Théodore Fraenckel – Meditação do fim de Agosto

Mal as árvores se abatem, o que resta da floresta?
Resistirá a madeira a ser moldada pelo acréscimo
de formas que lhe vem da literatura? E no entanto
a natureza nada tem de humano e dela não se pode
dizer que prescinde de crescer e se aquieta nos limites
de uma forma que a torna definitiva e prematura.
De muito a olharmos, enrugará a pintura? Ou
sairá do quadro para discutir conosco o desgaste
nela perpetrado pela amargura? É sempre
sem ilusões que o olhar cobre o tempo, fartos
que estamos de constatar a resistência dos campos
e pela palavra se tornarem paisagem na literatura.
É outro o nosso segredo, certo de que todas
as ficções se finam num pingo de tinta
de onde partem as aves, de asas incineradas,
à procura de um fim que às salve da literatura.

Henry Scott Holland – [A morte não é nada]

A morte não é nada*. Ela não conta. Eu apenas passei para a sala vizinha. Nada aconteceu. Tudo permanece exatamente como sempre foi. Eu sou eu, e você é você, e a velha vida que vivemos carinhosamente juntos permanece intocada, inalterada. O que quer que tenhamos sido um para o outro, ainda o somos. Chame-me pelo meu antigo nome. Fale de mim do mesmo jeito simples de sempre. Não mude o timbre da voz. Não vista nenhum ar forçado de solenidade ou de dor. Ria como sempre ríamos das piadas de que desfrutávamos juntos. Brinque, sorria, pense em mim, ore por mim. Que o meu nome seja sempre aquela palavra de todos conhecida que sempre foi. Que ele seja pronunciado sem esforço, sem o fantasma de uma sombra a pairar sobre ele. A vida tem o mesmo significado que sempre teve. É a mesma que sempre foi. Há uma continuidade absoluta e inquebrável. O que é esta morte senão um insignificante acidente? Por que eu deveria ser esquecido se estiver fora do alcance da visão? Estou simplesmente à sua espera, por um intervalo, em um local bem próximo, ao dobrar a esquina. Está tudo bem. Ninguém está ferido. Nada está perdido. Um breve momento e tudo será como era antes. Como riremos das dificuldades da partida quando nos encontrarmos novamente!

Trad.: Nelson Santander

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Death is nothing at all

Death is nothing at all. It does not count. I have only slipped away into the next room. Nothing has happened. Everything remains exactly as it was. I am I, and you are you, and the old life that we lived so fondly together is untouched, unchanged. Whatever we were to each other, that we are still. Call me by the old familiar name. Speak of me in the easy way which you always used. Put no difference into your tone. Wear no forced air of solemnity or sorrow. Laugh as we always laughed at the little jokes that we enjoyed together. Play, smile, think of me, pray for me. Let my name be ever the household word that it always was. Let it be spoken without an effort, without the ghost of a shadow upon it. Life means all that it ever meant. It is the same as it ever was. There is absolute and unbroken continuity. What is this death but a negligible accident? Why should I be out of mind because I am out of sight? I am but waiting for you, for an interval, somewhere very near, just round the corner. All is well. Nothing is hurt; nothing is lost. One brief moment and all will be as it was before. How we shall laugh at the trouble of parting when we meet again!

*N. do T.: “Death Is Nothing At All” é um trecho de um sermão proferido pelo cônego Henry Scott Holland na Catedral de São Paulo, Londres, em 15 de maio de 1910. Este trecho, por vezes modificado e apresentado em forma de verso, é frequentemente erroneamente atribuído a Santo Agostinho. A confusão pode decorrer das semelhanças evidentes entre o texto de Holland e uma das cartas escritas por Santo Agostinho no século IV (Carta 263, endereçada a Sapida). A carta de Santo Agostinho pode ser lida no seguinte link (em inglês. mas o Google Translator dá conta): http://www.newadvent.org/fathers/1102263.htm.

A título de curiosidade e comparação, segue uma das inúmeras versões em português do poema/oração atribuída a Santo Agostinho (que, aliás, ficou muito bonita):

A morte não é nada.
Apenas passei ao outro lado.
Eu sou eu. Tu és tu.
O que fomos um para o outro ainda o somos.

Dá-me o nome que sempre me deste.
Fala-me como sempre me falaste.
Não mudes o tom a um triste ou solene.
Continua rindo com aquilo que nos fazia rir juntos.
Reza, sorri, pensa em mim, reza comigo.
Que o meu nome se pronuncie em casa
como sempre se pronunciou.

Sem nenhuma ênfase, sem rosto de sombra.
A vida continua significando o que significou,
continua sendo o que era.

O cordão de união não se quebrou.
Porque eu estaria fora de teus pensamentos
apenas porque estou fora de tua vida terrena?

Não estou longe,
Somente estou do outro lado do caminho.
Já verás, tudo estará bem.
Redescobrirás o meu coração,
e nele redescobrirás a ternura mais pura.

Seca tuas lágrimas e se me amas.
Não chores mais.

José Paulo Paes – Glauco

Nas duas vezes que voltei a Curitiba
não o encontrei.
Numa tinha viajado para o Rio
na outra tinha viajado para a morte.

E nem havia mais onde encontrá-lo:
o Belas Artes fechara
a redação de O Dia sumira-se no ar
as pensões eram terrenos baldios.

Desarvorado me sentei à mesa
de uma confeitaria na esperança — vã —
de que algum sobrevivente de outros tempos
viesse dar notícias dele.

Só a caminho do aeroporto tive
um relance dos seus óculos kavafianos
mas sem os olhos risonhos
por detrás das lentes:

livres embora da miopia do corpo
seus olhos continuavam no encalço
da eterna
     fugaz
        inatingível
              Beleza Adolescente.

Ruy Belo – Uma vez que já tudo se perdeu

Que o medo não te tolha a tua mão
Nenhuma ocasião vale o temor
Ergue a cabeça dignamente irmão
falo-te em nome seja de quem for

No princípio de tudo o coração
como o fogo alastrava em redor
Uma nuvem qualquer toldou então
céus de canção promessa e amor

Mas tudo é apenas o que é
levanta-te do chão põe-te de pé
lembro-te apenas o que te esqueceu

Não temas porque tudo recomeça
Nada se perde por mais que aconteça
uma vez que já tudo se perdeu

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Mário de Sá-Carneiro – Além-Tédio

Nada me expira já, nada me vive –
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, enfim d’alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital…
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu… Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!

Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.

E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios…

Paris 1913 — 15.

A. M. Pires Cabral — Confesso que voei

1

Mas, se nestas seis décadas e meia
eu fui capaz de algum voo

— concedo: semelhante ao das galinhas,
isto é, rudimentar, desgracioso,
com muitíssimo dispêndio de energia
para pouca ascensão, breve e apenas
em desespero de causa;
em todo o caso uma forma de voo
pelo qual me sustentei no ar
em horas de menos peso —

devo agora, fechado o ciclo do voo,
como os pássaros pousar.
E isto não é como uma loja
que muda de ramo
ou que em fins de Dezembro
fecha para balanço.
Nem como executar
um mandato de detença.
Nem expiar a desordem
de, sendo pedestre, ter voado.
Nem um remate compulsivo
à sedição.

Pousar, é tudo. Regressar
ao afago das coisas da terra.
A terra cobrar por fim o que lhe devo
e eu cobrar dela o que me move
desde a primeira hora.

Voei, está voado.
Nada de nostalgias.

2

Escolho o galho
mais ajeitado à minha condição
e, como a ave a quem o voo se esgota
temporariamente, apeio-me do voo.
E também como a ave que, acabada
de pousar, bate ainda as asas
por duas ou três vezes,
assim as bato eu.
Mas enquanto a ave as bate
como para sacudir delas
os resíduos do voo,
eu faço-o por exigência de equilíbrio:
o ramo verga, já não tenho
a agilidade doutros tempos,
cairia se não batesse as asas.
Isto é: bato-as da mesma forma que
o funâmbulo tenteia a vara
e o cego a bangala.
Para me acomodar mais facilmente
no exterior do voo.

3

Nem o meu pouso é passageiro
como o da ave. Daqui em diante
assistirei ao decurso dos dias
pousado definitivamente.
Eis-me pois pousado, procurando
ajeitar o corpo à nova condição.
Os olhos erguidos para o espaço
donde me escorracei
para saber se porventura risquei
o cristal do ar com o meu voo.
Um arranhão que fosse, que depois dele
o cristal já não fosse cristal.
Não risquei.
Louvado seja Deus.
Depois de tanto voo desastrado
deixo o ar nítido inteiro
como o encontrei.
(Não admira. Sempre tive o cuidado
de sacudir os pés à entrada do voo.)

4

Não. Não é por nostalgia,
que nesta hora extrema de pousar
me lembram as hábeis imprudências do voo,
as suas impudências, a tomada da luz.
Parece-me isto antes gratidão.
Voar foi sempre o mais útil
dos meus gestos inúteis.
A haste de feno ao canto da boca.
Um donativo à carne.
O orifício por onde
se escoavam as enxurradas.
Intensamente pousado,
é isto que me lembra.

Tristan Corbière – Paisagem má

Praias de ossos. A onda estertora
Seus dobres, som a som, na areia.
Palude pálido. O luar devora
Grandes vermes – é a sua ceia.

Torpor de peste: somente a febre
Coze… O duende danado dorme.
A erva que fede vomita a lebre,
Bruxa medrosa que se some.

A lavadeira branca junta os
Trapos surrados dos defuntos,
Ao sol dos lobos… E os sapos. Ei-los,

Anões de vozes melancólicas,
Que envenenam com suas cólicas
Os cogumelos, seus escabelos.

Trad.: Augusto de Campos

Paysage mauvais

Sables de vieux os – Le flot râle
Des glas: crevant bruit sur bruit…
– Palud pâle, où la lune avale
De gros vers, pour passer la nuit.

– Calme de peste, où la fièvre
Cuit… Le follet damné languit.
– Herbe puante où le lièvre
Est un sorcier poltron qui fuit…

– La Lavandière blanche étale
Des trépassés le linge sale,
Au soleil des loups… – Les crapauds.

Petits chantres mélancoliques
Empoisonnent de leurs coliques,
Les champignons, leurs escabeaux.

Ivan Junqueira – O que sabemos

É quase nada o que sabemos
de nós, do que somos, do frêmito
que nos empurra, débeis duendes,
à cena ambígua da existência.

De onde viemos? Para onde vamos?
Quem nos moldou à sua esplêndida
imagem, se a mão não lhe vemos?
Será mesmo que o fez, consciente

do risco que estava correndo,
da imperdoável imprudência
de dar sopro ao ser cujo empenho
é do deus que o criou ir além,

acuá-lo nas sarças e brenhas
do espírito que, com desdém,
dele duvida e nunca o entende
como algo avesso à estrita ciência?

Quem somos nós? Por que, violentos,
em nossa orgíaca estridência,
não nos curvamos ao silêncio
que pulsa nas sombras de um templo?

Por que nos coube essa doença
de sermos assim tão efêmeros
entre duas datas extremas:
a da morte e a do nascimento?

Pergunto-me às vezes se o engenho
de que, solertes, nos valemos
para negar com veemência
o mistério que nos transcende

não terá sido o tal veneno
que nos fez beber a serpente
a mesma que, pérfida, engendra
a queda com que se abre o Gênesis?

Perguntas sem resposta ou senso,
cinzas que se espalham ao vento,
restos mortais de um frio poente
que nos lançou no esquecimento,

no anódino vaivém de um pêndulo,
à margem daquele supremo
momento para além do tempo
em que ninguém nos mede ou prende.

Não somos nada, e ao nosso exemplo
não cabe pagar nem um cêntimo,
que é o que vale, aliás, nosso sêmen.
É apenas isto o que sabemos.

Goethe – Aos leitores amigos

Poetas não podem calar-se,
Querem às turbas mostrar-se.
Há-de haver louvores, censuras!
Quem vai confessar-se em prosa?
Mas abrimo-nos sub rosa
No calmo bosque das Musas.

Quanto errei, quanto vivi,
Quanto aspirei e sofri,
Só flores num ramo – aí estão;
E a velhice e a juventude,
E o erro e a virtude
Ficam bem numa canção.

Trad: Paulo Quintela

An die Günstigen

Dichter lieben nicht zu schweigen,
Wollen sich der Menge zeigen.
Lob und Tadel muß ja sein!
Niemand beichtet gern in Prosa;
Doch vertraun wir oft sub rosa
In der Musen stillem Hain.

Was ich irrte, was ich strebte,
Was ich litt und was ich lebte,
Sind hier Blumen nur im Strauß;
Und das Alter wie die Jugend,
Und der Fehler wie die Tugend
Nimmt sich gut in Liedern aus.

Margaret Atwood – O momento

O momento em que, depois de muitos anos
de trabalho duro e de uma longa jornada,
encontras-te no centro do teu quarto,
casa, meio acre, milha quadrada, ilha, país,
sabendo por fim como lá chegaste,
e dizes: tudo isso me pertence,

é o mesmo momento em que as árvores desatam
seus braços macios ao teu redor,
as aves reassumem suas vozes,
as falésias se partem e desmoronam,
o ar se afasta de ti como uma onda
e não consegues respirar.

Não, eles sussurram. Nada disso te pertence.
Eras um visitante, vezes sem conta
escalando a montanha, fincando tua bandeira, proclamando.
Nós nunca te pertencemos.
Tu nunca nos encontraste.
Foi sempre o contrário.

Trad.: Nelson Santander

The moment

The moment when, after many years
of hard work and a long voyage
you stand in the centre of your room,
house, half-acre, square mile, island, country,
knowing at last how you got there,
and say, I own this,

is the same moment when the trees unloose
their soft arms from around you,
the birds take back their language,
the cliffs fissure and collapse,
the air moves back from you like a wave
and you can’t breathe.

No, they whisper. You own nothing.
You were a visitor, time after time
climbing the hill, planting the flag, proclaiming.
We never belonged to you.
You never found us.
It was always the other way round.