Joan Margarit – Banheiro

Cuido para que não caias ao banhar-te,
e ao secar-te as costas sigo suavemente
a grande cicatriz da espinha.
O futuro está sempre na janela.
Tua vida é este pequeno espaço
de tua cama e tua música, este céu
de umas poucas pessoas e uma casa.
E pela primeira vez
não estarei mais contigo.
Não virei mesmo que me chames.
Ficarei te olhando
nas fotografias dos álbuns
que folheias amiúde. Teu herói
ainda não aprendeu a lidar com a morte.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Joan Margarit – Cuarto de Baño

Cuido que no te caigas al ducharte,
y al secarte la espalda sigo con suavidad
la larga cicatriz del espinazo.
El futuro está siempre en la ventana.
Tu vida es este pequeño espacio
de tu cama y tu música, este cielo
de unas pocas personas y una casa.
Y por primera vez
ya no estaré contigo.
No vendré aunque me llames.
Me quedaré mirándote
en las fotografía de los álbumes
que hojeas a menudo.
Tu héroe no ha aprendido aún a morir.

Manuel António Pina – Todas as palavras

As que procurei em vão,
principalmente as que estiveram muito perto,
como uma respiração,
e não reconheci,
ou desistiram e
partiram para sempre,
deixando no poema uma espécie de mágoa
como uma marca de água impresente;
as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
nem foram capazes de dizer-me;
as que calei por serem muito cedo,
e as que calei por serem muito tarde,
e agora, sem tempo, me ardem;
as que troquei por outras (como poderei
esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?);
as que perdi, verbos e
substantivos de que
por um momento foi feito o mundo
e se foram levando o mundo.
E também aquelas que ficaram,
por cansaço, por inércia, por acaso,
e com quem agora, como velhos amantes sem
desejo, desfio memórias,
as minhas últimas palavras.

Heinrich Heine – Chegou a morte

Chegou a morte – agora vou
Dizer o que o orgulho não
Me permitiu: meu coração
Tão só por ti pulsou, pulsou.

Já estou fechado no ataúde,
Descem-me à cova. A calmaria
Me abraça enfim, mas tu, Maria,
Por mim irás, muito amiúde,

Chorar, e pra quê, afinal?
Consola-te, este é o destino
Humano: o que há de bom e fino
E grande sempre acaba mal.

Trad.: André Vallias

Es kommt der Tod

Es kommt der Tod — jetzt will ich sagen,
Was zu verschweigen ewiglich
Mein Stolz gebot: für dich, für dich,
Es hat mein Herz für dich geschlagen!

Der Sarg ist fertig, sie versenken
Mich in die Gruft. Da hab ich Ruh.
Doch du, doch du, Maria, du
Wirst weinen oft und mein gedenken.

Du ringst sogar die schönen Hände —
O tröste dich — Das ist das Loos,
Das Menschenloos: — was gut und groß
Und schön, das nimmt ein schlechtes Ende.

Jorge Luis Borges – O cego

I

Foi despojado do diverso mundo,
Dos rostos, que ainda são o que eram antes,
Das ruas próximas, hoje distantes,
E do côncavo azul, ontem profundo.

Dos livros lhe restou só o que deixa
A memória, essa fórmula do olvido
Que o formato retém, não o sentido,
E que apenas os títulos enfeixa.

O desnível espreita. Cada passo
Pode levar à queda. Sou o lento
Prisioneiro de um tempo sonolento

Que não registra aurora nem ocaso.
É noite. Não há outros. Com o verso
Lavro este meu insípido universo.

Trad.: Augusto de Campos

El ciego

I

Lo han despojado del diverso mundo,
De los rostros, que son lo que eran antes.
De las cercanas calles, hoy distantes,
Y del cóncavo azul, ayer profundo.

De los libros le queda lo que deja
La memoria, esa forma del olvido
Que retiene el formato, no el sentido,
Y que los meros títulos refleja.

El desnivel acecha. Cada paso
Puede ser la caída. Soy el lento
Prisionero de un tiempo soñoliento

Que no marca su aurora ni su ocaso.
Es de noche. No hay otros. Con el verso
Debo labrar mi insípido universo.

Joseph Stroud – Lázaro em Varanasi

De uma pira no flamejante ghat1,
um cadáver se ergue lentamente entre as chamas.
Como se lembrasse de algo importante.
Como se quisesse olhar ao redor uma última vez.
Como se finalmente tivesse algo a dizer.
Como se houvesse uma saída para isso.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Lazarus In Varanasi

From a pyre on the burning ghat
a corpse slowly sits up in the flames.
As if remembering something important.
As if to look around one more time.
As if he has something at last to say.
As if there might be a way out of this.

  1. Os ghats são conjuntos de degraus que levam à beira de rios sagrados na Índia, tradicionalmente usados para banhos rituais, cerimônias religiosas e cremações. Varanasi, mencionada no título do poema, é uma cidade situada às margens do rio Ganges (considerado sagrado pelos indianos), reconhecida por suas cerimônias de cremação e sua profunda ligação com a espiritualidade e os ritos mortuários. ↩︎

Joseph Stroud – Lendo Kaváfis sozinho na cama

Eu, também, me lembro do passado, meu quarto iluminado por velas,
e da noite em que ela entrou e tocou meu rosto
com seu rosto, com boca e língua e lábios,
do pomar à noite, do odor das frutas,
seus seios – lembra, corpo? – aquele quarto,
lembra? – nossos gritos, as velas bruxuleantes?

Trad.: Nelson Santander

Reading Cavafy Alone In Bed

I, too, remember the past, my room lit by candles,
and the night she entered and touched my face
with her face, with mouth and tongue and lips,
in the orchard night, in the odor of fruit,
her breasts — remember, body? — that room,
remember? — our cries, the flickering candles?

Konstantinos Kaváfis – Lembra, corpo…

Lembra, corpo, não só o quanto foste amado,
não só os leitos onde repousaste,
mas também os desejos que brilharam
por ti em outros olhos, claramente,
e que tornaram a voz trêmula – e que algum
obstáculo casual fez malograr.
Agora que isso tudo perdeu-se no passado,
é quase como se a tais desejos
te entregaras – e como brilhavam,
lembra, nos olhos que te olhavam,
e como por ti na voz tremiam, lembra, corpo.

Trad.: José Paulo Paes

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Pedro Mexia – “O fogo, o ferro, o futuro”

Eras um sustento,
eras um segredo,
uma feroz tentativa.

Eras a roupa do corpo
feito estandarte
a caminho de casa
e as tuas mãos metade das minhas.

Eras um fascínio,
eras um fracasso,
eras a chama que nunca te queimou,
o sul, o sufoco,
a madrugada.

Eras um tumulto
de éguas e galgos,
a minha impaciência,
o meu verde vivo.

Eras o que nunca podias,
assombração sem fantasia
descalça e abrigada,
loureiro da Aquitânia.
Eu era o viúvo, o tenebroso,
consolado na água
que de súbito secou.

Eras o que foste,
metáfora do que eu
tanto te quis.
O fogo, o ferro, o futuro.