Joan Margarit – Uma história

Não digas nada, Joana,
apenas escuta-o e não digas nada.
Caminhávamos na chuvosa
manhã pela cidade adormecida,
e entrávamos lentamente
em uma via calçada
que não levava a lugar nenhum.
Algumas crianças, com gritos e canções,
queriam que nos aproximássemos do canal,
para que víssemos sua casa refletida na água.
Gostaste, lembra-te?,
de observar as crianças. Quando partimos
suas carinhas estavam grudadas nas vidraças,
suas vozes dissipando-se na água.
Chegamos tarde. Tarde demais.
Sempre teremos que voltar separadamente:
esse é o preço por termos sido capazes de
entrar em uma história.
E que sorte encontrar-te agora aqui,
de madrugada, transformada em um pátio:
o que quer dizer que, o tempo todo,
estiveste ao meu lado na escuridão.

Trad.: Nelson Santander

UN CUENTO

No digas nada, Joana,
tan sólo escúchalo y no digas nada.
Íbamos caminando en la lluviosa
mañana por el pueblo adormecido,
entrábamos despacio
por una calle adoquinada
que no llevaba a parte alguna.
Unos niños con gritos y canciones
querían acercarnos al canal,
que viésemos su casa reflejada en el agua.
Te gustaba, ¿recuerdas?,
ver a los niños. Al marcharnos
quedaban sus caritas pegadas al cristal,
sus voces apagándose en el agua.
Llegamos tarde. Demasiado tarde.
Habrá que volver siempre separados:
ése es el precio por haber podido
entrar dentro de un cuento.
Y qué suerte encontrarte ahora aquí,
de madrugada, convertida en patio:
lo que quiere decir que todo el tiempo
estabas junto a mí en la oscuridad.

Joan Margarit – Espaço e tempo

E de repente a casa ficou grande demais.
Tua mãe e eu esvaziamos teus roupeiros
e seguimos por mesas e prateleiras,
de retrato em retrato, teus sorrisos.
À noite, os espelhos, sob a luz elétrica,
exibem com mais relevo o teu vazio.
Os móveis estão agora mais escuros.
Descem pelas escadas
o cálido balaústre que se lembra
de tua pequena mão,
e os degraus que ainda sentem
o roçar dos teus passos. E a casa,
grande e vazia agora,
em seu próprio silêncio se contempla.

Trad.: Nelson Santander

ESPACIO Y TIEMPO

Y de pronto la casa es demasiado grande.
Tu madre y yo vaciamos tus armarios
y seguimos por mesas y anaqueles,
de retrato en retrato, tus sonrisas.
De noche los espejos, bajo la luz eléctrica,
muestran con más relieve tu vacío.
Los muebles son ahora más oscuros.
Por la escalera bajan
la cálida baranda que recuerda
a tu pequeña mano,
y los peldaños que aún sienten
el roce de tus pasos. Y la casa,
grande y vacía ahora,
en su propio silencio se contempla.

Joan Margarit – Noite de junho

Quando saí do cinema já fazia escuro.
Naquele velho estacionamento, sem iluminação,
subi a rampa áspera e suja
porque havia estacionado no terraço.
Dentro de mim também era dura a ladeira:
os primeiros dias sem ti.
Mas ao chegar no topo, ao ar livre,
um cálido silêncio
envolvia a sombra dos carros:
os ladrilhos avermelhados, as grades
de ferro, singelas e delicadas,
e os vasos com hortênsias.
De repente, ao sair para o céu aberto,
um véu se rasgou e emergiu a noite
de um pátio de tijolos com limpas galerias
e seus vitrais iluminados.
Detive-me sentindo-te muito próxima.
E sentindo que, a qualquer momento,
poderia já fazer brotar
tesouros da morte.

Trad.: Nelson Santander

NOCHE DE JUNIO

Cuando salí del cine ya había oscurecido.
En aquel viejo parking, sin luz, iba subiendo
la rampa áspera y sucia
porque había aparcado en la terraza.
Dentro de mí también era dura la cuesta:
los primeros días sin ti.
Pero al llegar arriba, a la intemperie,
un cálido silencio
envolvía la sombra de los coches:
las baldosas rojizas, las barandas
de hierro, delicadas y sencillas,
y latas con hortensias.
De repente, al salir a cielo abierto,
un velo se rasgó y surgió la noche
de un patio de manzana con limpias galerías
y sus iluminadas cristaleras.
Me detuve sintiéndote muy cerca.
Y sintiendo que ya, en cualquier instante,
podría hacer surgir
tesoros de la muerte.

Joan Margarit – Final

Teu enterro, na primavera: foi essa
a mensagem final de tua bondade.
Nada melhor em torno de ti do que o ruído
desta cidade e, em frente,
a eternidade do mar.
Que rude fachada a do Montjuïc: vai
até onde o pensamento deseja.

O carrinho sobe os caminhos de areia
e os automóveis o seguem,
fazendo crepitar o cascalho ao pé
dos ciprestes na tranquila praça pela manhã.
Já posso sentir o teu sorriso que passa
por entre as brancas aves no céu,
agora que tudo volta ao seu princípio,
como quando tu não estavas.
Restou um aroma de flores junto à parede,
entre verdes escuros e fugidios.
As canções do sol do teu silêncio
iluminam o ferro do amanhã.
O que digo sobre ti não faz mais sentido
do que a enferrujada fechadura
de uma porta que não abre para lado algum.

4 de junho de 2001

Trad.: Nelson Santander

FINAL

Tu entierro, en primavera: ése fue
el mensaje final de tu bondad.
Nada mejor en torno a ti que el ruido
de esta ciudad y, enfrente,
la eternidad del mar.
Qué ruda proa Montjuïc: alcanza
tan lejos como quiera el pensamiento.

El furgón va subiendo por caminos de arena
y tras él van los coches,
que hacen crujir al pie de los cipreses
la grava en la tranquila plaza de la mañana.
Siento ya tu sonrisa que atraviesa
los claros pájaros del aire,
ahora que todo vuelve a su principio,
como cuando no estabas.
Ha quedado un olor a flores junto al muro,
entre verdes oscuros y huidizos.
Las canciones del sol de tu silencio
iluminan el hierro del mañana.
Lo que digo de ti no tiene más sentido
que la herrumbrosa cerradura
de una puerta que no abre a ningún sitio.

4 de junio de 2001

Joan Margarit – Teu lobo

Mira-o antes de ir-te
e dize-lhe adeus: ele foi
preso outras vezes
sem jamais se render.
Contempla-o, amarrado
no pátio nevado:
a corrente lhe roça
o pescoço, já sem pelos,
do qual pendem ainda
cordas gastas,
as que outrora ele partiu
em outros cativeiros.

Ele dorme quase
o tempo todo.
Tem manchas escuras
como de quando cai
o reboco de uma parede.
Infestado de pulgas,
na rosada língua
que pende avidamente
há pretas estrias
deixadas pela idade.
A pelagem do ventre,
das patas e da cauda
foi endurecida por uma lama
de terra e excrementos.
Penduram-se nele uma par de
folhas amarelas e secas,
caídas de alguma bananeira:
como dois crisântemos
de seu outono que, tristes,
compreensivos, o adornam.

Hoje, antes de partir, tu
soltaste a coleira.
A coleira caiu
— uma serpente negra —
sobre a neve gelada.
Mas já não se move.
O lobo permanece
imóvel, silencioso,
no pátio em silêncio.

Trad.: Nelson Santander

TU LOBO

Míralo antes de irte
y dile adiós: estuvo
amarrado otras veces
sin rendirse jamás.
Contémplalo, sujeto
en el patio nevado:
la cadena le roza
el cuello ya sin pelo
del que cuelgan aún
cuerdas deshilachadas,
las que antaño rompió
en otros cautiverios.

Yace medio dormido
a casi todas horas.
Tiene manchas oscuras
como cuando se cae
el estuco de un muro.
Infestado de pulgas,
en la rosada lengua
que le cuelga con ansia
se ven rayas negruzcas
dejadas por la edad.
El pelaje del vientre,
las patas y la cola,
lo ha endurecido un barro
de tierra y excrementos.
Le cuelgan un par de hojas
amarillas y secas,
caídas de algún plátano:
como dos crisantemos
de su otoño que, tristes,
comprensivos, le adornan.

Hoy, tú, antes de irte,
le has abierto el candado.
La cadena ha caído
—una serpiente negra—
sobre la nieve helada.
Pero ya no se mueve.
El lobo se ha quedado
inmóvil, silencioso,
en el patio en silencio.

Joan Margarit – O dia depois da morte

Hoje te vi e levavas tuas muletas azuis,
feliz como sempre e protegida
por aquele jovem pai entre as tensas
cordas do enorme violoncelo da chuva.
Jamais tu e eu lembraremos
de termos sido pai e filha
neste mesmo pátio, onde o loureiro
molhado balança ao anoitecer.

Trad.: Nelson Santander

EL DÍA DESPUÉS DE LA MUERTE

Hoy te he visto y llevabas tus muletas azules,
contenta como siempre y protegida
por aquel joven padre entre las tensas
cuerdas del cello enorme de la lluvia.
Jamás ni tú ni yo recordaremos
haber sido un padre y una hija
en este mismo patio, donde el laurel mojado
se está meciendo al anochecer.

Joan Margarit – Um pobre instante

A morte nada mais é do que isto: o quarto,
a luminosa tarde na janela,
e este toca-fitas na mesinha
– tão silencioso como o teu coração –
com todas as tuas canções tocadas para sempre.
Teu último suspiro segue dentro de mim
ainda em suspenso: não deixo que acabe.
Sabes qual é, Joana, o próximo concerto?
Ouves como brincam as crianças
no pátio da escola?
Sabes, ao final da tarde,
como será esta noite,
noite de primavera? As pessoas virão.
A casa acenderá todas as suas luzes.

Trad.: Nelson Santander

UN POBRE INSTANTE

La muerte no es más que esto: el dormitorio,
la luminosa tarde en la ventana,
y este radiocasete en la mesita
tan apagado como tu corazón
con todas tus canciones cantadas para siempre.
Tu último suspiro sigue dentro de mí
todavía en suspenso: no dejo que termine.
¿Sabes cual es, Joana, el próximo concierto?
¿Oyes como en el patio de la escuela
están jugando los niños?
¿Sabes, al acabar la tarde,
cómo serà esta noche,
noche de primavera? Vendrá gente.
La casa encenderá todas sus luces.

Joan Margarit – Última caminhada

Já não comia. Caíam meus cabelos.
Ficava o dia todo de olhos fechados.
Mas saí para a varanda de madrugada
e alguém da calçada, sob uma árvore,
falou-me com uma voz como a de minha mãe,
que dormia em sua cama ao lado da minha.
De repente, não estava mais cansada
e desci sem muletas até a rua.
Nunca fora capaz de andar assim.
Senti minha alegria voltando:
caiu a doença como uma pele
suada, deixada ali na rua.
Nunca havia me sentido tão leve.
Olhei para trás, para minha varanda,
o corrimão como uma partitura.
Disse adeus ao meu pai e à minha mãe.

A vida me escolheu para o seu amor.
E a morte também.

Trad.: Nelson Santander

ÚLTIMO PASEO

Ya no comía. Se me caía el cabello.
Estaba todo el día con los ojos cerrados.
Pero salí al balcón de madrugada
y alguien desde la acera, bajo un árbol,
me habló con una voz como la de mi madre,
que dormía en su cama junto a mí.
De repente no estaba ya cansada
y bajé sin muletas a la calle.
Nunca había podido andar así.
Sentí que me volvía la alegría:
cayó la enfermedad como una piel
sudorosa, dejada allí en la calle.
Nunca pude sentirme tan ligera.
Miré hacia atrás, a mi balcón,
la baranda como una partitura.
Dije adiós a mi padre y a mi madre.

La vida me eligió para su amor.
También la muerte.

Joan Margarit – Mari

Ela te acompanhou por muito tempo,
todas as tardes, na natação e na escola.
Foi tua amiga e também a confidente
daquela dolorosa adolescência
de lua de hospital e das tardes azuis
da lenta juventude. Foi a tua Mari,
as últimas visitas, quando teus olhos
pesavam-te interiormente como a morte
que apagou todo o brilho por trás das frias
vidraças embaçadas de passado.
Tu e Mari, teu sorriso e o sorriso dela,
água morna, o odor dos vestiários,
tu nadando, nadando para a morte.
Agora Mari o sabe e despede-se de ti
olhando para suas duas filhas.
Mari que, grávida,
recusou-se a fazer qualquer exame
porque ela jamais se preocupou
em dar à luz uma criança como tu.

Trad.: Nelson Santander

MARI

Ella te acompañó durante mucho tiempo
a nadar y a la escuela cada tarde.
Fue tu amiga y también la confidente
de aquella dolorosa adolescencia
de luna de hospital y azules tardes
de lenta juventud. Era tu Mari,
sus últimas visitas, con tus ojos
pesándote hacia dentro por la muerte
que apagó todo el brillo tras los fríos
cristales empañados del ayer.
Tú y Mari, tu sonrisa y su sonrisa,
agua tibia, el olor de los vestuarios,
tú nadando, nadando hacia la muerte.
Ahora Mari lo sabe y te despide
mirando a sus dos hijas.
Mari, que, embarazada,
se negó a someterse a prueba alguna
porque a ella jamás le preocupó
dar a luz a una niña como tú.

Joan Margarit – Súplica

Desta manhã invernal, morna e aprazível,
por favor, não te vás.
Fica submersa neste pátio
como se houvesses naufragado
dentro de nossa vida.
Sob o loureiro, entre as aspidistras
de folhas românticas, verdes e largas,
por favor, não te vás, não te vás.

Tudo está preparado para ti.
Fica, por favor, e não te vás.
Diz-me se te lembras: preciso de
algumas palavras com a clara e profunda
voz da ausência para perguntar-te
sobre a fugacidade
de tua vitória sobre o nunca mais.
Mas te calas, descansas em teu ontem,
um leito de tristeza fulgurante.

Encerraste-te por oito meses
no casulo da escuridão,
e agora, horrorizada pela luz,
surge batendo as asas a furiosa
e pálida mariposa da morte.
Mas, se estás morrendo, ainda vives,
e faço irromper a última alegria
em teu rosto cansado enquanto tomo
entre as minhas tuas pequenas mãos.
E repito para mim mesmo:
morrer ainda é viver.
Desta manhã invernal, morna e aprazível,
por favor, não te vás, não te vás.

Trad.: Nelson Santander

SÚPLICA

De esta invernal mañana, amable y tibia,
por favor, no te vayas.
Quédate sumergida en este patio
como si hubieses naufragado
dentro de nuestra vida.
Bajo el laurel, entre las aspidistras
de románticas, verdes y anchas hojas,
por favor, no te vayas, no te vayas.

Todo está preparado para ti.
Quédate, por favor, y no te vayas.
Dime si lo recuerdas: necesito
unas palabras con la clara y honda
voz de la ausencia para preguntarte
por la fugacidad
de tu victoria sobre el nunca más.
Pero callas, descansas en tu ayer,
un lecho de tristeza fulgurante.

Te has ido encerrando durante ocho meses
en el capullo de la oscuridad,
y ahora, horrorizada por la luz,
surge aleteando la furiosa,
pálida mariposa de la muerte.
Pero, si estás muriéndote, aún vives,
y hago estallar la última alegría
de tu rostro cansado mientras tomo
entre las mías tus pequeñas manos.
Y me repito:
morirse todavía es vivir.
De esta invernal mañana, amable y tibia,
por favor, no te vayas, no te vayas.