Quando tive contato pela primeira vez com o trabalho de Belchior não foi em razão da qualidade intrínseca de suas composições. Corriam os anos 80, e, como músico amador que era, eu estava mais ligado no trabalho realizado pela geração pop daquela época – Legião, Titãs, Paralamas, Ira!, etc. Da MPB, apreciava quase que somente Caetano e Chico.
Foi então que deparei com uma fita cassete gravada de um álbum do Belchior. Pertencia ao amigo Arlindo Mellão, fã do cearense e de gente como Sá & Guarabyra, 14 Bis e Geraldo Azevedo.
O álbum, até hoje relativamente raro, chamava-se “Um Show: 10 Anos de Sucesso”, e continha nove das principais canções que ele havia composto até então em seus poucos mais de 10 anos de carreira, em arranjos nos quais se destacavam os teclados de Raposo e a guitarra de Sérgio Zurawski – bem ao estilo dos anos 80 – que modernizavam as canções dando-lhes nova roupagem (até hoje acho aqueles arranjos os melhores de todas as versões que ele fez para cada uma daquelas músicas).
Trazia canções como “Paralelas” (sucesso na voz de Vanusa, com o poderoso refrão: “No Corcovado, quem abre os braços sou eu / Copacabana, esta semana, o mar sou eu / Como é perversa a juventude do meu coração / Que só entende o que é cruel, o que é paixão”), “Comentário a respeito de John” (“Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho / Deixem que eu decido a minha vida. / Não preciso que me digam, de que lado nasce o sol / Porque bate lá o meu coração”), “Velha Roupa Colorida”, “Como Nossos Pais” (clássico absoluto na voz de Elis), “A Palo Seco” (“Se você vier me perguntar por onde andei / No tempo em que você sonhava / De olhos abertos lhe direi: / Amigo, eu me desesperava…”), “Galos, Noites e Quintais” e o seu maior sucesso (junto com “Apenas um Rapaz Latino Americano”): “Medo de Avião”.
Na época, eu tinha apenas 18 anos. E estava apaixonado por aquela que viria a se tornar minha esposa. Precisava desesperadamente de uma desculpa para encontrar o objeto de meus desejos e pareceu uma boa ideia ir até a casa do Mellão à noite para pedir-lhe a fita de empréstimo. Na volta, eu poderia encontrar com ela – o que acabou acontecendo.
No dia seguinte, coloquei a fita para ouvir. E foi uma revelação. Belas melodias e letras absurdamente boas que eram uma mistura de poesia, erudição e ironia. Belchior sabia compor. E como. A maioria das canções acima mencionadas são clássicos absolutos da MPB e não envelheceram nada desde que foram escritas.
A descrição acre que ele faz da juventude de sua época, em “Como Nossos Pais”, poderia ser aplicada aos jovens de hoje em dia, sem mexer em nenhuma linha da canção. “Velha Roupa Colorida” ainda é uma das melhores canções já escritas sobre a passagem do tempo:
(…) Como Poe, poeta louco americano, eu pergunto ao passarinho:
“Assum Preto, ‘passo’ preto, black bird, o que se faz?”
E raven, never, raven, never, never, never, never, never, raven,
Pássaro Preto, assum preto, black bird me responde:
“Tudo já ficou atrás”
E never, never, never, never, never, never, raven
Pássaro Preto, assum preto, black bird me responde:
“O passado nunca mais…”
À época, todavia, a música que mais me impressionou não foi nenhuma dessas. Eu tinha apenas 18 anos e estava apaixonado pela primeira vez na vida. Não por outra razão, a canção que mais me marcou daquela fita foi uma verdadeira ode ao amor erótico chamada “Divina Comédia Humana”:
“(…) Aí um analista amigo meu
Me disse que desse jeito
Não vou viver satisfeito
Porque o amor é uma coisa mais profunda que um transa sensual
Deixando a profundidade de lado
Eu quero é ficar colado à pele dela noite e dia
Fazendo tudo de novo e dizendo sim! à paixão, morando na filosofia
Quero gozar no seu céu,
Pode ser no seu inferno
Viver a divina comédia humana
Onde nada é eterno (…)”
A capacidade de traduzir em melodias e letras sentimentos complexos (ou nem tanto) era a marca de Belchior. Amor, sexo, paixão, tempo, medo. Morte. Todos esses temas foram trabalhados com maestria pelo artista. Esse último e mais assustador, enfim, o alcançou e o derrotou no dia de ontem.
Fica um buraco enorme na música brasileira, até porque o mercado da música não tem conseguido repor compositores com a mesma qualidade de um Belchior, de um Chico ou de um Caetano. Cada vez que morre um gênio desses, ficamos mais órfãos de artistas com a capacidade que eles têm de ler e reinterpretar nosso tempo através de seus trabalhos.
Mas para mim não é nem isso o que mais incomoda. Como tudo na vida, o que mais nos afeta é aquilo que nos diz mais de perto. Minha dor é perceber que, com a morte de Belchior, se vai também – simbolicamente enterrado com o artista – um pedaço de minha vida. Aquele pedaço mais febril, intenso, irracional e louco a que chamamos juventude.
Diante desta perda, desesperadamente eu grito em português, recorrendo aos conselhos do compositor, que me responde – não sem uma pitada de ironia – via “Pequeno Perfil de um Cidadão Comum”:
– Que a terra lhe seja leve…