       rinha menor
de vinda.

Refém: já muxoxo,
convocações de talos, talhos rangidos
entre o pasto
de onde o pasto fecha       largo maior
de lida.

Também: alto vôo,
movemenções de asas, vácuos movidos
entre o vasto
de onde o vasto cobre       casa menor
de vista.

Contém: surdo gemer,
inquietações de choro, tosco pedido
entre o salto
de onde o salto abre       fuga maior
de chispa.

Fuga: mulo correr,
cabritações de gamo, ganho corrido
entre o casco
de onde o casco toca       corpo motor
de vida.

2.

Pára: antes do cerco
indo, vinha fechando
o cervo, círculo do medo.

Anda: então o cerco
vindo, ia mirando
o alvo, trêmulo no erro.

Volta: e logo o cervo
vendo, move correndo
os cornos, garras de lenho.

Fica: mas sem defesa
deixa o corpo à vista
o servo, perdida presa.

3.

Chifres, move-se a cabeça:
varas e luz no crânio, olhos marca
na testa
porque a testa mostra         liso gesto
de nesga.

Galhos, une-se o feixe:
nervos e veios na anca, fibra óssea
na coxa
porque a coxa invoca         pulo salto
de mola.

Olhos, trinca-se a fenda:
claros sóis na vista, vítreo pátio
na treva
porque a treva ensombra         fero golpe
de fera.

Listas, risca-se o corpo:
linhas e véu na pele, mancha nódoa
no peito
porque o peito enverga         malho risco
de relho.

Tiros, chumba-se o lombo:
ecos e voz no campo, sangue poça
no mato
porque o mato marca         pista passo
de pata.

Laços, prende-se a presa:
suor e dó na cara,         cacto lasca
na cerca
porque a cerca espinha        prego farpa
de lenha.

Queda, queda-se o servo:
chifres e mé na tarde, trégua baque
do corpo
porque o cervo tomba         fardo peso
de morto.

Elizabeth Bishop – A Arte de Perder

A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subseqüente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

 

Trad.: Paulo Henriques Britto

Paulo Henriques Britto – de “Dez Sonetoides Mancos”

VI

Nada de mergulhos. É na superfície
que o real, minúsculo plâncton, se trai.
Sentidos, sentimentos e outros moluscos

não passam pela finíssima peneira
do funcional. E o sofrimento, ai,
esse nefando pinguim de louça

sobre o que deveria ser, na quiti-
nete do eu, uma austera geladeira…

Que ninguém nos ouça: guarda esse escafandro, meu
filho. Só o raso é cool. A dor é kitsch.

Berthold Brecht – Prazeres

O primeiro olhar da janela de manhã
O velho livro de novo encontrado
Rostos animados
Neve, o mudar das estações
O jornal
O cão
A dialéctica
Tomar duche, nadar
Velha música
Sapatos cómodos
Compreender
Música nova
Escrever, plantar
Viajar, cantar
Ser amável.

Trad.: Paulo César de Souza

Vinícius de Moraes – O Verbo no Infinito

Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor; nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar

Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar.

E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito

E esquecer tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito…

Manuel Bandeira – Renúncia

Chora de manso e no íntimo… Procura
Curtir sem queixa o mal que te crucia:
O mundo é sem piedade e até riria
Da tua inconsolável amargura.

Só a dor enobrece e é grande e é pura.
Aprende a amá-la que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria,
E será, ela só, tua ventura…

A vida é vã como a sombra que passa…
Sofre sereno e d’alma sobranceira,
Sem um grito sequer, tua desgraça.

Encerra em ti tua tristeza inteira.
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira…

Carlos Drumond de Andrade – Encontro

Meu pai perdi no tempo e ganho em sonho.
Se a noite me atribui poder de fuga,
sinto logo meu pai e nele ponho
o olhar, lendo-lhe a face, ruga a ruga.

Está morto, que importa? Inda madruga
e seu rosto, nem triste nem risonho,
é o rosto, antigo, o mesmo. E não enxuga
suor algum, na calma de meu sonho.

Oh meu pai arquiteto e fazendeiro! Faz casas de silêncio, e suas roças
de cinza estão maduras, orvalhadas

por um rio que corre o tempo inteiro,
e corre além do tempo, enquanto as nossas
murcham num sopro fontes represadas.

Sylvia Plath – A Redoma de Vidro (excerto)

“Eu vi minha vida estendendo seus galhos em minha frente como a figueira verde da história. Da ponta de cada ramo, como um figo roxo e grande, um maravilhoso futuro acenava e piscava. Um figo era um marido e um lar feliz e filhos, e outro figo era uma famosa poetisa e outro figo era uma brilhante professora, e outro figo era E Gê, a editora incrível, e outro figo era Europa e África e América do Sul, e outro figo era Constantin e Socrates e Attila e um pacote de outros amores com nomes esquisitos e profissões incomuns, e outro figo era a campeã da equipe olímpica, e além e acima desses figos haviam muitos outros figos que eu não podia distinguir bem.  Eu me vi sentada na bifurcação dos galhos desta figueira, morrendo de fome, só porque eu não conseguia me decidir de qual figo escolher. Eu queria cada um deles, mas escolher um significaria perder todo o resto, e, enquanto eu estava sentada ali, incapaz de me decidir, os figos começaram a se enrugar e ficarem pretos, e, um por um, eles caíram ao chão, aos meus pés.”