Faith Shearin – O que eu gosto

Não da festa em si — um turbilhão de momentos desconfortáveis e risos
que, na verdade, querem dizer outra coisa. Não do momento logo após o fim
da festa, quando nos jogamos no sofá, pratos espalhados por toda parte,
bitucas de cigarro flutuando no refrigerante, um único pedaço intocado de torta

sobre a mesa de centro. O que eu gosto é do dia seguinte à festa: os vestígios
dos convidados quase apagados, os balões amarrados na despensa, mas voando
um pouco mais baixo. A comida restante mumificada na geladeira. Gosto
de lembrar que a sala estava cheia sem estar em uma sala cheia.
O silêncio flui como água e eu nado sozinha: um peixe em um aquário vazio.

Trad.: Nelson Santander

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What I Like

Not the party itself—a flurry of uncomfortable moments—and laughter
that really means something else. Not the moment just after the party
is over when we fall onto the sofa, dishes scattered everywhere,
cigarette butts floating in soda, a single untouched piece of pie

on the coffee table. What I like is the day after the party: the signs
of guests mostly erased, balloons tied to the pantry but flying
a little lower. The leftover food mummified in the fridge. I like
remembering that the room was full without standing in a full room.
Silence pours in like water and I swim alone: a fish in an empty aquarium.

Faith Shearin – Lição de Piano

Meus olhos se abrem antes que o sol derrame sua gema no céu;
uma garota no andar de cima pratica escalas. Imagino o arco
de sua mão, a sua saia que paira acima do joelho.

Na rua, ouço um indigente, um copo de papel, um homem que discute
física com um pombo; um par de meninas sopra bolas de chiclete
para o céu. Talvez uma velha senhora sonhe com sua infância

num banco do parque, enquanto o homem ao seu lado decide deixar
sua esposa. O mundo é complicado: uma janela aberta,
minha cabeça afundada no travesseiro, onde descubro uma ação de maré:

tantos corpos rolando em direção ao planeta, tantos outros
refluindo. Num café, talvez um dia eu acenda um cigarro,
lembrando da última pessoa que não me amou, abrindo a

boca para ver se dela sai fumaça ou palavras. Mas hoje
acordo me perguntando: como vou fazer caber toda essa vida em uma só?
Preciso de um mapa, de uma lista de vocabulários; não consigo aprender o mundo

rápido o suficiente. Quero ser como a garota do andar de cima que se preparou
diante de um piano de cauda e ensinou seus próprios dedos cegos a cantar.

Trad.: Nelson Santander

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Piano Lesson

My eyes open before the sun drops its yolk into the sky
and a girl upstairs is practicing scales. I imagine the arch
of her hand, the way her skirt might pause above the knee.

In the street I hear a victim, a paper cup, a man who talks
physics with a pigeon; a pair of girls blow bubblegum bubbles
at the sky. Perhaps an old woman dreams her childhood

on a park bench while the man beside her decides to leave
his wife. The world is complicated: an open window,
my head pressed to a pillow where I find a tidal action:

so many bodies rolling onto the planet, so many others
turning back. In a café I may someday light a cigarette,
remember the last person who did not love me, open my

mouth to see if it speaks smoke or words. But these days
I wake up wondering: how will I fit all this life in one life?
I need a map, a vocabulary list; I can’t learn the world

fast enough. I want to be like the girl upstairs who has braced
herself before a grand piano and taught her own blind fingers to sing.

Faith Shearin – Cinzas, cinzas

O inverno é a morte pela qual todos temos esperado.
Mesmo nas Festas, em que o ano novo é louvado,
os galhos se quebram sob o peso da neve.
Conhecemos esta estação como reconheceremos o fim
de nossas vidas quando a vida estiver na metade.
Os anos seguem o caminho dos dentes da infância: premidos tão
esperançosamente sob travesseiros limpos. Pele morta.
As unhas que crescem sem pulsação.
Uma terra que engole bebês
devolve um erupção de margaridas de olhos brancos.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: pelo contexto do poema, o seu título pode ser a) a derivação de um dos grandes temas bíblicos (“Ashes to ashes, dust to dust” – em tradução livre, “Do pó viemos, ao pó retornaremos”), b) uma alusão ao título de uma canção de David Bowie (“Ashes to Ashes”) ou talvez c) remeta à uma interpretação corrente da antiga cantiga de roda – muito famosa no Reino Unido – chamada “Ring Around the Rosie” e seus famosos versos: Ring around the rosie / pocket full of posies / ashes, ashes / we all fall down! Segundo essa interpretação, a cantiga referir-se-ia na verdade, à peste bubônica que atingiu Londres no Século XVII. Assim, o título “Ring Around the Rosie” seria uma menção à erupção cutânea em torno da ferida de uma pessoa contaminada pela peste; “pocket full of posies“, as pétalas de flores que os médicos derramavam sobre seus pacientes mortos para afastar o cheiro da doença e da decomposição; ashes, ashes, o que sobrou dos defuntos após a cremação necessária para diminuir a transmissão da doença; e we all fall down! a constatação de que todos mais cedo ou mais tarde cairemos. Em um sentido mais amplo, “Ashes to ashes” é frequentemente utilizado para se referir à transitoriedade da vida e de tudo que nos cerca e à futilidade das realizações humanas.

Ashes, Ashes

Winter is the death we have all been waiting for.
Even at parties where the new year is praised
branches are breaking beneath the weight of snow.
We know this season like we will know the end
of our lives when the living is halfway through.
Years go the way of childhood teeth: pressed so
hopefully beneath clean pillows. Dead skin.
The fingernails that grow without a pulse.
An earth that swallows babies
gives back a rash of white-eyed daisies.