Nelson Santander – Que a Terra lhe seja Leve

Quando me deparei pela primeira vez com o trabalho de Belchior, a melhor impressão que tive sobre ele não foi em razão da qualidade intrínseca de suas composições. Corriam os anos 80, e, como músico amador que era, eu estava mais ligado no trabalho realizado pela geração pop daquela época – Legião, Titãs, Paralamas, Ira!, etc. Da MPB, apreciava quase que somente Caetano e Chico.

Foi então que caiu em minhas mãos uma fita cassete pirata de um dos últimos álbuns lançados pelo artista na época. Pertencia ao amigo Arlindo Mellão, fã do cearense e de gente como Sá & Guarabyra, 14 Bis e Geraldo Azevedo.

O álbum, até hoje relativamente raro, chamava-se “Um Show: 10 Anos de Sucesso”, e continha nove das principais canções que ele havia composto até então em seus poucos mais de 10 anos de carreira, em arranjos nos quais se destacavam os teclados de Raposo e a guitarra de Sérgio Zurawski – bem ao estilo dos anos 80 – que modernizavam as canções dando-lhes nova roupagem (ainda considero esses arranjos os melhores de todas as versões feitas por ele).

Trazia canções como:

“Paralelas” (sucesso na voz de Vanusa, com o poderoso refrão: “No Corcovado, quem abre os braços sou eu / Copacabana, esta semana, o mar sou eu / Como é perversa a juventude do meu coração / Que só entende o que é cruel, o que é paixão”);

“Comentário a respeito de John” (“Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho / Deixem que eu decido a minha vida. / Não preciso que me digam, de que lado nasce o sol / Porque bate lá o meu coração”);

“Velha Roupa Colorida” e “Como Nossos Pais” (clássicos absolutos na voz de Elis);

“A Palo Seco” (“Se você vier me perguntar por onde andei / No tempo em que você sonhava / De olhos abertos lhe direi: / Amigo, eu me desesperava…”);

“Galos, Noites e Quintais” e o seu maior sucesso (junto com “Apenas um Rapaz Latino Americano”): “Medo de Avião”.

Na época, eu tinha apenas 18 anos. E estava apaixonado por aquela que viria a se tornar minha esposa. Precisava desesperadamente de uma desculpa para encontrar o objeto de meus desejos e pareceu uma boa ideia ir até a casa do Mellão à noite para pedir-lhe a fita de empréstimo. Na volta, eu poderia encontrar com ela – o que acabou acontecendo.

No dia seguinte, coloquei a fita para ouvir. E foi uma revelação. Belas melodias e letras absurdamente boas que eram uma mistura de poesia, erudição e ironia. Belchior sabia compor. E como. A maioria das canções acima mencionadas são clássicos absolutos da MPB e não envelheceram nada desde que foram escritas.

A descrição acre que ele faz da juventude de sua época, em “Como Nossos Pais”, poderia ser aplicada aos jovens de hoje, sem mexer em nenhuma linha da canção. “Velha Roupa Colorida” permanece como uma das melhores canções já escritas sobre a passagem do tempo:

(…) Como Poe, poeta louco americano, eu pergunto ao passarinho:
“Assum Preto, ‘passo’ preto, black bird, o que se faz?”
E raven, never, raven, never, never, never, never, never, raven,
Pássaro Preto, assum preto, black bird me responde:
“Tudo já ficou atrás”
E never, never, never, never, never, never, raven
Pássaro Preto, assum preto, black bird me responde:
“O passado nunca mais…”

Contudo, naquela época, a música que mais me impactou não foi nenhuma dessas. Eu tinha apenas 18 anos e estava apaixonado pela primeira vez na vida. Por isso, a canção que mais me marcou daquela fita foi uma verdadeira ode ao amor erótico chamada “Divina Comédia Humana”:

“(…) Aí um analista amigo meu
Me disse que desse jeito
Não vou viver satisfeito
Porque o amor é uma coisa mais profunda que um transa sensual

Deixando a profundidade de lado
Eu quero é ficar colado à pele dela noite e dia
Fazendo tudo de novo e dizendo sim! à paixão, morando na filosofia

Quero gozar no seu céu,
Pode ser no seu inferno
Viver a divina comédia humana
Onde nada é eterno (…)”

A habilidade de Belchior em traduzir sentimentos complexos em melodias e letras era extraordinária. Amor, sexo, paixão, tempo, medo. Morte. Todos esses temas foram explorados com maestria pelo artista. Esse último e mais assustador, enfim, o alcançou e o derrotou no dia de ontem.

Fica um buraco enorme na música brasileira, até porque o mercado da música não tem conseguido repor compositores com a mesma qualidade de um Belchior, de um Chico ou de um Caetano. Cada vez que morre um gênio desses, ficamos mais órfãos de artistas com a capacidade que eles têm de ler e reinterpretar nosso tempo através de seus trabalhos.

Mas para mim não é nem isso o que mais incomoda. Como tudo na vida, o que mais nos afeta é aquilo que nos diz mais de perto. Minha dor é perceber que, com a morte de Belchior, vai também – simbolicamente enterrado com o artista – um pedaço de minha vida. Aquele pedaço mais febril, intenso, irracional e louco a que chamamos juventude.

Diante desta perda, desesperadamente eu grito em português, recorrendo aos conselhos do compositor, que me responde – não sem uma pitada de ironia – através de “Pequeno Perfil de um Cidadão Comum”:

– Que a terra lhe seja leve…

Carlos Drummond de Andrade – Os Gregorianos

Um amigo que tem consciência exacerbada do tempo confia-me que, depois de certo ponto (ele não usa a palavra idade), a vida já não oferece acontecimentos, e sim comemorações.
— Por mais que o sujeito faça, não consegue realmente mover-se. Fica parado diante de formas movediças, como naquele romance do Zé Lins do Rego, que tem um seleiro batendo couro à beira da estrada.
E continua:
— A princípio você tem um sentimento rápido de que já viveu, no dia em que faz anos. A melancolia em estado latente é absorvida pela efusão dos amigos e pela justa porção de álcool que o indivíduo ingere em tais ocasiões. Mas o fenômeno está circunscrito ao espaço de algumas horas durante o ano inteiro. O resto é vida de que participamos. Pouco a pouco, porém, insinuam-se outros aniversários: formatura, casamento. Há também as mortes de parentes e amigos, que por sua vez começam a encher nosso calendário pessoal. Depois vem o centenário de pessoas que você ainda alcançou vivas. E há as comemorações nacionais, em que antes não reparava. Com o tempo, você mesmo se transforma em calendário, meu velho.
Tudo vinha a propósito de um papel que ele trazia na mão.
— Este convite indica uma fase já avançada do processo. Chega um ponto em que começamos a negociar lembranças. Eu lhe vendo as minhas e você me empurra as suas. Fundamos armazéns de lembranças, e, a pretexto de qualquer data, ou sem pretexto algum, organizamos caravanas em direção ao passado.
Aproximando-me, li o cartão impresso: “Associação dos Antigos Alunos do Colégio Gregório — A Diretoria convida o prezado gregoriano para a visita ao antigo colégio. Será fretado um vagão especial. Haverá missa, e almoço no refeitório, com a presença do velho padre Barlavento; depois, assembleia geral dos gregorianos, no foro da cidade. Compareça com sua família para gáudio dos velhos colegas. Informações com o dr. Canuto, à rua Tal”.
— Aí está. Toda essa gente havia desaparecido por esse mundo de Deus, na pressa de cumprir seu destino. Só uns poucos não se perderam de vista, pela circunstância do trabalho em comum. Mas passam-se vinte e cinco anos, e começam a surgir de todos os lados cavalheiros grisalhos, uns sorridentes, outros mais sérios, que nos olham curiosamente, a conferir suas rugas com as nossas, e dizem: “Mas então você não está me reconhecendo? Eu sou o 130, da Divisão dos Médios…”.
Prossegue:
— Já expliquei ao Canuto que não posso aderir às comemorações. Não sou apenas um ex-aluno do famoso colégio Gregório. Sou um aluno expulso, e com que cara ia voltar lá, depois do que me aconteceu? Mas o Canuto sorri e me diz que deixe de patacoadas. Eles comemoram trinta e cinco anos de colégio? Pois que eu comemore os meus trinta e três de expulsão. Dá tudo na mesma. Lembro-lhe o padre Juquinha, meu adversário daqueles tempos, e o Canuto dá de ombros: “Que o quê, o Juquinha morreu há vinte anos, coitado, e lá do assento etéreo já fez as pazes com você. Comemore a briga com o Juquinha, e as pazes feitas no tempo”. Assim, nada mais é triste ou alegre depois de um longo período; tudo é matéria comemorativa, e viver é apenas ter vivido, compreende?
Eu — ai de mim — compreendia.

Philip Larkin – Conversar na Cama

Conversar na cama devia ser mais fácil
Dois deitados juntos — é desde há muito
Um símbolo de duas pessoas sendo francas.

Ainda que mais e mais tempo passe em silêncio.
Lá fora, a intérmina inquietação do vento
Amontoa e dispersa nuvens pelo céu.

E cidades escuras se empilham no horizonte.
Nada disso se importa conosco. Nada mostra por que
A essa distância única do isolamento

Se torna ainda mais difícil achar
As veras palavras certas e sinceras
Ou não incertas e nem insinceras.

   Trad.: Luiz Roberto Guedes

Talking In Bed

Talking in bed ought to be easiest
Lying together there goes back so far
An emblem of two people being honest.

Yet more and more time passes silently.
Outside the wind’s incomplete unrest
builds and disperses clouds about the sky.

And dark towns heap up on the horizon.
None of this cares for us. Nothing shows why
At this unique distance from isolation

It becomes still more difficult to find
Words at once true and kind
Or not untrue and not unkind.

Philip Larkin – Os Velhos Tolos

Que pensam eles que aconteceu, os velhos tolos,
Para os pôr assim? Porventura supõem
Que é mais crescido terem a boca aberta e a babar-se
E mijarem-se a toda a hora e não se recordarem
De quem os visitou hoje de manhã? Ou que é só quererem
E volta tudo a ser como quando dançaram toda a noite,
Ou casaram, ou marcharam de arma ao ombro num certo Setembro?
Ou imaginam que não houve mudança alguma
E que sempre se portaram como inválidos e bêbados
Ou se sentaram o dia inteiro em devaneio contínuo
Vendo a luz mover-se? Se não o crêem (e não podem), é estranho:
          Porque não estão a gritar?

Na morte, desfazemo-nos: os pedaços do que éramos
Começam a fugir uns dos outros para sempre
Sem ninguém a ver. Não é mais que um olvido, é certo:
Já o tivemos antes, mas dessa vez ia acabar,
E combinava-se com um esforço sem igual
para fazer desabrochar a flor de um milhão de pétalas
Que é estar aqui. Da próxima vez não se pode fingir
Que vai haver algo mais. E são estes os indícios:
Não saber como, não ouvir quem, já não ter
Força para escolher. Pelo ar deles, estão prontos para ir:
          Como podem não o saber?

Ser velho é talvez ter salas iluminadas
Dentro da cabeça e, lá dentro, gente a representar.
Gente que se conhece, mas cujo nome nos escapa;
Cada vulto responde a uma perda profunda, assomando
A uma porta conhecida, pousando uma vela, sorrindo
Das escadas, tirando um livro da estante; ou por vezes
Só as próprias salas, cadeiras e uma lareira acesa,
O vento no arbusto para lá da janela, ou a débil
Simpatia do sol na parede, num solitário
Fim de tarde de Verão, depois da chuva. É onde eles vivem:
Não aqui e agora, mas onde tudo aconteceu em tempos.
          Por isso é que eles têm

Um ar de ausência perplexa, tentando estar lá
E contudo estando aqui. É que as salas vão-se afastando,
Deixando para trás um frio inepto e o atrito constante
Do ar respirado, enquanto eles, os velhos tolos,
De cócoras junto ao morro da extinção, não se apercebem
De como está próximo. Deve ser isto que os sossega:
O pico que se observa de onde quer que se vá
Para eles é uma elevação. Será que não adivinham
O que os puxa para trás, e como tudo acabará? Nem à noite?
Ao longe de toda a horrível infância do avesso? Bom,
          Havemos de o saber.

      Trad.: Rui Carvalho Homem

THE OLD FOOLS

What do they think has happened, the old fools,
To make them like this? Do they somehow suppose
It’s more grown-up when your mouth hangs open and drools,
And you keep on pissing yourself, and can’t remember
Who called this morning? Or that, if they only chose,
They could alter things back to when they danced all night,
Or went to their wedding, or sloped arms some September?
Or do they fancy there’s really been no change,
And they’ve always behaved as if they were crippled or tight,
Or sat through days of thin continuous dreaming
Watching light move? If they don’t (and they can’t), it’s strange
[Why aren’t they screaming?

At death, you break up: the bits that were you
Start speeding away from each other for ever
With no one to see. It’s only oblivion, true:
We had it before, but then it was going to end,
And was all the time merging with a unique endeavour
To bring to bloom the million-petalled flower
Of being here. Next time you can’t pretend
There’ll be anything else. And these are the first signs:
Not knowing how, not hearing who, the power
Of choosing gone. Their looks show that they’re for it:
Ash hair, toad hands, prune face dried into lines –
[How can they ignore it?

Perhaps being old is having lighted rooms
Inside your head, and people in them, acting.
People you know, yet can’t quite name; each looms
Like a deep loss restored, from known doors turning,
Setting down a lamp, smiling from a stair, extracting
A known book from the shelves; or sometimes only
The rooms themselves, chairs and a fire burning,
The blown bush at the window, or the sun’s
Faint friendliness on the wall some lonely
Rain-ceased midsummer evening. That is where they live:
Not here and now, but where all happened once.
[This is why they give

An air of baffled absence, trying to be there
Yet being here. For the rooms grow farther, leaving
Incompetent cold, the constant wear and tear
Of taken breath, and them crouching below
Extinction’s alp, the old fools, never perceiving
How near it is. This must be what keeps them quiet:
The peak that stays in view wherever we go
For them is rising ground. Can they never tell
What is dragging them back, and how it will end? Not at night?
Not when the strangers come? Never, throughout
The whole hideous inverted childhood?
[Well, we shall find out.

Philip Larkin – A Igreja Indo-se…

Quando estou certo de que nada está ocorrendo,
Eu entro, e se ouve um baque quando eu solto a porta.
Mais uma igreja: bancos, panos, pedra, além dos
Livrinhos; as juncadas secas, que se cortam
Para o domingo; bronze e objetos a cobrir o
Altar; um órgão impecável e pequeno;
Silêncio tenso, de bolor, que salta à vista,
Há muito fermentado. Sem chapéu, retiro —
Genuflexão canhestra — os grampos de ciclista,

Ando e na pia de água benta esfrego a mão.
Vendo daqui, parece quase novo, o teto —
Foi limpo, restaurado? Um outro sabe: eu não.
Depois que subo até o atril, decifro certo
Versículo imperioso, numa letra grande,
E digo, sem querer, o “Aqui Termina” em tom
De voz mui to alto. O eco casquina um pouco. À entrada,
De novo, assino o livro, doo seis pence da Irlanda,
Concluo que não valia a pena essa parada.

Mas eu parei; e paro lá de vez em quando,
Depois, acabo por pegar-me assim, confuso,
Me perguntando o que buscar; me perguntando:
Quando igrejas caírem em total desuso,
Que vamos fazer delas? Pôr as catedrais
Perpetuamente abertas à visita, expondo
Pergaminho, pátena e píxide em vitrina,
Com o resto grátis para a chuva e os animais?
Vamos temê-las, como sítios de má sina?

À noite, umas mulheres de moral suspeita
Virão fazer os filhos pôr a mão em dada
Pedra, colher ervas prum câncer, ou, à espreita,
Já prevenidas, ver passar a alma penada?
Uma força qualquer continuará em vigor
Em jogos e em enigmas, como que fortuita;
Mas a superstição — e a crença — vão ter fim,
E o que restará quando a descrença se for?
Céu, sarça, erva, pilastras, lajes com capim,

Uma forma a cada semana menos clara,
Um fim mais obscuro. Fico me indagando
Quem será o último, o último, de fato, a andar a
Este local pelo que ele era; alguém do bando
Que fuce e tome nota e saiba o que era o jube?
O ébrio de ruínas, seco por antiqualha,
Ou o viciado em natais, um dependente
De baforadas de alva e estola, mirra e tubos
De órgão? Ou mesmo um tipo que me represente

Com tédio, inculto, vendo o lodo espiritual
Disperso, mas cruzando o arrabalde e o mato
Rumo a esta cruz de terra, que, de modo igual
E tanto tempo, soube conservar intato
O que, depois, só se separa — origem, morte
E matrimônio, idéias tais — em honra ao qual
Se ergueu tal concha? Pois, se ignoro por completo
Pra quê o celeiro ornado e com bolor, conforta e
Apraz deixar-me estar aqui, a sós e quieto;

É uma casa séria em terra séria, e ali, no
Seu ar mesclado, as nossas compulsões se cruzam,
Se reconhecem e disfarçam de destino.
E tudo isso não pode cair em desuso,
Visto que sempre vai haver alguém que um dia
Se pegue ansiando ser mais sério, e assim termine
Por gravitar para essa terra, que, conforme
Ensinam, contribui para a sabedoria,
Só pelo número de mortos que ali dormem.

Trad. Alípio Correia de Franca Neto

CHURCH GOING

Once I am sure there’s nothing going on
I step inside, letting the door thud shut.
Another church: matting, seats, and stone,
And little books; sprawl ings of flowers, cut
For Sunday, brownish now; some brass and stuff
Up at the holy end; the small neat organ;
And a tense, musty, unignorable silence,
Brewed God knows how long. Hatless, I take off
My cycle-cl ips in awkward reverence,

Move forward, run my hand around the font.
From where I stand, the roof looks almost new —
Cleaned, or restored? Someone would know: I don’ t.
Mounting the lec ter, I peruse a few
Hec toring large-scale verses, and pronounce
‘Here endeth’ much more loudly than I’d meant.
The echoes snigger briefly. Back at the door
I sign the book, donate an Irish sixpence,
Reflect the place was not worth stopping for.

Yet stop I did: in fact I of ten do,
And always end much at a loss l ike this,
Wondering what to look for; wondering, too,
When churches fall completely out of use
What we shall turn them into, if we shall keep
A few cathedrals chronically on show,
Their parchment, plate and pyx in locked cases,
And let the rest rent-f ree to rain and sheep.
Shall we avoid them as unlucky places?

Or, after dark, will dubious women come
To make their children touch a particular stone;
Pick simples for a cancer; or on some
Advised night see walking a dead one?
Power of some sort or other will go on
In games, in riddles, seemingly at random;
But superstition, l ike bel ief , must die,
And what remains when disbel ief has gone?
Grass, weedy pavement, brambles, buttress, sky,

A shape less recognisable each week,
A purpose more obscure. I wonder who
Will be the last, the very last, to seek
This place for what it was; one of the crew
That tap and jot and know what rood-lof ts were?
Some ruin-bibber, randy for antique,
Or Christmas-addict, counting on a whiff
Of gown-and-bands and organ-pipes and myrrh?
Or will he be my representative,

Bored, uninformed, knowing the ghostly sil t
Dispersed, yet tending to this c ross of ground
Through suburb scrub because it held unspil t
So long and equaly what since is found
Only in separation — marriage, and birth,
And death, and thoughts of these – for which was buil t
This spec ial shell? For, though I’ve no idea
What this accoutred f rowsty barn is worth,
It pleases me to stand in silence here;

A serious house on serious earth it is,
In whose blent air all our compulsions meet,
Are recognised, and robed as destinies.
And that much never can be obsolete,
Since someone will forever be surprising
A hunger in himself to be more serious,
And gravitating with it to this ground,
Which, he once heard, was proper to grow wise in,
If only that so many dead lie round.

Jorge Luis Borges – Bloomsday

Num só dia do homem estão os dias
do tempo, desde aquele inconcebível
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias
até o outro em que o rio ubíquo
do tempo secular torne à nascente,
que é o Eterno, e se apague no presente,
no futuro, no ontem, no que ora possuo.
Entre a aurora e a noite está a história
universal. E vejo desde o breu,
junto a meus pés, os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dai-me, Senhor, coragem e alegria
para escalar o cume deste dia.

(Cambridge, 1968)

Trad.: Josely Vianna Baptista

T. S. Eliot – Os Homens Ocos

     “A penny for the Old Guy”
     (Um pêni para o Velho Guy)

I
Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada

Forma sem forma, sombra sem cor
Força paralisada, gesto sem vigor;

Aqueles que atravessaram
De olhos retos, para o outro reino da morte
Nos recordam – se o fazem – não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como os homens ocos
Os homens empalhados.

II

Os olhos que temo encontrar em sonhos
No reino de sonho da morte
Estes não aparecem:
Lá, os olhos são como a lâmina
Do sol nos ossos de uma coluna
Lá, uma árvore brande os ramos
E as vozes estão no frêmito
Do vento que está cantando
Mais distantes e solenes
Que uma estrela agonizante.

Que eu demais não me aproxime
Do reino de sonho da morte
Que eu possa trajar ainda
Esses tácitos disfarces
Pele de rato, plumas de corvo, estacas cruzadas
E comportar-me num campo
Como o vento se comporta
Nem mais um passo

– Não este encontro derradeiro
No reino crepuscular

III

Esta é a terra morta
Esta é a terra do cacto
Aqui as imagens de pedra
Estão eretas, aqui recebem elas
A súplica da mão de um morto
Sob o lampejo de uma estrela agonizante.

E nisto consiste
O outro reino da morte:
Despertando sozinhos
À hora em que estamos
Trêmulos de ternura
Os lábios que beijariam
Rezam as pedras quebradas.

IV

Os olhos não estão aqui
Aqui os olhos não brilham
Neste vale de estrelas tíbias
Neste vale desvalido
Esta mandíbula em ruínas de nossos reinos perdidos

Neste último sítio de encontros
Juntos tateamos
Todos à fala esquivos
Reunidos na praia do túrgido rio

Sem nada ver, a não ser
Que os olhos reapareçam
Como a estrela perpétua
Rosa multifoliada
Do reino em sombras da morte
A única esperança
De homens vazios.

V

Aqui rondamos a figueira-brava
Figueira-brava figueira-brava
Aqui rondamos a figueira-brava
Às cinco em ponto da madrugada

Entre a ideia
E a realidade
Entre o movimento
E a ação
Tomba a Sombra
Porque Teu é o Reino

Entre a concepção
E a criação
Entre a emoção
E a reação
Tomba a Sombra
A vida é muito longa

Entre o desejo
E o espasmo
Entre a potência
E a existência
Entre a essência
E a descendência
Tomba a Sombra
Porque Teu é o Reino
Porque Teu é
A vida é
Porque Teu é o

Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Não com uma explosão, mas com um suspiro.

Trad.: Ivan Junqueira

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Álvaro de Campos – Poema em Linha Reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.