Páladas – da Antologia Palatina, 10.45

Caso te lembres, humano, de como o teu pai ao gerá-lo
 te semeou, cessarás com toda tua arrogância.
Só que Platão sonhador te implantou ilusões de grandeza,
 ao te chamar de imortal, planta provinda do céu.
Vindo do barro, por que pensas grande? Por essa maneira,
 age somente quem quer dar-se aparência solene.
Eis a verdade, se queres ouvi-la: de licencioso
 coito nasceste e a partir de um corrimento poluto

Maria Mercedes Carranza – Kavafiana

O desejo aparece de repente,
em qualquer sítio, a propósito de nada.
Na cozinha, caminhando pela rua.
Basta um olhar, um aceno, um roçar.
Mas dois corpos
têm também o seu amanhecer e o seu acaso,
a sua rotina de amor e de sonhos,
de gestos sabidos até ao cansaço.
Dispersam-se os risos, deformam-se.
Há cinzas nas bocas
e o íntimo desdém.
Dois corpos têm a sua vida
e a sua morte um frente ao outro.
Basta o silêncio.

Trad.: Nuno Júdice

Kavafiana

El deseo aparece de repente,
en cualquier parte, a propósito de nada.
En la cocina, caminando por la calle.
Basta una mirada, un ademán, un roce.
Pero dos cuerpos
tienen también su amanecer y su ocaso,
su rutina de amor y de sueños,
de gestos sabidos hasta el cansancio.
Se dispersan las risas, se deforman.
Hay cenizas en las bocas
y el íntimo desdén.
Dos cuerpos tienen su vida
y su muerte el uno frente al otro.
Basta el silencio.

Amalia Bautista – A pesagem do coração

Que ninguém por tua culpa tenha passado fome,
tenha sentido medo ou frio.
Que ninguém tenha deixado de viver por tua culpa,
nem temido a morte, nem desejado morrer.
Que nenhuma pessoa tenha dito o teu nome com pavor
ou olhado o teu rosto com desprezo.
Que os outros te chorem quando partires.
Assim o teu coração não terá guardado o chumbo
que pesa nas mudanças.
Assim o teu coração será mais leve
que a mais leve pluma.

Trad.: Inês Dias

 

El pesaje del corazón

Que nadie por tu culpa haya pasado hambre,
haya sentido miedo o frío.
Que nadie haya dejado de vivir por tu culpa,
ni temido la muerte, ni deseado morir.
Que ninguno haya dicho tu nombre con espanto
o mirado tu rostro con desprecio.
Que los demás te lloren cuando partas.
Así tu corazón no habrá albergado el plomo
que lastra las mudanzas.
Así tu corazón será más leve
que la más leve pluma.

Jules Laforgue – Penúltima palavra

O Espaço?
– A vida
Ida
Sem traço.

O amor?
– Seu preço:
Desprezo
E dor.

O sonho?
– Infindo,
É lindo
(Suponho).

Que vou
Fazer
Do ser
Que sou?

Isto,
Aquilo,
Aqui,
Ali.

Trad.: Augusto de Campos

 

Avant-dernier mot

L’Espace?
– Mon Coeur
Y meurt
Sans traces…

La Femme?
– J’en sors,
La mort
Dans l’âme…

Le Rêve?
– C’est bon
Quand on
L’achève…

Que faire
Alors
Du corps
Qu’on gère?

Ceci,
Cela,
Par-ci
Par-là…

Tristan Corbière – Epitáfio

Epitáfio

Salvo os amorosos principiantes ou findos que querem principiar pelo fim há tantas coisas que findam pelo princípio que o princípio principia a findar por estar no fim o fim disso é que os amorosos e outros findarão por principiar a reprincipiar por esse princípio que terá findo por não ser mais que o fim retornado o que principiará por ser igual à eternidade que não tem fim nem princípio e terá findo por ser também finalmente igual à rotação da terra onde se findará por não distinguir mais onde principia o fim de onde finda o princípio o que é todo fim de todo princípio igual a todo princípio final do infinito definido pelo indefinido. – Igual um epitáfio igual um prefácio e vice-versa.

SABEDORIA DAS NAÇÕES

Matou-se de paixão ou morreu de preguiça,
Se vive, é só de vício; e deixa apenas isso:
— Não ser a sua amante foi seu maior suplício —

Não nasceu por nenhum lado
E foi criado como mudo,
Tornou-se um arlequim-guisado,
Mistura adúltera de tudo.

Tinha um não-sei-que, — sem saber onde;
Ouro, — sem trocado para o bonde;
Nervos, — sem nervos; vigor sem “garra”;
Alma, — faltava uma guitarra;
Amor, — mas sem bastante fome.
— Muitos nomes para ter um nome. —

Idealista, — sem ideia. Rima
Rica, — sem matéria-prima;
De volta, — sem nunca ter ido;
Se achando sempre perdido.
Poeta, apesar do verso;
Artista sem arte, — ao inverso;
Filósofo — vide-verso.

Um sério cômico, — sem sal.
Ator: não soube seu papel;
Pintor: dó-ré-mi-fá-sol;
E músico: usava o pincel.

Uma cabeça! — sim, de vento:
Muito louco para ter tento;
Seu mal foi singular de mais.
— Seus pés quebrados, pés demais.

Avis rara — mas de rapina;
Macho… com manha feminina;
Capaz de tudo, — bom para nada;
Com certeza, — por certo errada.

Pródigo como o filho errante
Do Testamento, — herança vacante.
Rebelde, — e com receio do lugar
Comum não saía do lugar.

Colorista sem cavalete;
Incompreendido… — abriu o peito:
Chorou, cantou em falsete;
— E foi um defeito perfeito.

Não foi alguém, nem foi ninguém.
Seu natural era o ar bem
Posto, em pose para a posteridade;
Cínico, na maior ingenuidade;
Impostor, sem cobrar imposto.
— Seu gosto estava no desgosto.

Ninguém foi mais igual, mais gêmeo
Irmão siamês de si mesmo.
Viu-se a si próprio ao microscópio:
Micróbio de seu próprio ópio.
Viajante de rotas perdidas,
S.O.S. sem salva-vidas…

Muito cheio de si para aturar-se,
Cabeça “alta”, espírito ativo,
Findou, sem saber findar-se,
Ou vivo-morto ou morto-vivo.

Aqui jaz, coração sem cor, desacordado,
Um bem logrado malogrado.

Trad.: Augusto de Campos

 

Epitaphe

Sauf les amoureux commençans ou finis qui veulent commencer par la fin il y a tant de choses qui finissent par le commencement que le commencement commence à finir par être à la fin la fin en sera que les amoureux et autres finiront par commencer à recommencer par ce commencement qui aura fini par n’être que la fin retournée ce qui commencera par être égal à l’éternité qui n’a ni fin ni commencement et finira par être aussi finalement égal à la rotation de la terre où l’on aura fini par ne distinguer plus où commence la fin d’où finit le commencement ce qui est toute fin de tout commencement égale à tout commencement final de l’infini défini par l’indéfini. — Égale une épitaphe égale une préface et réciproquement.

SAGESSE DES NATIONS

Il se tua d’ardeur, ou mourut de paresse,
S’il vit, c’est par l´oubli; voici ce qu’il se laisse:
— Son seul regret fut de n’être pas sa maîtresse. —
Il ne naquit par aucun bout,
Fut toujours poussé vent-de-bout,
Et fut un arlequin-ragoût,
Mélange adultère du tout.
Du je-ne-sais-quoi. — mais ne sachant où;
De l’or, — mais avec pas le sou;
Des nerfs, — sans nerf; vigueur sans force;
De l’élan, — avec une entorse;
De l’âme, — et pas de violon;
De l’amour, — mais pire étalon.
— Trop de noms pour avoir un nom. —
Coureur d’idéal, — sans idée;
Rime riche, — et jamais rimée;
Sans avoir été, — revenu;
Se retrouvant partout perdu.
Poète, en dépit de ses vers;
Artiste sans art, — à l’envers;
Philosophe, — à tort à travers.
Un drôle sérieux, — pas drôle.
Acteur: il ne sut pas son rôle;
Peintre: il jouait de la musette;
Et musicien: de la palette.
Une tête! — mais pas de tête;
Trop fou pour savoir être bête;
Prenant pour un trait le mot très.
— Ses vers faux furent ses seuls vrais.
Oiseau rare — et de pacotille;
Très mâle… et quelquefois très fille;
Capable de tout, — bon à rien;
Gâchant bien le mal, mal le bien.
Prodigue comme était l’enfant
Du Testament, — sans testament.
Brave, et souvent, par peur du plat,
Mettant ses deux pieds dans le plat.
Coloriste enragé, — mais blême;
Incompris… — surtout de lui-même;
Il pleura, chanta juste faux;
— Et fut un défaut sans défauts.
Ne fut quelqu’un, ni quelque chose.
Son naturel était la pose.
Pas poseur, — posant pour l’unique;
Trop naïf, étant trop cynique;
Ne croyant à rien, croyant tout.
— Son goût était dans le dégoût.
Trop crû, — parce qu’il fut trop cuit,
Ressemblant à rien moins qu’à lui,
Il s’amusa de son ennui,
Jusqu’à s’en réveiller la nuit.
Flâneur au large, — à la dérive,
Épave qui jamais n’arrive…
Trop Soi pour se pouvoir souffrir,
L’esprit à sec et la tête ivre,
Fini, mais ne sachant finir,
Il mourut en s’attendant vivre
Et vécut, s’attendant mourir.
Ci-gît, — cœur sans cœur, mal planté,
Trop réussi — comme raté.

Ivan Junqueira – O tempo que me resta

Qual o tempo que me resta?
Poderei medi-lo em pétalas
de alguma flor que fenece,
a última da sua espécie?

Poderei fazê-lo em décimos
de um segundo que parece
durar mais do que uma década
ou quem sabe todo um século?

O que é o tempo? Uma névoa
que na ampulheta escorrega,
ou algo que se esfarela
como a areia do deserto?

Será o tempo esse périplo
que não finda nem começa
e que flui antes de que Eva
surgisse de uma costela?

Será ele o tal mistério
de que Agostinho, nas prédicas,
foi o mais cabal intérprete
mas nunca nos disse o que era?

Qual o tempo que me resta?
O de um dia ou o que medra
entre o agora e o que me espera
no sol-posto das exéquias?

Jack Kerouac – Richmond Hill Tree Poem

Amontoadas, amarelas folhas de novembro
De uma distinta árvore nua e envergonhadamente castrada
fazem um minúsculo e manso PLICK ao se roçar umas nas outras
preparando-se para morrer – Quando vejo uma folha cair
Eu sempre digo adeus.

Richmond Hill Tree Poem

A cluster of yellow November leaves
in an otherwise bare and sheepish castrated tree
send up a little meek PLICK as they rub together
preparing to die – When I see a leaf fall
I always say goodbye.

Amalia Bautista – S.O.S.

Protege-me do medo e das sombras
defende-me de todas as tristezas,
exila de minha vida o desconsolo,
se puderes, com teu amor, se não
com o fim do mundo ou com a minha morte.

Trad.: Nelson Santander

S.O.S

Protégeme del miedo y de las sombras,
defiéndeme de todas las tristezas,
destierra de mi vida el desconsuelo.
si puedes, con tu amor, y si no puedes,
con el final del mundo o con mi muerte.

Eugénia de Vasconcellos – Lembra

Digo-te isto para que saibas quem és,
às vezes,
esquecemos, confundimos,
desconseguimos e ao fim, desacreditamos,
colam-se-nos os fantasmas
dos vivos e as memórias dos mortos
e da voz faz-se um fio à míngua de palavras –
e onde a palavra não chega, o pensamento
não cria o ato e morre-se, morre-se, morre-se
um dia de cada vez de tanto não ser. Então
digo-te isto para que saibas quem és:
és um ponto suspenso no infinito, e
lembra: o infinito cabe num ponto.

Tarso de Melo – Hoje

Amanhã vai chover mais forte,
todos nós já sabemos.
E é estranha a calma dos rios

Os guarda-chuvas seguem fechados,
os meteorologistas fingem não ter nada com isso,
o barro não demonstra qualquer apreensão,
o vento lambe as roupas secas no varal,
nenhuma janela ainda se fechou.

A água vai vir, forte, como sempre,
engolindo todo o sossego ao redor,
mas os buracos não confessam
as tristes poças de amanhã.

As casas, as coisas, as vidas,
o que sucumbirá ao mar inevitável
não dá sequer um suspiro,
não se despede de nós, de nada.

Plantamos no solo morto
esse esquecimento do futuro
– e tudo o que brota chamamos

hoje.