Ferreira Gullar – Poema

Se morro
o universo se apaga como se apagam
as coisas deste quarto
                                se apago a lâmpada:
os sapatos–da–ásia, as camisas
e guerras na cadeira, o paletó–
dos–andes,
               bilhões de quatrilhões de seres
e de sóis
               morrem comigo.

Ou não:
               o sol voltará a marcar
               este mesmo ponto do assoalho
               onde esteve meu pé;
                                         deste quarto
               ouvirás o barulho dos ônibus na rua;
                       uma nova cidade
                       surgirá de dentro desta
                       como a árvore da árvore.

Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens
a mesma história que eu leio, comovido.

Manuel António Pina – Interiores

Onde estamos agora que não nos vemos,
tu sentada diante da TV
e eu escrevendo isto, não sei o quê,
como outros dois que nós não conhecemos?

Será que alguma coisa permaneceu
do nosso amor como uma inevitabilidade,
uma saudade pousada agora na mão de Deus
existindo para sempre na sua breve eternidade?

Talvez percorramos uma rota circular
através da curvatura do espaço e do tempo
onde haveremos de nos reencontrar;
será que então de alguma forma nos reconheceremos?

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 02/05/2018

Finn Butler – Marinho

Todos os que o amedrontam são sessenta e cinco por cento água.
E todos os que você ama são feitos de poeira estelar, e eu sei que
às vezes
você nem consegue respirar profundamente,
o céu noturno não é seu lar e
você já chorou sozinho até dormir tantas vezes
que chegou aos seus últimos dois por cento, mas

nada é infinito,
nem mesmo a perda.

Você é feito do mar e das estrelas, e um dia
vai se encontrar novamente.

Trad.: Nelson Santander

Saltwater

Everyone who terrifies you is sixty-five percent water.
And everyone you love is made of stardust, and I know
sometimes
you cannot even breathe deeply, and
the night sky no home, and
you have cried yourself to sleep enough times
that you are down to your last two percent, but

nothing is infinite,
not even loss.

You are made of the sea and the stars, and one day
you are going to find yourself again.

Jorge Luis Borges – As Causas

Todas as gerações e os poentes.
Os dias e nenhum foi o primeiro.
A frescura da água na garganta
De Adão. O ordenado Paraíso.
O olho decifrando a maior treva.
O amor dos lobos ao raiar da alba.
A palavra. O hexâmetro. Os espelhos.
A Torre de Babel e a soberba.
A lua que os Caldeus observaram.
As areias inúmeras do Ganges.
Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou.
As maçãs feitas de ouro que há nas ilhas.
Os passos do errante labirinto.
O infinito linho de Penélope.
O tempo circular, o dos estóicos.
A moeda na boca de quem morre.
O peso de uma espada na balança.
Cada vã gota de água na clepsidra.
As águias e os fastos, as legiões.
Na manhã de Farsália Júlio César.
A penumbra das cruzes sobre a terra.
O xadrez e a álgebra dos Persas.
Os vestígios das longas migrações.
A conquista de reinos pela espada.
A bússola incessante. O mar aberto.
O eco do relógio na memória.
O rei que pelo gume é justiçado.
O incalculável pó que foi exércitos.
A voz do rouxinol da Dinamarca.
A escrupulosa linha do calígrafo.
O rosto do suicida visto ao espelho.
O ás do batoteiro. O ávido ouro.
As formas de uma nuvem no deserto.
Cada arabesco do caleidoscópio.
Cada remorso e também cada lágrima.
Foram precisas todas essas coisas
Para que um dia as nossas mãos se unissem.

Trad.: Fernando Pinto do Amaral

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 30/04/2018

Jorge Luis Borges – Las Causas

Los ponientes y las generaciones.
Los días y ninguno fue el primero.
La frescura del agua en la garganta
de Adán. El ordenado Paraíso.
El ojo descifrando la tiniebla.
El amor de los lobos en el alba.
La palabra. El hexámetro. El espejo.
La Torre de Babel y la soberbia.
La luna que miraban los caldeos.
Las arenas innúmeras del Ganges.
Chuang-Tzu y la mariposa que lo sueña.
Las manzanas de oro de las islas.
Los pasos del errante laberinto.
El infinito lienzo de Penélope.
El tiempo circular de los estoicos.
La moneda en la boca del que ha muerto.
El peso de la espada en la balanza.
Cada gota de agua en la clepsidra.
Las águilas, los fastos, las legiones.
César en la mañana de Farsalia.
La sombra de las cruces en la tierra.
El ajedrez y el álgebra del persa.
Los rastros de las largas migraciones.
La conquista de reinos por la espada.
La brújula incesante. El mar abierto.
El eco del reloj en la memoria.
El rey ajusticiado por el hacha.
El polvo incalculable que fue ejércitos.
La voz del ruiseñor en Dinamarca.
La escrupulosa línea del calígrafo.
El rostro del suicida en el espejo.
El naipe del tahúr. El oro ávido.
Las formas de la nube en el desierto.
Cada arabesco del calidoscopio.
Cada remordimiento y cada lágrima.
Se precisaron todas esas cosas
para que nuestras manos se encontraran.

Maya C. Popa – Vida querida

Não posso desfazer tudo o que fiz a mim mesma,
o que permiti que um apetite por amor me fizesse.

Eu quis o mundo todo, suas maravilhas
e suas mazelas; alguns dias
acho que já houve castigo suficiente.

Com frequência, recebi mais do que pedi,

que é como isso funciona — você pesca em mar aberto
pronta para ser ferida pelo que fisgar.

Joga-lo de volta era um pesadelo.
Joga-lo de volta e ver minha própria face

enquanto ela desaparecia na água escura.

Fisgar de repente minha língua no metal,
cuspindo o anzol na palma da minha mão aberta.

Vida querida: hoje sinto esse anzol mais profundamente.

Você afrouxaria a linha? — você me ouvirá

caso eu lhe pergunte

se você é do tipo de vida que eu acho que é?

Trad.: Nelson Santander

Dear Life

I can’t undo all I have done unto myself,
what I have let an appetite for love do to me.

I have wanted all the world, its beauties
and its injuries; some days,
I think that is punishment enough.

Often, I received more than I’d asked,

which is how this works—you fish in open water
ready to be wounded on what you reel in.

Throwing it back was a nightmare.
Throwing it back and seeing my own face

as it disappeared into the dark water.

Catching my tongue suddenly on metal,
spitting the hook into my open palm.

Dear life: I feel that hook today most keenly.

Would you loosen the line—you’ll listen

if   I ask you,

if   you are the sort of  life I think you are.

Hans Magnus Enzensberger – Discurso pós-jantar em um noivado

Este eu, um invólucro que,
contanto que ninguém o abra,
parece compacto, regular
como um Kinder ovo,
quase apetitoso. Só por dentro
é escuro. Quem sabe
o que estará esperando por você lá.
Obsessões, sem dúvida,
hábitos enferrujados,
medos incompreensíveis,
truques de segunda mão,
desejos infantis.
Que você deseje tê-la,
esta caixa de presente,
beira o milagre.

Trad.: Nelson Santander (a partir de tradução do alemão para o inglês feita por Martin Chalmers e Esther Kinsky, in A History of Clouds. 99 Meditations by Hans Magnus Enzensberger)

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 29/04/2018

After-Dinner Speech at an Engagement

This self, a container, which,
as long as no one opens it,
appears compact, smooth
as a Kinder egg,
almost appetizing. Only inside,
there it’s dark. Who knows
what’s waiting for you there.
Obsession no doubt,
rusty habits,
incomprehensible fears,
second-hand tricks,
childish desires.
That you want to have it,
this gift box,
borders on a miracle.

Amalia Bautista – No final

No final, muito poucas são as palavras
que realmente nos magoam, e muito poucas
as que conseguem alegrar a alma.
E são também muito poucas as pessoas
que tocam nossos corações, e ainda
menos as que o fazem por muito tempo.
No final, são pouquíssimas as coisas
que realmente importam na vida:
ser capaz de amar alguém, ser amado
e não morrer antes de nossos filhos.

Trad.: Nelson Santander

Al Cabo

Al cabo, son muy pocas las palabras
que de verdad nos duelen, y muy pocas
las que consiguen alegrar el alma.
Y son también muy pocas las personas
que mueven nuestro corazon, y menos
aún las que lo mueven mucho tiempo.
Al cabo, son poquíssimas las cosas
que de verdad importan en la vida:
poder querer a alguien, que nos quieran
y no morri después que nuestros hijos.

Juan Vicente Piqueras – Véspera de Permanecer

Tudo está pronto: a mala,
as camisas, os mapas, as vãs esperanças.

Estou removendo o pó das minhas pálpebras.
Já pus na lapela
a rosa dos ventos.

Tudo está em ordem: o mar, o ar, o atlas.

Só me falta o quando,
o onde, um diário de bordo,
cartas de navegação, ventos propícios,
coragem e alguém que saiba
me amar como nem eu mesmo sei.

O navio inexistente, o olhar,
os perigos, as mãos do espanto,
o fio umbilical do horizonte
que sublinha esses versos suspensivos…

tudo está preparado: a sério, em vão.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO (com alterações na tradução): poema publicado no blog originalmente em 28/04/2018

Juan Vicente Piqueras – Víspera de Quedarse

Todo está preparado: la maleta,
las camisas, los mapas, la fatua esperanza.

Me estoy quitando el polvo de los párpados.
Me he puesto en la solapa
la rosa de los vientos.

Todo está a punto: el mar, el aire, el atlas.

Sólo me falta el cuándo,
el adónde, un cuaderno de bitácora,
cartas de marear, vientos propicios,
valor y alguien que sepa
quererme como no me quiero yo.

El barco que no existe, la mirada,
los peligros, las manos del asombro,
el hilo umbilical del horizonte
que subraya estos versos suspensivos…

Todo está preparado: en serio, en vano.

Judith Viorst – A uma amiga de meia-idade considerando adultério com um homem mais jovem

É complicado ser temerária
Quando há dobras em seu derrière
E chega a hora de expor o que sua meia-calça
      está ocultando.
E embora os olhos amorosos de um marido
Façam certas concessões para suas coxas,
Jovens amantes podem ter um olhar menos benevolente para o que
      você está expondo.

É complicado se render ao pecado
Enquanto você tenta manter a barriga contraída
Esperando que o blush ainda esteja iluminando
      sua tez,
E torcendo para que ele não perceba,
Enquanto corre os dedos pelos seus cabelos pretos,
Que você ficou inequivocamente grisalha
      em toda uma outra seção.

É complicado experimentar o êxtase
Quando a sinusite se intromete em cada beijo
E quando, nas posições complicadas, suas costas
      começam a feri-la.
E quando você acrescenta tudo o que implica
Ensinar-lhe o que a excita e o que a frustra,
Talvez seja recomendável reconsiderar as virtudes da
      virtude.

Trad.: Nelson Santander

To a Middle-Aged Friend Considering Adultery with a Younger Man

It’s hard to be devil-may-care
When there are pleats in your derrière
And it’s time to expose what your panty hose
are concealing.
And although a husband’s fond eyes
Make certain allowances for your thighs,
Young lovers might look less benignly at what
you’re revealing.

It’s hard to surrender to sin
While trying to hold your stomach in
And hoping your blusher’s still brightening up
your complexion,
And hoping he isn’t aware
As he runs his fingers through your dark hair,
That you’ve grown unmistakably gray in a whole
other section.

It’s hard to experience bliss
When sinus intrudes on every kiss
And when, in the tricky positions, your back
starts to hurt you.
And when you add all it entails
To teach him what turns you on and what fails,
You might want to reconsider the virtues of
virtue.

Haroldo de Campos – Servidão de Passagem

forma de fome

proêmio

mosca ouro?
mosca fosca.

mosca prata?
mosca preta.

mosca íris?
mosca reles.

mosca anil?
mosca vil.

mosca azul?
mosca mosca.

mosca branca?
poesia pouca.

o azul é puro?
o azul é pus.

de barriga vazia.

o verde é vivo?
o verde é vírus

de barriga vazia.

o amarelo é belo?
o amarelo é bile

de barriga vazia.

o vermelho é fúcsia?
o vermelho é fúria

de barriga vazia.

a poesia é pura?
a poesia é para

de barriga vazia.

poesia em tempo de fome
fome em tempo de poesia

poesia em lugar do homem
pronome em lugar do nome

homem em lugar de poesia
nome em lugar do pronome

poesia de dar o nome

nomear é dar o nome

nomeio o nome
nomeio o homem
no meio a fome

nomeio a fome

poema

de sol a sol
soldado
de sal a sal
salgado
de sova a sova
sovado
de suco a suco
sugado
de sono a sono
sonado

sangrado
de sangue a sangue

onde mói esta moagem
onde engrena esta engrenagem

moenda homem moagem
moagem homem moenda

engrenagem
gangrenagem

de lucro a lucro
logrado
de logro a logro
lucrado
de lado a lado
lanhado
de lodo a lodo
largado

sol a sal
sal a sova
sova a suco
suco a sono
sono a sangue

onde homem
          essa moagem
onde carne
          essa carnagem
onde osso
          essa engrenagem

homem forrado
homem ferrado

homem rapina
homem rapado

homem surra
homem surrado

homem buraco
homem burra

homem senhor
homem servo

homem sobre
homem sob

homem saciado
homem saqueado

homem servido
homem sorvo

homem come
homem fome

homem fala
homem cala

homem soco
homem saco

homem mó
homem pó

quem baraço
quem vassalo

quem cavalo
quem cavalga

quem explora
quem espólio

quem carrasco
quem carcassa

quem usura
quem usado

quem pilhado
quem pilhagem

quem uísque
quem urina
quem feriado
quem faxina
quem volúpia
quem vermina

carne carniça carnagem

sangragem sangria sangue

homemmoendahomemmoagem

açúcar
nessa bagaço?

almíscar
nesse sovaco?

petúnia
nesse melaço?

índigo nesse buraco?

ocre
acre
osga
asco

canga cangalho cagaço
cansaço cachaço canga
carcassa cachaça gana

de míngua a míngua
de magro a magro
de morgue a morgue
de morte a morte

só moagem
ossomoagem

sem miragem
selvaselvagem

servidão de passagem

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 24/04/2018