Nuno Júdice – Jogo

Eu, sabendo que te amo,
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.

Nuno Júdice – Epidemia

Passa de um para o outro através do olhar, de uma palavra,
de um toque de mãos; por vezes, basta um leve suspiro
para adivinhar a febre, e atrás dele descobre-se que
não é preciso cura nem tratamento. Instala-se na cabeça,
no corpo, na boca, nos dedos, sem dor nem cansaço,
apenas aquela ânsia a que se dá o nome de desejo e,
para que abrande, o remédio é ver quem se ama, ouvir
a voz que alivia a solidão, saber onde está, o que faz,
o que veste. E a doença está nos que a evitam, nos
que a não conhecem por ignorância ou por medo,
nos que nunca ousaram e, um dia, rejeitaram o que
se lhes oferecia. Assim, dizem os especialistas,
não evitem o olhar que vos procura, não esqueçam
a palavra que vos chega, tão inesperada; e recebam
sem receio essa mão que tereis sonhado e vos
procura, fazendo com que entreis, para sempre,
no campo dos atingidos pelo mais doce dos contágios.

Maria Mercedes Carranza – Kavafiana

O desejo aparece de repente,
em qualquer sítio, a propósito de nada.
Na cozinha, caminhando pela rua.
Basta um olhar, um aceno, um roçar.
Mas dois corpos
têm também o seu amanhecer e o seu acaso,
a sua rotina de amor e de sonhos,
de gestos sabidos até ao cansaço.
Dispersam-se os risos, deformam-se.
Há cinzas nas bocas
e o íntimo desdém.
Dois corpos têm a sua vida
e a sua morte um frente ao outro.
Basta o silêncio.

Trad.: Nuno Júdice

Kavafiana

El deseo aparece de repente,
en cualquier parte, a propósito de nada.
En la cocina, caminando por la calle.
Basta una mirada, un ademán, un roce.
Pero dos cuerpos
tienen también su amanecer y su ocaso,
su rutina de amor y de sueños,
de gestos sabidos hasta el cansancio.
Se dispersan las risas, se deforman.
Hay cenizas en las bocas
y el íntimo desdén.
Dos cuerpos tienen su vida
y su muerte el uno frente al otro.
Basta el silencio.

Nuno Júdice – Fábula industrial

As chaminés das fábricas tinham
pescoços de cegonha, e quando deitavam
fumo era como se as cegonhas abrissem
as asas. Quando o fumo era preto,
porém, as cegonhas transformavam-se
em corvos de grandes pescoços feitos
de tijolo; e ao contrário das cegonhas
não voavam, mas faziam soar as sirenes
com os bicos metálicos, para que
os operários saíssem do seu ventre
em direção a casa. No dia
seguinte, se o fumo fosse branco, as operárias
agarrar-se-iam às asas da cegonha
e puxá-las-iam, como se fossem
linho, para as enrolar e meter
nos contentores que os barcos esperam
no cais, para as levar para os países
com falta de lençóis. É por isso que
os ninhos de cegonha, nos grandes postes
eléctricos estão vazios; e que as raposas
correm de uma árvore para outra,
à procura de um ramo em que esteja
um corvo, sem conseguirem encontrar
o queijo que a fábula lhes prometeu.

Nuno Júdice, inédito, 31/12/2019

peguei daqui ó: http://poems.bitcliq.com/through-the-looking-glass-2/

Nuno Júdice – Nostalgia de setembro

Quando vinham as nuvens de setembro, já
os pássaros tinham emigrado para além dos mares,
o campo ficava em longos silêncios
que só a passagem dos rebanhos, a caminho
do matadouro, cortava num tropel que ecoava
ainda, depois da paisagem, com os gritos
do pastor e o ladrar dos cães. Eu gostava dessas nuvens
quando começavam as primeiras chuvas, e podia
ouvir o bater dos pingos na janela, empurrados
pelo vento, e o ruído da água a correr nas goteiras,
e a inundar as valetas, arrastando o lixo
e as memórias do verão. Porém, ainda te vejo,
com o vestido encharcado e os cabelos a escorrerem
água para os ombros, como se não te importasses
com a chuva. Nunca soube quem eras, nem
porque passeavas no campo como se estivesse
um dia de sol. Talvez fosses uma sobrevivente do
verão; e ainda hoje me arrependo de não te
ter seguido, para lá da curva do caminho em que
te perdi de vista, para que esse verão continuasse
comigo, para sempre, através da tua imagem.

Nuno Júdice – É isto o amor

Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: “Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?” Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passamos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.

Nuno Júdice – Poema (Arredores)

A brancura
dos ossos, em contraste com a terra argilosa,
com a erva, com a parede arruinada, faz-me lembrar
leite, papel, cal,
e também as tuas mãos – frias. Bebo o seu brilho
numa noturna memória. Uma contaminação de corpos
não reduz a minha solidão; nem a música,
nem o riso, nem o vinho. Lágrimas
numa plenitude de idade. O amor era uma paisagem. A voz
fundia-se numa perspectiva de vento. Palavras perdidas
como coisas, a travessia da tua pele num barco de lábios,
o traçado obscuro dos epitáfios da alma. Caminho
para te dizer uma determinação de sentido,
um destino ignorante dos fragmentos passados em que surges,
de pé, contra a janela, recebendo no rosto a luz
da primavera – imagem
póstuma em que te encontro triste,
e o teu sorriso me faz desejar a morte.

Nuno Júdice – Natal

Deito-me à sombra da árvore sem sombra – a árvore
cujas raízes nascem da infância – e é natal, e
nunca mais chega a meia-noite
dessa noite sem fim. Rezo pelas
mais obscuras incertezas, pelas almas que
hesitam nas encruzilhadas, pelos vagabundos que
esperam a meia-noite para se sentarem à porta da igreja,
na única noite em que têm onde se sentar. Aprendi
com eles o destino dos passos humanos, a ausência
de deus nos caminhos do mundo, o silêncio
do céu nas noites sem lua. Joguei com as suas cartas
enquanto a missa não acabava, aproveitando o calor
que saía pela porta da igreja, e ouvindo o refrão
dos mortos no cemitério do adro. Aceitei
a sua batota – por essas almas que nos ouviam
enquanto o jogo mudava de parceiros. Paguei
o dinheiro que me exigiam à entrada, para que
não tivesse de os acompanhar na barca do tempo; e
vi-os fazerem-me adeus, antes que o esquecimento
os vestisse de obscuridade.

E conto, agora, as bolas douradas que enfeitam
a árvore – sem nunca chegar ao fim. Conto-as, no entanto,
enquanto as vou colhendo, como se fosse o tempo dos
frutos. Uma a uma, essas bolas amontoam-se na minha memória,
dando um rosto a cada um desses que batiam
à porta da noite, pedindo o pão que sobrara do natal. Ouço-os
baterem, agora, à porta do poema; distribuo por eles
cada uma destas palavras, para que as levem consigo – e
eles deixam-me o pó, a cera de velas consumidas até ao fim
da sua eternidade, o refrão dos mortos em resposta
ao latim do padre. Pergunto-lhes o caminho para esse
adro da infância; peço-lhes que me devolvam a moeda que
lhes emprestei para pagarem ao barqueiro. Desaparecem,
um a um, sem nada me dizerem.

Rezem por mim!, digo-lhes. E eles não me ouvem,
como se o seu destino fosse o da sombra desta árvore
sem sombra, de raízes na infância, cujos frutos conto,
um a um, enquanto espero a meia-noite.

Nuno Júdice – O Eterno Retorno

Agora, ao ouvir uma peça de música
Barroca, como se isso servisse para alterar
A cor do céu ou a cor dos sentimentos,
Apercebo-me de que a música é, só,
O que ficou de ti. O resto – amor,
Corpo, palavras, desejo, um riso – ficou
Não sei onde, nem exatamente sei
quando: sei só que um dia ao acordar,
a noite tudo levou com a sua exata
ciência.

Não me lembro, porém, de que gostasses
de música barroca mais do que de outra;
ou de que esse tivesse sido entre nós,
um tema de conversa. Teatro, isso é que
sim: e talvez ambos, e talvez ambos cada um por seu lado
representasse uma comédia provada que,
sem o sabermos, iria acabar no drama
comum. Decepção. Tédio. Nada de transcendente…
Palavra sobre outras
palavras no fim de tudo.

Agora que esta música te trouxe de volta,
Porém, algo deixou aqui de estar certo. A tua
Ausência nesta presença incômoda? Os teus olhos
Que me fixam sem que eu os encontre? Ou
Amor, que me parecia esquecido e vago
Como qualquer alusão superficial? Porém,
O disco chega ao fim. E quando em vez
da tua voz, um silêncio me entra pela alma,
tenho saudades dessa música que não
voltarei a ouvir.

Nuno Júdice – Outra Imagem

Conheço o mundo dos mortos. É frio, com terra
Por cima, restos de tábuas, ossos desfeitos pelos invernos.
Os mortos vêem-nos; de onde eles estão, eles chamam pelos nomes
Familiares, num murmúrio, e o vento dispensa-lhes os sopros
– música de ciprestes. Por isso há quem ande entre as campas
ao fim da tarde, com os ouvidos tapados; quem reze,
entre lábios, datas estéreis como as antigas pedras;
quem persiga a própria sombra, temendo que ela desapareça
sob a erva fresca. Memórias vagas e finais, atormentando-me
num secreto espelho – no canto de mim, absorto
e pálido, quem me diz o nome em silêncio, sem olhos,
sem lábios, sem os cabelos que outrora toquei?