Herberto Helder – de “Poemas Canhotos”

em boa verdade houve tempo em que tive uma ou duas artes poéticas,
agora não tenho nada:
sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica
e traço meia dúzia de linhas:
as vezes apenas duas ou três linhas;
outras, vinte ou trinta:
houve momentos em que fui apanhado neste jogo e cheguei
a encher umas quantas páginas do caderno
aconteceu também por vezes que o papel pareceu
estremecer,
mas o mundo, não: nunca senti que o mundo estremecesse
sob as minhas palavras escritas,
o que já senti, e é de facto um pouco estranho, foi isto:
enquanto escrevia, o mundo parecia deslocar-se,
e quando eu chegava ao fim das linhas escritas,
sabia que estava tudo feito,
sentia que deveria morrer
mas, como se vê, nunca o mais simples atingiu em mim a
sua própria profundidade

Goliarda Sapienza – Para minha mãe

Quando eu voltar
será noite fechada
Quando eu voltar
as coisas estarão quietas
Ninguém vai me esperar
naquele leito de terra
Ninguém vai me acolher
naquele silêncio de terra

Ninguém vai me consolar
por todas as partes já mortas
que carrego em mim
com resignada impotência
Ninguém vai me consolar
pelos instantes perdidos
pelos sons esquecidos
que há tempo
viajam ao meu lado e tornam denso
o respiro, lamacenta a língua

Quando eu chegar
apenas uma fenda
vai conseguir me segurar e mão nenhuma
vai aplanar a terra
sob as faces gélidas e mão
nenhuma vai se opor à pressa
da pá ao seu ritmo indiferente
para aquele fim estranho, repugnante

Pudesse eu naquela noite
vazia pôr a minha testa
no teu grande seio de sempre
Pudesse eu me envolver
com o teu braço e segurando
nas mãos o teu pulso delgado
por pensares agudos
por terrores cortantes
pudesse eu naquela noite
sentir de novo
o meu corpo ao lado do teu vigoroso
materno
gasto de partos tremendos
arrebentado de longas uniões

Mas tão tardia
a minha noite e já
não podes esperar mais
E ninguém vai aplanar a terra
sob o meu flanco
ninguém vai se opor à pressa
que agarra os homens
perante um caixão

Trad.: Valentina Cantori

A mia madre

Quando tornerò
sarà notte fonda
Quando tornerò
saranno mute le cose
Nessuno m’aspetterà
in quel letto di terra
Nessuno m’accoglierà
in quel silenzio di terra

Nessuno mi consolerà
per tutte le parti già morte
che porto in me
con rassegnata impotenza
Nessuno mi consolerà
per quegli attimi perduti
per quei suoni scordati
che da tempo
viaggiano al mio fianco e fanno denso
il respiro, melmosa la lingua

Quando verrò
solo una fessura
basterà a contenermi e nessuna mano
spianerà la terra
sotto le guance gelide e nessuna
mano si opporrà alla fretta
della vanga al suo ritmo indifferente
per quella fine estranea, ripugnante

Potessi in quella notte
vuota posare la mia fronte
sul tuo seno grande di sempre
Potessi rivestirmi
del tuo braccio e tenendo
nelle mani il tuo polso affilato
da pensieri acuminati
da terrori taglienti
potessi in quella notte
risentire
il mio corpo lungo il tuo possente
materno
spossato da parti tremendi
schiantato da lunghi congiungimenti

Ma troppo tarda
la mia notte e tu
non puoi aspettare oltre
E nessuno spianerà la terra

sotto il mio fianco
nessuno si opporrà alla fretta
che prende gli uomini
davanti a una bara

https://escamandro.wordpress.com/2019/03/09/goliarda-sapienza-1924-1996-por-valentina-cantori/

Mário Cesariny – Em todas as ruas te encontro

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

Walt Whitman – Canção de mim mesmo, 48

48

Eu disse que a alma não é mais do que o corpo,
e disse que o corpo não é mais do que a alma,
e nada, nem Deus, é maior para um ser do que esse ser para si mesmo,
e quem quer que ande um estádio sem solidariedade caminha para seu próprio funeral vestindo sua mortalha,
e eu ou tu sem um centavo no bolso podemos comprar a nata da terra,
e vislumbrar com um olho, ou apresentar um grão na sua vagem, confundindo o conhecimento de todas as eras;
e não há negócio ou emprego em que um jovem, seguindo carreira, não possa se tornar um herói;
e não há objeto que seja tão delicado que não posso funcionar como o centro em que se ligam todas as rodas que movem o Universo;
e digo para qualquer homem ou mulher, “Deixe que sua alma esteja tranquila e íntegra perante um milhão de universos.”

E digo para a humanidade, “Não tenha curiosidade sobre Deus”,
pois eu que sou curioso sobre todas as coisas não tenho curiosidade alguma sobe Deus.
(Não há uma gama de termos grande o suficiente com a qual eu possa dizer o quanto estou em paz sobre Deus e sobre a morte.)

Ouço e observo Deus em todos os objetos e ainda assim não compreendo Deus minimamente;
não posso compreender quem possa haver que seja mais maravilhoso do que eu.

Por que eu deveria ver Deus melhor do que este dia?
Eu vejo algo de Deus a cada hora das vinte e quatro horas do dia, e a cada momento,
nos rostos dos homens e mulheres eu vejo Deus, e em minha própria face no espelho;
encontro cartas de Deus espalhadas pelas ruas e todas elas são assinadas por Ele,
e deixo-as ficar onde se encontram, pois sei que onde quer que vá,
outras virão pontualmente – para toda a eternidade.

Trad.: Luciano Alves Meira

Song of Myself, 48

I have said that the soul is not more than the body,
And I have said that the body is not more than the soul,
And nothing, not God, is greater to one than one’s self is,
And whoever walks a furlong without sympathy walks to his own funeral drest in his shroud,
And I or you pocketless of a dime may purchase the pick of the earth,
And to glance with an eye or show a bean in its pod confounds the learning of all times,
And there is no trade or employment but the young man following it may become a hero,
And there is no object so soft but it makes a hub for the wheel’d universe,
And I say to any man or woman, Let your soul stand cool and composed before a million universes.

And I say to mankind, Be not curious about God,
For I who am curious about each am not curious about God,
(No array of terms can say how much I am at peace about God and about death.)

I hear and behold God in every object, yet understand God not in the least,
Nor do I understand who there can be more wonderful than myself.

Why should I wish to see God better than this day?
I see something of God each hour of the twenty-four, and each moment then,
In the faces of men and women I see God, and in my own face in the glass,
I find letters from God dropt in the street, and every one is sign’d by God’s name,
And I leave them where they are, for I know that wheresoe’er I go,
Others will punctually come for ever and ever.

Joan Margarit – Ela

É tempo de não esperar por ninguém.
Passa o amor, fugaz e silencioso,
como, na distância, um trem noturno.
Não resta ninguém. É hora de voltar
ao desolado reino do absurdo,
ao sentimento de culpa, ao medo vulgar
de perder o que estava, já, perdido.
Ao inútil e sórdido tempo moral.
É hora já de dar-se por vencido
no trabalho solitário, outro inverno.
Quantos restam ainda, e qual o sentido
desta vida onde te procurei,
se já chegou a hora tão temida
de comprovar que nunca exististe?

Trad.: Nelson Santander

Joan Margarit – Ella

Llega el tiempo de no esperar a nadie.
Pasa el amor, fugaz y silencioso
como en la lejanía un tren nocturno.
No queda nadie. Es hora de volver
al desolado reino del absurdo,
a sentirse culpable, al vulgar miedo
de perder lo que estaba, ya, perdido.
Al inútil y sórdido tiempo moral.
Es hora ya de darse por vencido
en el trabajo a solas, otro invierno.
¿Cuántos quedan aún, y qué sentido
tiene esta vida donde te he buscado,
si ya llegó la hora tan temida
de comprobar que nunca has existido?

Paulo Henriques Britto – Lacrimæ rerum

É o lamento das coisas,
a desdita da matéria.
Não tem nada a ver conosco,
com nossa breve miséria,

nosso orgulho de organismo.
É uma questão de moléculas,
que antecede a biologia
por coisa de muitos séculos.

Diante dessa dor arcana
nosso entendimento pasma.
Nem tudo está a vosso alcance,
ó seres de protoplasma.

Philip Roth – Patrimônio (excerto 2)

Ele morreu três semanas depois. Durante uma provação de doze horas, que começou pouco antes da meia-noite de 24 doutubro de 1989 e terminou logo após o meio-dia, ele lutou por cada sorvo de ar com uma erupção impressionante, uma derradeira exibição da tenacidade férrea que havia demonstrado ao longo da vida. Algo digno de ser visto.

Cedinho na manhã de sua morte, quando cheguei ao quarto de primeiros socorros para o qual ele fora levado de casa às pressas, me defrontei com um médico de plantão preparado para tomar “medidas extraordinárias” e ligá-lo a uma máquina de respiração artificial. Sem isso não haveria a menor esperança, embora, desnecessário dizer – acrescentou o médico –, a máquina não pudesse reverter o progresso do tumor, que aparentemente começara a atacar sua função respiratória. O médico também me informou que, por lei, uma vez acoplado à máquina, papai não seria desconectado a menos que voltasse a respirar por conta própria. A decisão precisava ser tomada de imechato e, uma vez que meu irmão ainda estava vindo de Chicago de avião, ela só cabia a mim.

E eu, que havia explicado a papai as cláusulas daquele testamento de saúde e o levara a assiná-lo, não sabia o que fazer. Como dizer não à máquina, se isso significava que ele não precisaria continuar a sustentar aquela batalha estertorante para respirar? Como eu poderia assumir a decisão de que papai diria adeus à vida, a esta vida que só nos é dado conhecer uma única vez? Longe de invocar a declaração que ele assinara, eu estava prestes a ignorá-la e dizer: “Qualquer coisa! Qualquer coisa!”.

Pedi ao médico que me deixasse a sós com meu pai, ou tão a sós quanto era possível em meio à azáfama da sala de emergência. Sentado ali e observando seu combate para continuar a viver, tentei me concentrar no que o tumor já lhe causara. Isso não era difícil, porque naquela maca ele parecia ter lutado cem assaltos com Joe Louis. Pensei nos horrores que inevitavelmente viriam pela frente, mesmo supondo que ele pudesse ser mantido vivo num pulmão de aço. Vi tudo, tudo, e mesmo assim tive de continuar sentado lá por um longo tempo antes de chegar o mais perto dele que pude e, com os lábios quase tocando seu rosto encovado e arruinado, finalmente encontrar forças para sussurrar: “Papai, vou ter que deixar você ir embora”. Ele já estava inconsciente havia horas e era incapaz de me ouvir, mas, em choque, aturdido, chorando, repeti aquilo muitas e muitas vezes até eu mesmo acreditar no que dizia.

Depois disso, só me restou seguir sua maca até o quarto onde o puseram e me sentar ao lado da cama. Morrer dá trabalho, e ele era um trabalhador. Morrer é pavoroso, e papai estava morrendo. Peguei sua mão, que ao menos eu ainda sentia como sendo sua mão, afaguei sua testa, que ao menos ainda parecia ser sua testa, e lhe disse todo tipo de coisas que ele não podia mais registrar. Por sorte, de tudo que eu lhe disse nessa manhã, nada havia que ele já não soubesse.

Fernando Assis Pacheco – R., 1992

Quando os anos passarem
sobre esse teu desgosto
vais ver que te curaste
não de vez mas um pouco

pois o que a gente busca
nas dobras do amor
é a cura para a morte
que não tem consolo

e por falar em f’ridas
até as que mais doem
acabam por fechar
só ela vence o corpo

Vasco Gato – Fera Oculta

       com a Inês
       para o Rodrigo

I

Durante essa tua natação de fera oculta
há um papiro que se desdobra na minha boca
e nunca o futuro teve o sabor
de palavras tão sobejamente pronunciadas
família rapaz umbigo
palavras com que se poderia redigir
tão pouca coisa
se não fosse a reinvenção da tua chegada
inscrita no mundo como pedra preciosa
que não é pedra
antes um modo inalienável de reluzir
pelos braços fora

Sei que haverás de te deslocar
timidamente
por estas ruas e prédios que bocejam
dos nomes que lhes deram
e que contigo terão uma razão mais forte
para conspirarem na longa malha
inanimada
em que se decidem os bichos
a que chamamos homens
e que tão pobremente os têm habitado — garanto-te —
à excepção de uma ou outra carne
mais obstinada em escapar
à bala comum

Para tudo isso terás tempo
ainda que rapidamente te dês conta
de que tudo é já tão tarde
eu próprio lamento o tempo que esperei
e que não terei para testemunhar
o incêndio dos teus olhos
o fruto magro que hás-de roer noite dentro
nalgum bairro de pormenor
quando o escasso amor que te deram
for o alimento oportuno
de um amor mais desenvolto
— estranho comércio, sim —
o tempo que não terei para nos lançarmos
os dois ao mar
nalguma noite desesperada
partilhando o sal de tudo largar
esse gosto tão raro
tão sigilosamente próximo

Perdoa a falta de graça
o tom melancólico a guerra
mas é que vivo numa época
que como muitas antes dela
repetiu os subsídios ao nojo
bateu o sangue em castelo
para se levar ao forno da ambição
deu uma sova às pequenas respirações
— sim, intersticiais, subtis, difíceis —
sem as quais um corpo é apenas
um estorvo à sua própria morte
percebes isso?
um estorvo à sua própria morte

Porque essas finuras de que te falo
são sem dúvida a única ousadia
frente à inevitável conflagração do espaço
— perdoa uma vez mais, eu reformulo —
tudo isto que ainda não vês mas verás
tudo isto que ainda não tocas mas tocarás
não durará mais do que a sua própria
experiência
e é essa a única lei
e é esse o único hino
país tão desabitado que festejas
cada desembarque como se te trouxessem
oceano

Se a eternidade fosse um espelho
o que mostraria?
Isto agora porque é aqui
que vive a luz e é esta a paisagem
que nenhum deus pode apagar
senão à custa da sua fome
não receies por isso deus nenhum
nem eternidade nenhuma
a tua carne é o único tesouro
— sei-o enquanto nadas —
digno de ser embrulhado pela treva

II

Sem saber ainda os traços do teu rosto
sei que me reconhecerei em ti
não fisionomicamente
mas no que é comum a todos os corpos
esses tropeços primeiros que a memória não segura
para que nada possa ser comparado
com o júbilo da encarnação
com a extrema vulnerabilidade
capaz de concentrar em si
as apostas circundantes

Gostaria no entanto de te receber
num outro lugar
não neste boi tombado
que dá pelo nome de vinte e um
peso morto arrastado pelos cornos
apenas para que não o devassem
as moscas
— aprenderás a amar também o trabalho alquímico
das moscas
a sua centralidade nas salas
como se pudessem medir todo o espaço
e concluir que é no meio —
um outro lugar mais consentâneo
com o uso dos dentes
com a urgência de cuidar
com as loucas passadas dos cães

Sinto já a força dos teus dedos sucintos
em torno do meu polegar
o calor que esbanjamos em cada gesto
na imensa consanguinidade
das coisas vivas
não há como fugir-lhe
vamos de mãos dadas com o que nos rodeia
em ininterrupta dedicatória
os dados são lançados e apanhados
sem tocar a mesa
e a sorte sai conforme
a sorte que se der
pois de tudo se sabe apenas
a medida da sua entrega

De ti carregarei até ao fim
o anúncio cardíaco em pleno silêncio
a ruína de uma espécie de solidão
que se julgava inamovível
e que a correnteza dos teus tambores
os cascos do teu nome incógnito
esboroaram num segundo
para no seu lugar
instaurarem uma costura
que nos entrança pelos pulmões
o número 3 deitado / como barca frente às vagas
a equipagem para o futuro

Ouço-te nadar sempre nestes meus dias
de náufrago posto em estrela
sobre as águas
e assim estarás tu também
no teu elemento
os dois talvez quietos
e ser ela quem nos encurta aos dois
para o seu ventre alucinado
a mulher que transpôs comigo
o limiar do cinismo
a angústia do salão espelhado
a tua mãe

III

Os momentos em que a claridade
é um capricho dos eléctricos
e os corpos se demoram nas praças
como se de fato houvesse alma
e devêssemos salva-la
da crueldade e do tédio
são esses os momentos que te desejo
nalguma cidade futura
nalguma encruzilhada de gente
mas sobretudo que haja eléctricos ainda
pois é à janela levantada
de um eléctrico
que a realidade é premente
e o vento toda história do mundo.

Vem isto a propósito
do cansaço em que ando
e que nada tem a ver com a matéria
da existência
– da qual és ainda magma –
antes com este logro quotidiano
em que um homem e uma mulher
se esfalfam para manter à tona
a ampulheta instável dos seus nomes
quando esse punhado de areia
subtraído à erosão dos deuses
merecia o sopro pleno
de um dia sem rodeios
um batismo mais vasto e súbito
que não prendesse cada coisa
aos seus próprios pés

Se algo tiveres absolutamente de fazer
que seja a travessia
das cerradas cordilheiras interiores
em que acabarás por tropeçar
não que sejas empurrado para lá
mas porque vivem numa espécie
de maturação do sangue
que mais do que a pretensa inclinação
dos teus músculos
deverás escutar
os animais noturnos as febres
a tua solidão pactuada
com a longínqua saga
dos que se despenham
em busca de um estrondo musical
pequeníssima nota reverberada
entre pálpebras
que só os escafandristas
puxam para a altura do olhar

Ter dos teus lábios essa sílaba nítida
de língua nenhuma
mera articulação de uma água antiga
que me pende sobre a cabeça
essa a espada que me falta
e que me permitirá afugentar
a angústia da pouca vida
que sempre nos pertence
recuando aos vocábulos indefesos
com que a paisagem
nos entra pela garganta
e nos alaga os pulmões

Ninguém sabe ao certo
com que esmero será capaz de arrombar
a frágil película das horas
e pilhar esses instantes de fraternidade
com o espanto de existir
porque é verdadeiramente digno de pasmo
que uma coisa se precipite
contra a lápide da sua própria duração
e se ache na veleidade de dizer
que está aqui
ponto de chegada
na atribulada imaginação do espaço

IV

Que não te enganem
os que compram as horas por atacado
para do teu suor extraírem
a bandeira de um país que nunca será o da atenção
que nunca será o da morada
mas sempre e sempre
o território homeopático da extinção
em que os troféus são
joelhos vergados à condição de cera
para os soalhos do progresso
cujo verdadeiro nome é
despovoamento

Vender-te-ão o conforto
a perseverança o brio
como se tivéssemos por fito
a acumulação do tempo
sem o fruirmos boca a boca
desesperadamente
garantir o futuro dir-te-ão
sem repararem na estupidez do repto
pois que poder temos nós
sobre as válvulas biológicas
do nosso prazo
para nos arrogarmos a garantir
o que quer que seja
quanto mais o sumo fruto da inexistência
esse futuro-cano-enfiado-na-boca
para ser disparado sem falta
de manhã e ao deitar

Em volta sucedem-se clarões
e abismos inóspitos
os elementos torcem-se na pesca à linha
dos lugares fundamentais
há uma convulsão de panoramas
para o brevíssimo turismo
dos olhos
mas o importante é a matemática mesquinha
do sangue que furtamos uns aos outros
a medalha de carne pútrida
com que esperamos aparecer
na fotografia da época

Que se foda a época
digo-te já
que se foda a sépia dos futuros
eu quero aparecer no dia
do teu nascimento
desarmado como uma árvore
sem outra missão que não
amparar-te o susto
e dizer-te baixinho
bem-vindo ao continente dos frágeis
podes parar de nadar

(…)

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Nos links que seguem, duas ótimas revisões deste poema:

https://www.publico.pt/2014/12/26/culturaipsilon/noticia/a-urgencia-lucida-de-vasco-gato-1679821

José Manuel Caballero Bonald – Transfiguração do perdido

A música convoca as imagens
degradadas do tempo. De onde estão me
chamando, de qual
penumbra, quando retornam
para mim?
          Nada me pertence
senão aquilo que perdi.
Máscara do passado, a memória conflui
para um fundo difuso de alegrias
em que tudo soçobra e se reduz
a nada, onde está minha verdade
tornando-se mais crédula.
         Oh transfiguração
do que já não existe, marca
tenaz do caduco, cúmplice
reclusão da memória
que cinge o tempo em rajadas de música.

Trad.: Nelson Santander

Transfiguración de lo perdido

La música convoca las imágenes
degradas del tiempo. ¿Dónde
me están llamando, desde qué
penumbra, hacía qué día
me regresan?
          Nada me pertenece
sino aquello que perdí.
Máscara del pasado, la memoria confluye
sobre un fondo difuso de alegrías
donde todo zozobra y se reduce
a nada, donde está mi verdad
haciéndose más crédula.
         Oh transfiguración
de lo que ya no existe, marca
tenaz de lo caduco, cómplice
reclusión de la memoria
que ciñe al tiempo en ráfagas de música.