Hoje nós temos os nomes das peças. Ontem
Tivemos a limpeza diária. E amanhã de manhã
Teremos o que fazer depois da ordem de “fogo”. Mas hoje,
Hoje nós temos os nomes das peças. A japonica
Arde como coral em todos os jardins da vizinhança,
E hoje nós temos os nomes das peças.
Isto é o zarelho móvel inferior. E isto
É o zarelho móvel superior, cuja utilidade você entenderá
quando receber sua bandoleira. E este é o elo de encaixe,
Que, no seu caso, você não tem. Os galhos
Mantêm nos jardins suas silentes, eloquentes atitudes,
Que, no nosso caso, nós não temos.
Esta é a trava de segurança, que é sempre liberada
Com um simples movimento do polegar. E por favor não quero
Ver ninguém usando o dedo. Você pode fazer isso com facilidade
Se tiver alguma força no seu polegar. As flores
São frágeis e imóveis, nunca permitem que ninguém as veja
usando seus dedos.
E isto que você pode ver é o ferrolho. O propósito dele
É o de destravar a culatra, como pode ver. Nós podemos deslisa-lo
Rapidamente para trás e para frente: nós chamamos isto de
liberar a retratora. E rapidamente para trás e para frente
As primeiras abelhas estão apalpando e assediando as flores:
Chamam isso de liberar a primavera.
Chamam isso de liberar a primavera: é perfeitamente fácil
Se tiver alguma força no seu polegar: como o ferrolho,
e a culatra, e a peça de armar, e o ponto de equilíbrio,
Que, no nosso caso, nós não temos; e a amendoeira em flor
Silenciosa em todos os jardins e as abelhas indo para trás e para frente
Por hoje nós temos os nomes das peças.
Trad.: Nelson Santander
Um pouco sobre o poema e sua tradução
The naming of parts, escrito em 1942 pelo poeta inglês Henry Reed, é a Parte I de uma coletânea de seis poemas chamada Lições de Guerra. Reed, que era visceralmente contra a guerra, se vale dos poemas desta coletânea para se posicionar, fazendo uma espécie de paródia do treinamento do Exército Britânico durante a Segunda Grande Guerra.
As cinco estrofes de The naming of parts (que traduzi por Os nomes das peças) se estruturam, cada uma, sobre duas vozes: a de um instrutor que ensina o funcionamento de um rifle, valendo-se de uma linguagem rigorosamente técnica, e a que parece ser a de um recruta mais interessado na natureza ao seu redor do que na aula que lhe está sendo ministrada. Ao invés de aprender sobre a arma, ele opta por se apropriar de parte das expressões e palavras do instrutor para transfigura-las poeticamente, dando-lhes novo significado.
Na primeira estrofe, por exemplo, o instrutor esclarece que aquele dia em especial é para dar nome às peças do rifle. O dia anterior fora o de limpar as armas e no dia seguinte eles irão para o campo de batalha. O recruta, todavia, está absorto nas camélias que ardem “como coral em todos os jardins da vizinhança”.
Na estrofe seguinte, o instrutor demonstra como funciona a colocação da correia de transporte do rifle (também conhecida no Brasil como “bandoleira”) e aponta a existência de um dispositivo de encaixe que, no entanto, não existe nos rifles dos recrutas (a passagem é intencionalmente irônica, já que o Exército da Rainha estava mal preparado e mal equipado para a guerra). O recruta não está preocupado com isso: ele está de olho nas árvores vizinhas, cujos galhos se justapõem, encaixando-se uns nos outros silenciosamente, mas de forma eloquente.
As demais estrofes têm a mesma estrutura lógico-formal que opõe o palavreado técnico e monótono do instrutor com a visão poética e reveladora do recruta. Surgem também, aqui e acolá, insinuações de cunho sexual (segundo alguns intérpretes, uma alusão sub-reptícia à sexualidade reprimida dos soldados em razão da guerra) evidenciadas na menção às abelhas polinizando as flores em contraposição ao movimento de ir e vir do ferrolho do rifle. A última estrofe é uma espécie de resumo das lições aprendidas com o instrutor e, por que não?, com o recruta.
A tradução do poema apresentou algumas dificuldades que não sei se consegui resolver satisfatoriamente.
Logo na primeira estrofe, Reed usa os verbos “firing” e “glistens” (em português, “disparar” e “brilhar”, respectivamente, mas que também podem significar “arder”) com o propósito de demonstrar a brutal diferença entre o ato de atirar em alguém e o de iluminar o mundo com a beleza. Em língua portuguesa, os verbos utilizados para designar o disparo de uma arma de fogo são “atirar”, “disparar”, “descarregar”, etc. Ou seja, em língua portuguesa o sinônimo “fogo” não tem um símile em forma de verbo. Por essa razão, e para manter a ponte entre o verbo “firing” (disparar com uma arma de fogo) e o brilho das camélias, optei, por um lado, por me valer da palavra “fogo” extraída de um comando militar (o famoso “Preparar… apontar… Fogo!”) e, de outro lado, usei uma das acepções da palavra “glistens” em português – “arder” – que significa “estar em chamas, abrasado; incendiar-se, queimar” (todas relativas ao fogo), mas que, no caso, está empregada no sentido de produzir brilho, cintilar.
Também na primeira estrofe encontramos a palavra Japonica. A Japonica é uma das espécies da flor conhecida como Camélia, cujo nome científico é Camellia japonica, nativa das florestas do sul do Japão. Reed não escolheu esta flor ou essa espécie de camélia ao acaso. O nome dela remete diretamente ao Japão, que durante a Segunda Guerra mundial se aliou à Alemanha e Itália para formar a Aliança do Eixo, inimiga das forças Aliadas das quais a Inglaterra fazia parte. Em língua portuguesa não é muito comum fora dos círculos especializados o uso de expressões científicas para denominar as plantas em geral. Ninguém além dos botânicos chama a mini-rosa de Rosa chinensis, a margarida de Leucanthemum vulgare ou a Flor-de-lis de Sprekelia Formosissima. Todavia, não é totalmente fora de propósito, nesse caso, o uso do nome científico já que ele se presta a especificar a qual espécie de camélia estamos nos referindo. Assim, fica mantida a alusão poética desejada pelo autor.
Outra dificuldade foi a de identificar corretamente os nomes das peças indicados no poema e tentar encontrar a nomenclatura dessas peças em português, ainda mais considerando o fato de que estamos falando de um rifle da Segunda Guerra Mundial que provavelmente nem mesmo é mais fabricado. Recorri à internet e não sei se consegui encontrar, em português, todos os termos técnicos das peças citadas no poema. O certo é que, em algumas passagens, optei deliberadamente por não buscar o exato termo em nossa língua (embora mantendo o sentido técnico original) para tentar emular a ligação que o texto faz das peças da arma com os devaneios do recruta. “Piling swivel”, por exemplo, poderia ser traduzido como “argola móvel para empilhamento/agrupamento (dos rifles)” – e desconheço se há uma peça com a mesma utilidade em rifles brasileiros, e qual o nome que lhe é dado no Brasil. No poema, a peça “piling swivel” se correlaciona com os galhos de árvores que “Mantêm nos jardins suas silentes, eloquentes atitudes”. Assim, optei por traduzir o nome desta peça por “elo de encaixe” que, além de, imagino eu, indicar corretamente a função da referida peça, faz referência aos galhos de inúmeras árvores que crescem muito próximas, e que acabam encaixando-se uns aos outros.
Dentro ainda dessa técnica de alusão “arma-natureza” utilizada pelo poeta, uma expressão em especial se mostrou impossível de ser recuperada nos dois significados em que ela é usada no poema. A expressão “easing the spring”, em inglês, pode tanto significar “soltar/libertar/distensionar a mola” como “soltar/libertar a primavera”. Habilmente, Reed se vale das duas acepções desta expressão para justapor o universo da guerra com o da natureza em uma estrofe com evidente conotação sexual (bem por isso, traduzi “cocking-piece” por “peça de armar”). Foi, obviamente, impossível encontrar uma palavra em português que significasse ao mesmo tempo “mola” e “primavera”. Por essa razão, não sendo possível encontrar uma palavra homônima perfeita símile à do poema, optei por uma palavra (“retratora”, relativa à mola retratora e recuperadora do ferrolho) que recuperasse ao menos parte da fonética da sua correspondente no último verso da estrofe (“primavera”).
Segue o poema em sua versão original, para comparação:
The naming of parts
Today we have naming of parts. Yesterday,
We had daily cleaning. And tomorrow morning,
We shall have what to do after firing. But today,
Today we have naming of parts. Japonica
Glistens like coral in all of the neighboring gardens,
And today we have naming of parts.
This is the lower sling swivel. And this
Is the upper sling swivel, whose use you will see,
When you are given your slings. And this is the piling swivel,
Which in your case you have not got. The branches
Hold in the gardens their silent, eloquent gestures,
Which in our case we have not got.
This is the safety-catch, which is always released
With an easy flick of the thumb. And please do not let me
See anyone using his finger. You can do it quite easy
If you have any strength in your thumb. The blossoms
Are fragile and motionless, never letting anyone see
Any of them using their finger.
And this you can see is the bolt. The purpose of this
Is to open the breech, as you see. We can slide it
Rapidly backwards and forwards: we call this
Easing the spring. And rapidly backwards and forwards
The early bees are assaulting and fumbling the flowers:
They call it easing the Spring.
They call it easing the Spring: it is perfectly easy
If you have any strength in your thumb: like the bolt,
And the breech, and the cocking-piece, and the point of balance,
Which in our case we have not got; and the almond-blossom
Silent in all of the gardens and the bees going backwards and forwards
For today we have naming of parts.