Nelson Santander – Dois capítulos perdidos de Memórias Póstumas de Brás Cubas

Capítulo ***

ESCOBAR

À entrada do teatro São Pedro, deparei-me com Escobar, um comerciante do ramo cafeeiro que eu conhecera por intermédio do meu cunhado Cotrim, com quem ele mantinha relações mercantis. Natural de Curitiba e ex-seminarista, Escobar começava a prosperar na capital, após um início modesto de carreira que fora impulsionado pela ajuda financeira aviada pela viúva do ex-Deputado Pedro de Albuquerque Santiago. Não faças mau juízo da viúva, caro leitor; o próprio Escobar me confidenciou que ela havia cedido o capital a título de empréstimo, exclusivamente por ingerência de seu filho único, Bentinho, que vinha de ser o melhor amigo de Escobar desde os tempos do seminário. Era de conhecimento geral que Escobar possuía uma certa habilidade ou vocação para administrar seus próprios recursos. E os dos outros também. Dizia-se no Andaraí que era dado a aventuras amorosas e que frequentava a casa de Bentinho e sua esposa Capitolina com muita frequência e em horários pouco comuns.

– Escobar, quanto tempo!

– Brás, que satisfação em revê-lo! Estava mesmo precisando falar com você.

Enquanto falava, Escobar me levou para um canto reservado sob a marquise do teatro, quase na esquina. Ele parecia deveras animado, o que me causou estranheza, pois sempre o tivera por reservado e pouco afeito ao alarde.

– Ouvi dizer que você alugou uma casa na Gamboa, perguntou.

Tive um sobressalto. Então já se comentava na cidade acerca do lugar que eu reservara para meus encontros com Virgília? Se Escobar estava sabendo, era possível que a história também já tivesse chegado aos ouvidos do Lobo Neves. Depois do episódio da carta anônima, Virgília me disse que o marido andava muito desconfiado. Será que ele já tinha ouvido alguma coisa sobre a Gamboa?

– Na verdade, a casa não me pertence, respondi; é da dona Plácida, uma senhora que foi agregada na casa de uma velha amiga. Eu apenas fiz um pequeno empréstimo e subscrevi algumas promissórias para que a pobre pudesse dar a entrada.

– Sei, respondeu ele com um meio sorriso; estou eu também à procura de uma casa como essa para acomodar a criada de uma amiga…

As palavras meticulosamente selecionadas e o olhar malicioso com que foram ditas deixaram pouca margem para dúvida: Escobar procurava estabelecer aquela espécie de relação de cumplicidade que às vezes há entre dois homens que se encontram na mesma situação de ilicitude matrimonial. Eu não tinha a menor intenção de manter tal nível de vínculo com aquele sujeito. Não confiava nele. Um homem que se prestava ao papel de comborço do melhor amigo não era alguém com quem se pudesse compartilhar segredos. Para mim, Escobar tinha o caráter de quem seria capaz de enviar um bilhete anônimo ao Lobo Neves apenas para ver o teatro em chamas.

– Foi dona Plácida quem fechou pessoalmente o negócio, respondi de forma seca, começando a caminhar em direção à entrada do teatro.

– Que pena, disse ele, olhando divertido para mim enquanto me acompanhava; tenho uma certa urgência em encontrar algo. A criada que quero ajudar não é casada e está no início de uma gravidez. Quero acomodá-la antes que o estado dela se dê a mostrar. Minha amiga não deseja escândalos.

Então era verdade! Não havia criada alguma. Corria o boato de que dona Capitolina estava grávida. E que Bentinho não era o pai… Não sabia o que pensar disso. Embora eu também mantivesse um consórcio amoroso com uma mulher casada, começava a desenvolver, sem entender bem por que, um sentimento desconfortável de aversão por Escobar. Não conseguia precisar a causa exata daquela sensação. A princípio, pensei que minhas fidúcias decorriam de um desejo próprio por uma espécie de reserva de mercado no ramo dos amores ilícitos. Logo acudi que tal vaidade era uma impossibilidade: provavelmente havia centenas de homens na corte em situação semelhante à minha. Rapidamente compreendi que meu asco por Escobar decorria, na verdade, de um certo ciúme projetivo em relação à situação dos homens traídos em geral. Com efeito, o leitor pode não acreditar, mas às vezes eu fazia um exercício mental de projeção, colocando-me no lugar do Lobo Neves – embora raramente e despido de remorso. E, conquanto não me identificasse em nada com o Bentinho – um sujeito fechado, mal-humorado e desconfiado, com fama de sensível – o que acontecia com ele não me dava nenhuma satisfação particular. Ademais, Escobar se me apresentava como um reflexo mais limitado e menos pretensioso de mim mesmo – uma imagem que não parecia nem um pouco agradável.

– Preciso adentrar, a peça certamente já se iniciou, disse eu, impaciente; pedirei a Dona Plácida que pergunte nas redondezas se alguém sabe de alguma casa para vender ou alugar.

Ele pareceu se lembrar de algo. Contou-me então que estava a caminho da casa de um amigo para discutir um interdito proibitório – presumi logo que o amigo fosse o Bentinho. Antes de partir, pediu-me para manter discrição em relação às suas intenções com a casa, “para evitar maledicências desnecessárias”. Redargui que não se preocupasse.

Ele se despediu e estava prestes a partir, mas se voltou novamente para mim:

– Esquecia-me de contar-lhe; outro dia, em São Cristóvão, encontrei com uma amiga em comum, Virgília…

Olhei-o desconfiado. Ele continuou:

– Ela ia triste, parece que o marido havia sido forçado a desistir da nomeação para presidente de província. Ela me disse que você seria Secretário, é verdade?

– Ainda estava avaliando a conveniência…

– Tomamos um café, continuou ele. Ela é uma companhia muito agradável. E que mulher espetacular! Que magníficos braços ela tem! Mas desconfio de algo…

– Do que suspeita?

– Acredito que ela não é feliz no casamento, respondeu. Vendo meu olhar desconfiado ele continuou: Como eu sei? Bem, você sabe como as mulheres são, elas geralmente evitam abordar certos assuntos, especialmente com homens casados. No entanto, naquele dia no café, Virgília estava especialmente eloquente.

Chegamos a uma das portas de entrada e paramos por um momento. Escobar trazia no rosto uma expressão divertida e gaiata. Segurava levemente meu braço para impedir que eu fugisse.

– Sabe, ela até me confessou algo bastante indiscreto… – disse ele.

– Sim?, acudi eu, já alarmado.

– Disse-me que não tinha um casamento satisfatório, foi sua resposta. Confesso que não me incomodaria em ajuda-la com alguns dos problemas dela…

Tenta imaginar tu, leitor, o pasmo que experimentei! Não era para mim nenhuma novidade a indiscrição e lascívia do Escobar. Mas Virgília confessando insatisfações matrimoniais a um homem conhecido por sua infidelidade à esposa e ao melhor amigo? Ela sequer havia-me dito que tinha se encontrado com Escobar. Sobre o que mais teriam conversado os dois? Teria sido ela a revelar-lhe sobre a Gamboa? As garras do ciúme enterraram-se-me no coração; sentia-me uma espécie de Lobo Neves de véspera. Súbito, me ocorreu o óbvio: se ela trai o marido por que não trairia também o amante?

– Se eu fosse você, não me metia com ela, respondi com aspereza; o marido tem fama de valente e já me confessou que não hesitaria em atirar em quem se aproximasse da esposa, a quem ele idolatra.

Escobar sorriu levemente. Aquele esgar malicioso denotava que ele sabia de tudo: da traição de Virgília e de minha posição privilegiada nesse evento doméstico. De minhas inseguranças em relação ao nosso relacionamento. E de que tudo o que eu podia fazer era inventar essa mentira disparatada sobre o Lobo Neves – que apenas no nome carregava vagas evocações de ferocidade.

Não sei se explico o ódio que senti contra Escobar naquele momento. Desejei que ele se afogasse na praia do Flamengo, onde costumava nadar quase todos os dias, mesmo com o mar bravio.

– Vou levar isso em consideração, respondeu ele, ainda sorrindo daquele jeito velhaco – e se despediu novamente.

Capítulo ****

UM CUBAS! (II)

Permaneci à porta do teatro, sem ânimo para entrar mas com nenhum desejo de partir. Recordava-me da conversa que tivera com Virgília naquela tarde, quando ela me contou sobre a carta anônima que o marido recebera dias antes, alertando-o contra mim. Lembrei-me do gesto de recuo que ela fez quando, à saída, pousei-lhe um beijo à testa. Era evidente que já se cansara de mim. Pensei também no Bentinho, destinado a criar como seu, sem jamais o saber, o filho que, a se dar crédito ao que dizia o vulgo, o amigo fizera em sua esposa. Um amontoado de sentimentos mal-costurados revolviam em mim. Ciúme, desesperança, raiva e autocomiseração compunham um todo indigesto que me mantinha inerte à porta do teatro.

Enquanto mergulhava em tais pensamentos, avistei, num vislumbre, através da porta aberta, Nhá-loló, acompanhada de seu pai, o Damasceno. Lembrou-me o dia em que a conheci, naquele jantar em casa de Sabina, de como seus olhos permaneceram fixos em mim durante toda a noite. Próximos a eles, vi também um deputado conhecido ao lado da esposa, filha do ministro da Justiça. Estavam rodeados por um pequeno séquito de sabujos (Damasceno era um deles). A imagem dos rapapés suscitou em mim a nostalgia daquele velho desvanecimento que me acompanhou até a morte e espertou novamente aquela paixão pela notoriedade que, em última instância, acabaria por me matar.

Senti meu ânimo revigorado e até me esqueci por um instante de Virgília quando, enfim, decidi ingressar no teatro. Quais eram, afinal, meus reais sentimentos por ela naquela época? Ainda a amava? Mesmo hoje, aqui na terceira margem do rio, não saberia dizê-lo. Contudo, a maneira como meu ânimo se elevou assim que vislumbrei Nhá-loló sugeria, ao menos, que minha atenção já não se depositava unicamente em Virgília.

Por que, então, as insinuações de Escobar haviam me aborrecido tanto? Obviamente, como homem, não gostava de pensar na ideia de ser derrotado na disputa pelo amor de uma mulher, sobretudo porque não poderia recorrer a soluções drásticas – como desafiar o peralta para um duelo – uma vez que a mulher em questão não me pertencia. O amor-próprio, nessas horas, se expande ao ponto do apego e do despeito se confundirem com ciúme. Não o confirmam as Escrituras? “Vaidade de vaidades, tudo é vaidade”

Mas o que verdadeiramente me desagradava era o fascínio que um sujeito tão vulgar e mal-nascido como Escobar parecia despertar nas mulheres. Como Virgília poderia cogitar substituir um puro-sangue por um matungo?

Ocorreu-me que Virgília pudesse estar repetindo o lance que havia culminado na derrota das minhas pretensões matrimoniais, anos atrás, quando, sem maiores explicações, ela me substituiu pelo Lobo Neves. A diferença é que então éramos todos solteiros e a preterição de um pretendente por outro não passava de um capricho feminino socialmente aceitável. Virgília estava agora casada e eu era seu amante. Ao aceitar a possibilidade de me substituir por outro, ela deixava transparecer uma vontade de explorar outras vias escusas além daquelas que vínhamos trilhando.

Não nego que eu via um certo espírito empreendedor em sua atitude; só não me agradava a ideia de ser eu o negócio a ser sucedido para que ela alcançasse a glória…

Veio-me à memória a expressão de indignação que meu pai bradou quando Virgília me deixou pelo Lobo Neves:

– Um Cubas!

Aquela frase ecoou em meu pensamento e continuei repetindo-a mentalmente, enquanto procurava sofregamente o camarote de Nhá-loló.

– Um Cubas!

Convém intercalar o presente capítulo e o anterior entre a terceira e a quarta oração do capítulo XCVIII.

NOTAS SOBRE ESSA NARRATIVA

Dia desses, em uma página do Facebook, alguém que eu não conhecia nem de vista nem de chapéu postou um trecho curto propondo um exercício imaginativo: e se Machado tivesse promovido um encontro entre Capitu e Brás Cubas?

Comecei a tentar imaginar como seria, mas me ocorreu algo melhor: e se, em vez disso, o encontro fosse entre Brás e Escobar? O contraste entre o bem nascido Brás, típico representante da aristocracia oitocentista e o arrivista Escobar, arquétipo da burguesia do século XIX, poderia resultar em uma cena ainda mais interessante.

Ao iniciar minha narrativa de cara deparei-me com uma dificuldade. Os fatos narrados em Memórias Póstumas de Brás Cubas ocorrem entre 1805 e 1869, respectivamente as datas do nascimento e da morte de Brás. Não é possível precisar por quanto tempo e em que período Brás e Virgília viveram o seu relacionamento ilícito, pois Machado não quis dar datas exatas. Sabemos, todavia, que Brás se encontrou com Virgília uma vez mais, anos depois do término do relacionamento de ambos, em 1855 (Capítulo 130). Sabemos também que, àquela altura, ambos já estavam na fase de madureza pela descrição que Brás faz de sua ex-amante (“A primeira vez que pude falar a Virgília, depois da presidência, foi num baile em 1855. Trazia um soberbo vestido de gorgorão azul, e ostentava às luzes o mesmo par de ombros de outro tempo. Não era a frescura da primeira idade; ao contrário; mas ainda estava formosa de uma formosura outoniça, realçada pela noite.”). E também porque, na sequência, ele dedica um capítulo todo aos seus cinquenta anos de idade (Capítulo 134).

Já a história de ciúmes de Bentinho ocorre mais tarde: Machado não aponta a data de seu nascimento, mas nos conta que, em 1857, ele tinha 15 anos (de onde se presume que ele tenha nascido em 1842 – vide Capítulo II). Escobar, por sua vez, era três anos mais velho do que ele (vide Capítulo LVI) , tendo nascido, portanto, em 1839. Morreu em 1871 (Capítulo CXXII), aos 32 anos de idade. Pela leitura da obra, cogita-se que a suposta traição de Capitu não ocorreu antes do casamento dela com Bentinho, que se deu em 1865 (Capítulo CI). Assim, o suposto caso de adultério, se ocorreu, se deu entre 1865 e 1871, quando Virgília já teria mais de 60 anos. Portanto, cronologicamente falando, seria impossível que Escobar, por volta de seus 29, 30 anos de idade, pudesse ter algum interesse sexual por Virgília…

Não importa, a riqueza dessas criaturas de Machado de Assis é tão grande que me vi obrigado a cometer a heresia de antecipar os eventos narrados em Dom Casmurro para ajusta-los cronologicamente aos das Memórias Póstumas.

Do ponto de vista do Memórias Póstumas de Brás Cubas, o capítulo que imaginei se passa logo após o aborto espontâneo que Virgília sofrera e o recebimento de uma carta anônima por Lobo Neves entregando o caso amoroso de sua esposa com Brás. O caso dos dois está prestes a terminar, mas naquele momento os amantes não sabem disso. Não obstante, ao final do capítulo XCVI (“A Carta Anônima”), Brás relata que ao beijar Virgília na testa esta recuou, “como se fosse um beijo de defunto”. No capítulo seguinte, ele esclarece: “Há aí, no breve intervalo, entre a boca e a testa antes do beijo e depois do beijo, há aí largo espaço para muita coisa: a contração de um ressentimento, — a ruga da desconfiança, — ou enfim o nariz pálido e sonolento da saciedade… “

Em relação a Dom Casmurro, em minha narrativa Brás encontra Escobar logo após a gravidez de Capitu. Àquela altura do romance, Bentinho já havia iniciado sua estratégia de descrever fatos que, no clímax de suas memórias, mostrar-se-iam como verdadeiras peças acusatórias da traição e supostas provas do relacionamento entre Capitu e Escobar. São assim os Capítulo CV, CVI e CVIII. Em cada um desses capítulos, Bentinho conta uma passagem no qual fica subentendido de forma muito sutil o relacionamento de sua esposa com seu melhor amigo (Capitu só concorda em deixar de expor seus braços em eventos sociais depois que Bentinho diz que Escobar aprovava seu desagrado com esse fato; Capitu está com o olhar perdido no mar, o que leva a Bentinho a desconfiar de algo; na sequência, ela diz que estava “somando uns dinheiros para descobrir certa parcela que não achava”, o que, no final, leva à revelação de que Escobar fazia corretagens com as economias de Capitu e que naquele dia estivera com ela antes de Bentinho chegar; etc.).

Finalmente, o ponto de contato entre ambos não podia deixar de ser o Cotrim, cunhado de Brás Cubas, um self-made man na área do comércio, como Escobar.

Acho que não preciso mencionar que minha narrativa é apenas uma brincadeira pseudoliterária. Nem eu sou escritor e ainda que fosse não teria talento suficiente para reproduzir ou sequer imitar o estilo machadiano. Ninguém o tem, aliás. Na literatura latino-americana, Machado é incomparável. Coloca no bolso escritores como Guimarães Rosa, Borges ou Gabriel García Márquez. Na verdade, só vamos encontrar quem o ombreie na mais alta e estrita esfera da literatura mundial – falo de gente como Shakespeare, Dostoiévski, Faulkner.

No entanto, como diria Quincas Borba, “a inveja não é senão uma admiração que luta”. Assim, ao emular um ou dois capítulos das Memórias Póstumas estou apenas tentando ilustrar empiricamente um dos princípios humanitas mais bem elaborados. Se a inveja é uma virtude, como queria Quincas Borba, invejar o maior de todos – a ponto de querer interpolar alguns capítulos desnecessários em sua obra-prima – é sublime.

Independentemente de ter gostado ou não de minha narrativa, uma coisa é certa: você já a leu. Se gostou, caro leitor, ótimo; se não, não te pago com um piparote, como sugere Brás aos seus leitores. Tampouco lamento. Afinal de contas, como diria Quincas Borba, “Verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer.”

Em 20/06/2018

REPUBLICAÇÃO, com alterações no texto: narrativa publicada na página originalmente em 20/06/2018

Hayden Carruth – Ensaio

Tantos poemas sobre mortes de animais.
O sapo de Wilbur, o ouriço de Kinnell, o esquilo de Eberhart,
e aquele poema de alguém – Hecht? Merrill? –
sobre cremar uma marmota. Mas sobretudo
eu me lembro do número ultrajante deles,
como se todo poeta, inclusive eu, tivesse escrito ao menos
uma elegia animal; como resultado, hoje,
quando cheguei a um poema suficientemente bom de Edwin Brock
sobre encontrar uma raposa morta na beira do mar
eu fiquei sem resposta; como se o choque permanente
houvesse me anestesiado. E então, depois de um momento,
comecei a ceder à tristeza (analisando-me sem
emoção enquanto isso), não apenas porque
parte do meu ser havia sido violada e anulada,
mas pelo fato de todos estes muitos poemas ao longo dos anos
terem sido necessários – apropriados e corretos. Esta
tem sido a era de acabar com os animais.
Eles estão partindo – seus pelos e seus olhos selvagens,
suas vozes. Cervos saltam e saltam na frente
de estridentes snowmobiles até saltarem para
fora da existência. Falcões circulam uma ou duas vezes
acima de seus ninhos destruídos e depois sobem
até as estrelas. Eu tenho vivido com eles por cinquenta anos,
nós temos vivido com eles por cinquenta milhões de anos,
e agora eles estão indo, quase se foram. Não sei
se os animais são capazes de reprovação.
Mas claramente eles não se dão ao trabalho de se despedir.

Trad.: Nelson Santander

Essay

So many poems about the deaths of animals.
Wilbur’s toad, Kinnell’s porcupine, Eberhart’s squirrel,
and that poem by someone – Hecht? Merrill? –
about cremating a woodchuck. But mostly
I remember the outrageous number of them,
as if every poet, I too, had written at least
one animal elegy; with the result that today
when I came to a good enough poem by Edwin Brock
about finding a dead fox at the edge of the sea
I could not respond; as if permanent shock
had deadened me. And then after a moment
I began to give way to sorrow (watching myself
sorrowlessly the while), not merely because
part of my being had been violated and annulled,
but because all these many poems over the years
have been necessary – suitable and correct. This
has been the time of the finishing off of the animals.
They are going away – their fur and their wild eyes,
their voices. Deer leap and leap in front
of the screaming snowmobiles until they leap
out of existence. Hawks circle once or twice
above their shattered nests and then they climb
to the stars. I have lived with them fifty years,
we have lived with them fifty million years,
and now they are going, almost gone. I don’t know
if the animals are capable of reproach.
But clearly they do not bother to say good-bye.

Jorge Luis Borges – Labirinto

Não haverá nunca uma porta. Já estás dentro.
E o alcácer abarca o universo
E não tem anverso nem reverso
Não tem extremo muro nem secreto centro.

Não esperes que o rigor do teu caminho
Que fatalmente se bifurca em outro,
Que fatalmente se bifurca em outro,
Terá fim. É de ferro teu destino

Como o juiz. Não creias na investida
Do touro que é um homem cuja estranha
Forma plural dá horror a essa maranha

De interminável pedra entretecida.
Não virá. Nada esperes. Nem te espera
No negro crepúsculo uma fera.

Trad.: Augusto de Campos

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 18/06/2018

Jorge Luis Borges – Laberinto

No habrá nunca una puerta. Estás adentro
Y el alcázar abarca el universo
Y no tiene ni anverso ni reverso
Ni externo muro ni secreto centro.

No esperes que el rigor de tu camino
Que tercamente se bifurca en otro,
Que tercamente se bifurca en otro,
Tendrá fin. Es de hierro tu destino

Como tu juez. No aguardes la embestida
Del toro que es un hombre y cuya extraña
Forma plural da horror a la maraña

De interminable piedra entretejida.
No existe. Nada esperes. Ni siquiera
En el negro crepúsculo la fiera.

W. S. Merwin – Para o aniversário da minha morte

Todo ano, sem perceber, passo pelo dia
Em que as últimas chamas acenarão para mim
E o silêncio colocar-se-á a caminho
Infatigável viajante
Como os feixes de uma estrela sem luz

Então, não me encontrarei
Na vida como em um estranho traje
Surpreso com a terra
E o amor de uma mulher
E a desfaçatez dos homens
Como hoje escrevendo após três dias de chuva
Ouvindo a curruíra cantar e o cessar da precipitação
E reverenciando sem saber a quê

Trad.: Nelson Santander

For the Anniversary of My Death

Every year without knowing it I have passed the day
When the last fires will wave to me
And the silence will set out
Tireless traveler
Like the beam of a lightless star

Then I will no longer
Find myself in life as in a strange garment
Surprised at the earth
And the love of one woman
And the shamelessness of men
As today writing after three days of rain
Hearing the wren sing and the falling cease
And bowing not knowing to what

Jorge Sousa Braga – Fogo sobre fogo

O meu mamilo
no teu
mamilo

Só tu
sabes sorrir
na vertical

Gotas de orvalho
ligeiramente tingidas
de batom

Nem todos os frutos vermelhos
merecem o céu
da tua boca

Mais do que uma vez
atravessei a primavera
com os olhos fechados

A borboleta que poisou
no teu mamilo perdeu
vontade de voar

Vou ao céu
e venho-
-me

Não posso
amar
mais claro

Escrevo
com os dedos ainda longos
da carícia

Ainda agora em ti entrei
e já em todos os teus poros
me achei

Não é a rosas nem a violetas
nem a jasmim o cheiro
que me põe fora de mim

Qual é a minha
ou a tua
língua?

Não conheço outra
linguagem que não seja
a do orvalho

Na espessura do bosque
o que a minha mão procurava
era um mirtilo

Basta-me
o teu umbigo de vinho
para ficar bêbedo

Este fogo
que só com fogo
se pode apagar

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 16/06/2018

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Gwen Harwood – No parque

Ela se senta no parque. São antiquados os seus trajes.
Duas crianças choram e brigam, puxam-lhe o babado.
Uma outra traça padrões ao acaso no gramado
Alguém que há muito tempo ela amou passa – tarde

demais para fingir desdém ao aceno casual.
“Que prazer” blá blá blá. “O tempo sempre nos surpreende.”
Da cabeça perfeita dele claramente ascende
um pequeno balão…”por pouco fui eu que me dei mal…”

Eles ficam sob a luz bruxuleante, exercitando
os nomes e aniversários das crianças. “É tão
bom ouvir suas conversas, vê-los crescer, vicejar”,
diz ela ao sorriso de adeus dele. Depois, aleitando
a caçula, senta-se e os pés dela seus olhos fitam.
“Elas estão me comendo viva”, diz ela ao ar.

Trad.: Nelson Santander

In the park

She sits in the park. Her clothes are out of date.
Two children whine and bicker, tug her skirt.
A third draws aimless patterns in the dirt
Someone she loved once passed by – too late

to feign indifference to that casual nod.
“How nice” et cetera. “Time holds great surprises.”
From his neat head unquestionably rises
a small balloon…”but for the grace of God…”

They stand a while in flickering light, rehearsing
the children’s names and birthdays. “It’s so sweet
to hear their chatter, watch them grow and thrive, ”
she says to his departing smile. Then, nursing
the youngest child, sits staring at her feet.
To the wind she says, “They have eaten me alive.”

Nuno Júdice – Réquiem por Muitos Maios

Conheci tipos que viveram muito. Estão
mortos, quase todos: de suicídio, de cansaço.
de álcool, da obrigação de viver
que os consumia. Que ficou das suas vidas? Que
mulheres os lembram com a nostalgia
de um abraço? Que amigos falam ainda, por vezes,
para o lado, como se eles estivessem à sua
beira?

No entanto, invejo-os. Acompanhei-os
em noites de bares e insónia até ao fundo
da madrugada; despejei o fundo dos seus copos,
onde só os restos de vinho manchavam
o vidro; respirei o fumo dessas salas onde as suas
vozes se amontoavam como cadeiras num fim
de festa. Vi-os partir, um a um, na secura
das despedidas.

E ouvi os queixumes dessas a quem
roubaram a vida. Recolhi as suas palavras em versos
feitos de lágrimas e silêncios. Encostei-me
à palidez dos seus rostos, perguntando por eles – os
amantes luminosos da noite. O sol limpava-lhes
as olheiras; uma saudade marítima caía-lhes
dos ombros nus. Amei-as sem nada lhes dizer – nem do amor,
nem do destino desses que elas amaram.

Conheci tipos que viveram muito – os
que nunca souberam nada da própria vida.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 14/06/2018

Mary Oliver – Não hesite

Se você, súbita e inesperadamente, sentir alegria,
não hesite. Entregue-se a ela. Há muitas
vidas e cidades inteiras destruídas ou prestes a serem.
Não somos sábios e raramente somos amáveis.
E muito nunca poderá ser redimido.
Ainda assim, a vida ainda tem alguma possibilidade.
Talvez essa seja sua forma de resistir, de mostrar que às vezes
algo melhor do que todas as riquezas ou poderes
do mundo pode acontecer. Pode ser qualquer coisa,
mas é provável que você o perceba no instante
em que o amor começa. De toda forma, frequentemente
é este o caso. De toda forma, seja como for, não tema
a fartura. A alegria não foi feita para ser migalha.

Trad.: Nelson Santander

Don’t Hesitate

If you suddenly and unexpectedly feel joy,
don’t hesitate. Give in to it. There are plenty
of lives and whole towns destroyed or about
to be. We are not wise, and not very often
kind. And much can never be redeemed.
Still, life has some possibility left. Perhaps this
is its way of fighting back, that sometimes
something happens better than all the riches
or power in the world. It could be anything,
but very likely you notice it in the instant
when love begins. Anyway, that’s often the
case. Anyway, whatever it is, don’t be afraid
of its plenty. Joy is not made to be a crumb.

Joan Margarit – Não estava distante, não era difícil

Chegou um tempo
em que a vida que se perde já não causa dor,
em que a luxúria é apenas
uma lâmpada inútil, e a inveja é esquecida.
É um tempo de perdas prudentes, necessárias,
e não é um tempo de chegar
mas de partir. O amor, agora,
por fim se une à inteligência.
Não estava distante,
não era difícil. É um tempo
que não me deixa mais que o horizonte
como medida da solidão.
Um tempo de tristeza protetora.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO, com alterações na tradução: poema publicado na página originalmente em 12/06/2018

Joan Margarit – No estaba lejos, no era difícil

Ha llegado este tiempo
cuando ya no hace daño la vida que se pierde,
cuando ya la lujuria es tan sólo
una lámpara inútil, y la envidia se olvida.
Es un tiempo de pérdidas prudentes, necesarias,
y no es un tiempo de llegar
sino de irse. El amor, ahora,
por fin coincide con la inteligencia.
No estaba lejos,
no era difícil. Es un tiempo
que no me deja más que el horizonte
como medida de la soledad.
Un tiempo de tristeza protectora.

Juan Vicente Piqueras – O pouco que sei

Sei que o penar não vale a pena.

Sei que a felicidade é indizível.

Sei que o amor, essa missão selvagem,
delicada, impossível, é a única forma
de estar neste mundo sem errar.

Sei que a morte resolve tudo.
Sei que a morte, não, quero dizer, a vida
é um pintassilgo em uma árvore seca
ou em uma amendoeira em flor,
cantando para a luz,
dando graças aos céus por tudo
sem o saber.

Trad.: Nelson Santander

Lo poco que sé

Sé que la pena no vale la pena.

Sé que la dicha no puede ser dicha.

Sé que el amor, esa misión salvaje,
delicada, imposible, es la única forma
de estar en este mundo sin errar.

Sé que la muerte lo resuelve todo.
Sé que la muerte, no, quiero decir la vida
es un jilguero en un árbol desnudo
o en un almendro en flor,
cantándole a la luz,
dando gracias al cielo por todo
sin saberlo.