Haroldo de Campos – Servidão de Passagem

forma de fome

proêmio

mosca ouro?
mosca fosca.

mosca prata?
mosca preta.

mosca íris?
mosca reles.

mosca anil?
mosca vil.

mosca azul?
mosca mosca.

mosca branca?
poesia pouca.

o azul é puro?
o azul é pus.

de barriga vazia.

o verde é vivo?
o verde é vírus

de barriga vazia.

o amarelo é belo?
o amarelo é bile

de barriga vazia.

o vermelho é fúcsia?
o vermelho é fúria

de barriga vazia.

a poesia é pura?
a poesia é para

de barriga vazia.

poesia em tempo de fome
fome em tempo de poesia

poesia em lugar do homem
pronome em lugar do nome

homem em lugar de poesia
nome em lugar do pronome

poesia de dar o nome

nomear é dar o nome

nomeio o nome
nomeio o homem
no meio a fome

nomeio a fome

poema

de sol a sol
soldado
de sal a sal
salgado
de sova a sova
sovado
de suco a suco
sugado
de sono a sono
sonado

sangrado
de sangue a sangue

onde mói esta moagem
onde engrena esta engrenagem

moenda homem moagem
moagem homem moenda

engrenagem
gangrenagem

de lucro a lucro
logrado
de logro a logro
lucrado
de lado a lado
lanhado
de lodo a lodo
largado

sol a sal
sal a sova
sova a suco
suco a sono
sono a sangue

onde homem
          essa moagem
onde carne
          essa carnagem
onde osso
          essa engrenagem

homem forrado
homem ferrado

homem rapina
homem rapado

homem surra
homem surrado

homem buraco
homem burra

homem senhor
homem servo

homem sobre
homem sob

homem saciado
homem saqueado

homem servido
homem sorvo

homem come
homem fome

homem fala
homem cala

homem soco
homem saco

homem mó
homem pó

quem baraço
quem vassalo

quem cavalo
quem cavalga

quem explora
quem espólio

quem carrasco
quem carcassa

quem usura
quem usado

quem pilhado
quem pilhagem

quem uísque
quem urina
quem feriado
quem faxina
quem volúpia
quem vermina

carne carniça carnagem

sangragem sangria sangue

homemmoendahomemmoagem

açúcar
nessa bagaço?

almíscar
nesse sovaco?

petúnia
nesse melaço?

índigo nesse buraco?

ocre
acre
osga
asco

canga cangalho cagaço
cansaço cachaço canga
carcassa cachaça gana

de míngua a míngua
de magro a magro
de morgue a morgue
de morte a morte

só moagem
ossomoagem

sem miragem
selvaselvagem

servidão de passagem

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 24/04/2018

Manuel António Pina – Instituto de Oncologia

Estes cumprem o rito antigo mantendo
a chama da morte acesa na obscura água da vida
e engrossam o rio dos mortos
como pura memória sem nome.

Nós rebelamo-nos, levantamos as mãos ao céu,
e depois fechamo-las para deter
o rio da mudança fluindo por entre os dedos,
porque éramos os menos fortes e os menos densos.

Frágeis mãos dispersaram o que nos pertencia
e quando regressámos tinham partido todos.
Agora, diante de nós mesmos para sempre,
até a nossa miséria nos parece alheia.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 22/04/2018

Manuel António Pina – Depois

Primeiro sabem-se as respostas.
As perguntas chegam depois,
como aves voltando a casa ao fim da tarde
e pousando, uma a uma, no coração
quando o coração já se recolheu
de perguntas e de respostas.

Que coração, no entanto, pode repousar
com o restolhar de asas no telhado?
A dúvida agita
os cortinados
e nos sítios mais íntimos da vida
acorda o passado.
Porquê, tão tardo, o passado?

Se ficou por saldar algo
com Deus ou com o Diabo
e se é o coração o saldo
porquê agora, Cobrança,
quando medo e esperança

se recolheram também sob
lembranças extenuadas?
Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas,
e de poços, e de portas entreabertas,
e sonham no escuro
as coisas acabadas.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 31/03/2018

Ana Martins Marques – História

Tenho 39 anos.
Meus dentes têm cerca de 7 anos a menos.
Meus seios têm cerca de 12 anos a menos.
Bem mais recentes são meus cabelos
e minhas unhas.
Pela manhã como um pão.
Ele tem uma história de 2 dias.
Ao sair do meu apartamento,
que tem cerca de 40 anos,
vestindo uma calça jeans de 40 anos
e uma camiseta de não mais do que 3,
troco com meu vizinho
palavras
de cerca de 800 anos
e piso sem querer numa poça
com 2 horas de história
desfazendo
uma imagem
que viveu
alguns segundos.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 19/03/2018

Manuel António Pina – Sétimo Dia

Ao Manuel Hermínio

Voltamos, um a um, da tua morte
para a nossa vida como quem regressa a casa
de uma longa viagem. Para trás ficaram recordações, países,
e agora é como se te tivéssemos sonhado.
A voz que, diante da escuridão, suspendemos
quando se desmoronou o mundo para o fundo de ti
erguemo-la de novo para os afazeres diurnos
e para as horas comuns.
Ainda ontem estávamos sozinhos diante do Horror
e já somos reais outra vez.
A própria dor adormeceu no nosso colo
como um animal de companhia.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 05/03/2018

Diego Moraes – Já se passaram dez anos

Já se passaram dez anos
Acabou a bateria do relógio que você me presenteou no natal que
seu tio ficou bêbado de vinho Dom Bosco e disse na frente dos filhos
e da esposa que era gay e viveria com um travesti búlgaro
em Londres
Já se passaram dez anos
Os poemas que escrevi quando gozava nos teus peitos de atriz da
nouvelle vague incorporada de pomba-gira amarelaram como sífilis
na fruteira
Já se passaram dez anos
A dona Gerusa que te vendia maconha morreu de AIDS na
penitenciária e o cachorro sem nome que adotamos morreu
atropelado por um táxi
Já se passaram dez anos
Hebe morreu. Michael Jackson Morreu. Roberto Piva morreu.
James Gandolfini morreu. Manoel de Barros morreu.
Já se passaram dez anos
Mas o cheiro da sua boceta ainda está impregnado no quarto, no
guarda-roupa, na cozinha, na varanda, nas estrelas.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 22/02/2018

Inês Lourenço – Sala Provisória

Nunca se sabe
quando estamos num lugar
pela última vez. Numa casa
que vai ser demolida, numa sala
provisória que vai encerrar, num velho
café que mudará de ramo, como
página virada jamais reaberta, como
canção demasiado gasta, como
abraço tornado irrepetível, numa
porta a que não voltaremos.

REPUBLICAÇÃO: publicado no blog originalmente em 02/12/2018

Maria do Rosário Pedreira – retina

retina

Eu, que nunca pensei deixar de ser
filha, faço agora de mãe da minha mãe
aos domingos: sou a sua muleta nos

longos corredores da casa antiga e
chego-lhe mantas aos joelhos porque
os velhos tremem em vida com o frio
da morte. Para fugir às coisas que a

entristecem, pergunto-lhe por gente
do passado, pois sei que o que sucedeu
ontem já está demasiado longe da sua

memória – e, nos dias bons, a resposta
dura a tarde inteira. Ao princípio,

a minha mãe censurava a forma como eu
ia vestida, mas já há muito tempo que não
diz nada. Pensei que tivesse finalmente

acertado com o seu gosto, ou que ela,
derrotada, tivesse desistido de me mudar.

Só depois percebi que já não me vê.

Inês Lourenço – Balada dos Amores Difíceis

Não me refiro aos trágicos Romeu e Julieta
Tristão e Isolda, Pedro e Inês nem a alguns ignorados
ícones como Yourcenar e Grace ou Rimbaud e Verlaine. Refiro-me
aos que se buscam sem saber nada
do fogo que arde sem se ver, órficos cantos, mas côncavos
e convexos se combinam cruzando genes e transitórios
tempos de vida enquanto povoam cidades, salas
de parto, comércios, indústrias, portais, geriatrias. E dos campos deixados
à exportação do vinho e dos litorais ainda com redes
e barcos cresce um ruído de formiga banal e curtida
de pequenos destinos. Esses são os grandes herois
dos amores difíceis
que não ficam no poema.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 13/01/2018