Tarso de Melo – Raiz e minério

ainda é possível ouvir (mais fundo, mais fundo,
você encontra) o som da lama se arrastando por baixo
das portas e aos pés do sofá (o que há é o homem,
esse bicho) nos vãos da estante e no meio dos livros
nas gavetas da geladeira (que invade a terra procurando
outro homem) na altura do peito e entre os dentes
na clareira dos cabelos e na mão (o que há é o homem,
fera descontente) entre os dedos do pé e entre os dedos
da mão no jardim morto (cavando sua própria cova)
na linha da memória e na pia (mais fundo, mais fundo)
nos sulcos do azulejo (rasgando o manto da terra
para chegar a si mesmo) nas gretas e nos interstícios
(o que há é esse bicho) nos orifícios e nas grutas
do corpo (incansável, surdo de si, sem projeto) no oco
do sonho no toco das unhas (comendo os próprios pés
e o chão sob eles) invadindo os relógios e os lençóis
nas palavras (cada vala, cada veia) e entre os versos
nos parágrafos e nas ideias abandonadas (ali está, espelho)
caindo do chuveiro dura (o homem diante do homem)
e inegociável comendo o pão e o chão (o lobo e suas garras
roendo) bebendo toda a água da casa (mais fundo, mais
fundo) engasgando vozes (ali está o homem) fundindo
meus gritos aos seus ruminando (cada vez mais homem,
cada vez mais bicho) como fede como fende come
o tempo come a fuga come (homem não tem limite)
e cospe e rói (bicho não pede licença) e cospe e

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Tarso de Melo – Hoje

Amanhã vai chover mais forte,
todos nós já sabemos.
E é estranha a calma dos rios

Os guarda-chuvas seguem fechados,
os meteorologistas fingem não ter nada com isso,
o barro não demonstra qualquer apreensão,
o vento lambe as roupas secas no varal,
nenhuma janela ainda se fechou.

A água vai vir, forte, como sempre,
engolindo todo o sossego ao redor,
mas os buracos não confessam
as tristes poças de amanhã.

As casas, as coisas, as vidas,
o que sucumbirá ao mar inevitável
não dá sequer um suspiro,
não se despede de nós, de nada.

Plantamos no solo morto
esse esquecimento do futuro
– e tudo o que brota chamamos

hoje.