Ursula K. Le Guin – Somos poeira

Somos poeira em sofrimento.
A luz brilha através de nós
como através do spray das ondas, poeira de líquido*
estourando, ou da chuva que cai.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: A escolha dos versos “poeira de líquido / estourando” nesta tradução busca, dentro do possível, preservar a ambiguidade dos versos “dust of water / breaking” no poema original. Esses versos podem ser interpretados de duas maneiras: como vapor gerado pela água que se quebra na praia, evocando imagens de ondas do mar, ou como o rompimento da bolsa de líquido amniótico, associado ao nascimento (em inglês a expressão “water break” serve para designar também o estouro do saco amniótico). Assim, os versos “poeira de líquido / estourando” buscam manter, em nosso idioma, a dualidade de significados presentes no original, destacando a vulnerabilidade e a renovação inerentes à experiência humana.

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We are dust

We are dust in pain.
The light shines through us
as through wave-spray, dust of water
breaking, or the falling rain.

Ursula K. Le Guin – Prece de uma Noite de Janeiro

Sinos badalam, excêntricos ventos
assobiam gelados vindos das terras desérticas
sobre as montanhas. Janus, Senhor
do inverno e dos começos, fendido
e abalado, com duas faces,
sentinela dos portões dos ventos e das cidades,
deus dos insones:
livra-me da gélida inveja
e da ira mesquinha. Abre
minha alma para os vastos
lugares escuros. Diz-me, e diz de novo:
nada nos é tomado, só ofertado.

Trad.: Nelson Santander

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January Night Prayer

Bellchimes jangle, freakish wind
whistles icy out of desert lands
over the mountains. Janus, Lord
of winter and beginnings, riven
and shaken, with two faces,
watcher at the gates of winds and cities,
god of the wakeful:
keep me from coldhanded envy
and petty anger. Open
my soul to the vast
dark places. Say to me, say again,
nothing is taken, only given.

Ursula K LeGuin – Equinócio de 75

Estou farta de homens e mulheres1
mas nem por isso me torno
sentimental e elogio a sabedoria dos animais
(diferentemente de nós, eles são sábios sem elogios).
Nem para olhar as estrelas
preciso ser irônica com astrônomos eruditos
que, afinal, olham
para as estrelas com mais frequência do que eu.

Mesmo doente ainda canto, incansável,
a paixão intelectual.

Não me voltarei, nem mesmo com Jeffers,
para as rochas eternas
que existem antes e depois de nós.2
De que serve uma rocha não vista?

Hoje em dia, a paisagem dentro de mim
é de pedra: montanhas,
estrelas, o céu aberto.
Nem mesmo árvores. As praias
vazias no crepúsculo.

Uma estrela
é uma pedra em chamas.
Uma mente, um olho
são pó de pedra, matéria das estrelas,
e a luz que os preenche
é a luz.

Seriam essas costas cinzentos por onde caminho
as margens do início
ou as margens do último capítulo?

Não sei. Eu caminho ali
sozinha, nos limites,
irada, temerosa, e incerta,
com meus olhos bem abertos.

— 1977

Trad.: Nelson Santander

N. do T.:

1. O título “Equinócio de 75” faz referência ao fenômeno astronômico do equinócio, que ocorre duas vezes por ano, quando o dia e a noite possuem a mesma duração.

2. Referência ao poema “Oh, Lovely Rock”, de Robinson Jeffers

Equinox ‘75,

I am sick of men and women
but am not therefore going
sentimental and praising the wisdom of animals
(unlike us, they are wise without praise).
Nor in order to look at the stars
do I have to be snide about learn’d Astronomers,
who after all look
at the stars more often than I do.

In sickness I still sing, dogged,
the intellectual passion.

I will not even with Jeffers
turn to the rocks enduring
before us and after.
what good is a rock not looked at?

The landscape within me these days
is of stone: mountains,
stars, the open sky.
Not even trees. The beaches
empty in twilight.

A star
is a stone on fire.
A mind, an eye
is stone-dust, is star-stuff
and the light that fills it
is the light.

Are those grey coasts I walk on
the shores of the beginning
or the margins of the last chapter?

I do not know. I walk there
alone on the edges
angry, afraid, and uncertain
with my eyes wide open.

— 1977

Ursula K. Le Guin – Parentesco

Ardendo muito lentamente, a grande árvore da floresta
se ergue da sutil cavidade de neve
derretida ao seu redor pelo brando e duradouro
calor de seu ser e de sua vontade de ser
raiz, tronco, ramo, folha, e de conhecer a
terra escura, a luz do sol, o toque do vento, o canto do pássaro.

Desenraizados, desassossegados e de sangue quente, nós
ardemos em labaredas que nos cegam para este lento,
elevado e fraterno fogo da vida, tão forte
agora quanto na brotação, dois séculos atrás.

Trad.: Nelson Santander

Kinship

Very slowly burning, the big forest tree
stands in the slight hollow of the snow
melted around it by the mild, long
heat of its being and its will to be
root, trunk, branch, leaf, and know
earth dark, sun light, wind touch, bird song.

Rootless and restless and warmblooded, we
blaze in the flare that blinds us to that slow,
tall, fraternal fire of life as strong
now as in the seedling two centuries ago.

Ursula K. Le Guin – Como me parece

No vasto abismo antes do tempo, o eu
não existe, e a alma se mistura
com a névoa, a rocha e a luz. No tempo certo,
a alma atrai o nebuloso eu para o ser.
Então, lentamente, o tempo petrifica o eu
enquanto ilumina a alma,
até que a alma perde o controle do eu
e ambos se libertam e podem retornar
à vastidão e dissolver-se em luz,
a duradoura luz depois do tempo.

Trad.: Nelson Santander

How it seems to me

In the vast abyss before time, self
is not, and soul commingles
with mist, and rock, and light. In time,
soul brings the misty self to be.
Then slow time hardens self to stone
while ever lightening the soul,
till soul can loose its hold of self
and both are free and can return
to vastness and dissolve in light,
the long light after time.

Ursula K. Le Guin – Hino ao tempo

O Tempo diz “Que haja”
e instantaneamente, a todo instante,
existe espaço e o esplendor
de cada galáxia brilhante.

E olhos contemplando o céu cintilante.
E a dança dos mosquitos, tremulante.
E a extensão do mar.
E a morte, e o azar.

O tempo deixa espaço
para ir e voltar para casa
e no ventre do tempo
tudo começa e acaba.

Tempo é ser e ser é tempo
é tudo o mesmo elemento,
o brilho, a visão,
a abundante escuridão.

Trad.: Nelson Santander

Hymn to time

Time says “Let there be”
every moment and instantly
there is space and the radiance
of each bright galaxy.

And eyes beholding radiance.
And the gnats’ flickering dance.
And the seas’ expanse.
And death, and chance.

Time makes room
for going and coming home
and in time’s womb
begins all ending.

Time is being and being
time, it is all one thing,
the shining, the seeing,
the dark abounding.