Manuel António Pina – Café do molhe

Perguntavas-me
(ou talvez não tenhas sido
tu, mas só a ti
naquele tempo eu ouvia)

por que a poesia,
e não outra coisa qualquer:
a filosofia, o futebol, alguma mulher?
Eu não sabia

que a resposta estava
numa certa estrofe de
um certo poema de
Frei Luis de Léon que Poe

(acho que era Poe)
conhecia de cor,
em castelhano e tudo.
Porém se o soubesse

de pouco me teria
então servido, ou de nada.
Porque estavas inclinada
de um modo tão perfeito

sobre a mesa
e o meu coração batia
tão infundadamente no teu peito
sob a tua blusa acesa

que tudo o que soubesse não o saberia.
Hoje sei: escrevo
contra aquilo de que me lembro,
essa tarde parada, por exemplo.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 02/06/2019

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Manuel António Pina – Corpo Presente

Toda a casa suspendera
a respiração
incapaz de conter
tamanha desproporção,

e eu próprio desaparecera
algures na sala, entre a tua vida e a tua morte.
Atenderam o telefone
falando baixo,

temendo que regressasse
cada coisa do teu lugar
sem estar prontos ainda
para a tua solidão.

Faltava muito
para podermos perceber,
muitos passos para chegarmos
aonde sempre estivéramos:

mais perto do tédio do que da esperança,
da parte do que do todo,
vagueando ainda na tua ausência,
longe do céu e da ideia da morte.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 08/04/2019

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Manuel António Pina – Sexta-feira Santa

A conversa era sobre Deus,
embora o teólogo estivesse inclinado
a pensar que fosse sobre outra coisa,
pois era hora de jantar.
Pegou num cigarro e perguntou às senhoras se podia fumar.
Tinha devorado o pargo com honesto apetite
e elogiava as virtudes do cozinheiro.
Só Deus, algures, chorava sobre
os despojos da sua pequena criatura na travessa
a caminho da copa, antes da sobremesa.

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Manuel António Pina – Café Orfeu

Nunca tinha caído
de tamanha altura em mim
antes de ter subido
às alturas do teu sorriso.

Regressava do teu sorriso
como de uma súbita ausência
ou como se tivesse lá ficado
e outro é que tivesse regressado.

Fora do teu sorriso
a minha vida parecia
a vida de outra pessoa
que fora de mim a vivia.

E a que eu regressava lentamente
como se antes do teu sorriso
alguém (eu provavelmente)
nunca tivesse existido.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 22/03/2019

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Manuel António Pina – Numa Estação de Metrô

A minha juventude passou e eu não estava lá.
Pensava em outra coisa, olhava noutra direção.
Os melhores anos da minha vida perdidos por distração!

Rosalinda, a das róseas coxas, onde está?
Belinda, Brunilda, Cremilda, quem serão?
Provavelmente professoras de Alemão
em colégios fora do tempo e do espa-

ço! Hoje, antigamente, ele tê-las-ia
amado de um amor imprudente e impudente,
como num sujo sonho adolescente
de que alguém, no outro dia, acordaria.

Pois tudo era memória, acontecia
há muitos anos, e quem se lembrava
era também memória que passava,
um rosto que entre outros rostos se perdia.

Agora, vista daqui, da recordação,
a minha vida é uma multidão
onde, não sei quem, em vão procuro
o meu rosto, pétala dum ramo úmido, escuro*.

N. do. T.: o último verso faz menção ao famoso dístico In a Station of the Metro, de Ezra Pound, já publicado na página.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 26/02/2019

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Manuel António Pina – As vozes

A infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta

– Quem é?
– É a mãe morta
– São coisas passadas
– Não é ninguém

Tantas vozes fora de nós!
E se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? E se nos fomos embora?
E se ficamos sós?

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 12/02/2019

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Manuel António Pina – A Canção dos Adultos

Parece que crescemos mas não.
Somos sempre do mesmo tamanho.
as coisas que à volta estão
é que mudam de tamanho.

Parece que crescemos mas não crescemos.
São as coisas grandes que há,
o amor que há, a alegria que há,
que estão a ficar mais pequenos.

Ficam de nós distantes
que às vezes já mal os vemos.
Por isso parece que crescemos
e que somos maiores que dantes.

Mas somos sempre como dantes.
Talvez até mais pequenos
quando o amor e o resto estão tão distantes
que nem vemos com estão distantes.

Então julgamos que somos grandes.
e já nem isso compreendemos.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 05/01/2019

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Manuel António Pina – de “Cuidados Intensivos”

I

“A esta hora e neste sítio
(miocárdio ventricular esquerdo)
é a abstracta vida que me assalta.
Eles não sabem
que o seu coração pulsa,
ferido, no meu coração,
que a minha dor alheia
vagarosamente mata
os seus sonhos, os seus sentidos,
os seus dias visíveis e invisíveis,
a linha dos telhados
ao longe sobre o céu.
Como saberiam
(com que palavras exteriores?)
que existem
dentro de mim
de um modo fora de mim,
os parentes, os amigos,
a vaga enfermeira da noite,
que enquanto o meu Único coração
morre na minha cabeça
a luz do quarto se
apaga para sempre
e o silêncio se fecha
sobre os corredores?
No quarto ao lado alguém
a noite passada morreu,
provavelmente eu.
Os livros, as flores
da mesa de cabeceira
conhecerão estas últimas coisas
em algum sítio da minha alma?”

Terça-feira, 3 de Março.

(…)

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 11/09/2018

Manuel António Pina – Amor como em Casa

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 20/08/2018

Manuel António Pina – M., A Última Palavra

Entre restos de vida passada
refugiava-se o coração de cada um de nós no seu covil,
uma gota de sangue, pequeno vitral de reflexos coloridos,
na orelha de M., a pistola no chão perto da mão, ainda quente a pistola.

O que quer que tivesse acontecido
fora em sítios inacessíveis às notícias dos jornais
e aos flashes das máquinas fotográficas
voando agora como aves cegas à sua volta.

Um grande mutismo cobrira tudo
gelando os nossos passos e o que disséssemos
ainda antes de pronunciado;
percebia-se, de quem sempre quis ter a última palavra.

Não se percebia era a falta de uma explicação ou de um sinal
(ao menos um sinal justificar-se-ia dadas as circunstâncias),
apenas um botão do casaco mal abotoado,
provavelmente sugerindo alguma impaciência.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 11/07/2018