Stig Dagerman – A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer

Sem fé, ouso pensar a vida como uma errância absurda a caminho da morte certa. Não me coube em herança qualquer deus, nem ponto fixo sobre a terra de onde algum pudesse ver-me. Tampouco me legaram o disfarçado furor do cético, a astúcia do racionalista ou a ardente candura do ateu. Não ouso por isso acusar os que só acreditam naquilo que duvido, nem os que fazem o culto da própria dúvida, como se não estivesse, também esta, rodeada de trevas. Seria eu, também, o acusado, pois de uma coisa estou certo: o ser humano tem uma necessidade de consolo impossível de satisfazer.

Procuro o que me pode consolar como o caçador persegue a caça, atirando sem hesitar sempre que algo se mexe na floresta. Quase sempre atinjo o vazio, mas, de tempos a tempos, não deixa de me tombar aos pés uma presa. Célere, corro a apoderar-me dela, pois sei quão fugaz é o consolo, sopro dum vento que mal sobe pela árvore. Debruço-me. Tenho-a!

Mas tenho o que entre os dedos? Se sou solitário – uma mulher amada, um desditoso companheiro de viagem. Se sou poeta ou prisioneiro – um arco de palavras com assombro reteso, um súbita suspeita de liberdade. Se sou ameaçado pela morte ou pelo mar – um animal vivo e quente, coração que pulsa sarcástico; um recife de granito bem sólido.
Sendo tudo isso, é sempre escasso o que tenho!

As formas de consolo: se procuro umas, outras há que me perseguem sem que eu as convoque. Sussurram odiosas. Enchem-me o quarto de murmúrios.
O prazer: “Entrega-te sem restrições”!
O talento: “Usa-me tão mal como a mim mesmo”!
A minha sede de gozo: “Só os gulosos sabem viver”!
A solidão: “Despreza os homens”!
Este desejo de morte: “Fere, Mata”!»

Bem estreito é o fio da navalha! Entre dois perigos me equilibro: de um lado ameaça-me a ávida boca do excesso, do outro a amargura da avareza que de si mesma se alimenta.

E teimo na recusa de optar entre a orgia e a ascese, ainda que com isso me sujeite ao suplício em brasa dos desejos. Não sou livre nos meus atos, por isso tudo me pode ser desculpado.

O que procuro para a vida não é uma desculpa, mas exatamente o seu contrário: é o perdão que busco. Descubro, afinal, que se não levar em conta a minha liberdade, todo o consolo é enganador, mera imagem refletida do desespero. De fato, assim que o desespero me diz – “perca a esperança, o dia não passa de um momento de luz entre duas noites”, há uma falsa voz que me grita – “tenha confiança, a noite não é mais que um momento de trevas entre dois dias”.

A humanidade, porém, não é de palavras que precisa; anseia por um consolo que ilumine. E mesmo aquele que deseje tornar-se mau — agir como se todos os atos fossem defensáveis — deve ter ao menos a bondade de notar quando o consegue.

Ninguém pode enumerar todos os casos em que o consolo é uma necessidade. É impossível saber quando cairá o crepúsculo, impossível enumerar todos os casos em que o consolo se fará necessário. A vida não é um problema que possa resolver-se dividindo a luz pela escuridão ou os dias pelas noites, mas sim uma viagem imprevisível entre lugares que não existem.

Por vezes, à beira-mar, no perpétuo movimento das águas e no eterno fugir do vento, sinto o desafio que a eternidade me lança. Pergunto-me então o que vem a ser o tempo, e descubro que não passa do consolo que nos resta por não durarmos para sempre. Miserável consolo que só os Suíços enriquece…

Noites há em que, sentado à lareira, no quarto mais resguardado de todos, sinto subitamente a morte cercar-me: no fogo, nos objetos pontiagudos que me rodeiam, no peso do teto e na massa das paredes; na água, na neve, no calor, no meu sangue. Pergunto-me então o que vem a ser a nossa muito humana sensação de segurança, e percebo que não passa de um consolo para o fato de a morte ser o que há de mais próximo à vida. Pobre consolo, que não cessa de nos recordar o que desejaria fazer-nos esquecer!

Decido encher todas as minhas páginas em branco com as mais belas combinações de palavras que seja capaz de engendrar. E depois, porque quero assegurar-me que a vida não é absurda e não me encontro só sobre a terra, reúno todas num livro e ofereço-o ao mundo. Este, retribui-me com a riqueza, a glória e o silêncio. Mas não sei que fazer com este dinheiro nem que prazer tirar de contribuir para o progresso da literatura, pois só desejo o que jamais obterei — a certeza de que as minhas palavras tocaram o coração do mundo. É então que me pergunto o que vem a ser o meu talento, e descubro que não passa de uma forma de me consolar da solidão. Risível consolo — que apenas me torna cinco vezes mais pesada a solidão.
Nesse animal que, veloz, atravessa a clareira, por vezes capaz de ver encarnada a liberdade e ouvir uma voz que me insinua: “Vive com simplicidade, frui do que desejas e não temas as leis”! Excelente conselho. Mas de que se trata senão de uma forma de consolo para o fato da liberdade não existir? Impiedoso consolo — para quem sabe que o Homem levou milhões de anos para não conseguir ser senão um lagarto, podre de indiferença!

Quando, por fim, me apercebo que esta terra é uma vala comum, onde Salomão, Ofélia e Himmler repousam lado a lado, concluo que tanto o crápula como a infeliz têm o mesmo fim que o sábio. Por isso, para uma vida falhada, a morte pode tornar-se numa forma de consolo — e bem atroz, sobretudo para quem na vida queria encontrar forma de vencer a morte.

Não possuo filosofia, em que possa mover-me como o peixe na água ou o pássaro no céu. Tudo em mim é um duelo, uma luta travada a cada minuto da vida entre falsas e verdadeiras formas de consolo. Umas não fazem senão aumentar a impotência e tornar-me mais fundo o desespero, outras são fonte de temporária libertação. Falsas e verdadeiras! Deveria antes dizer verdadeira, pois só existe uma consolação verdadeiramente real: a que me diz que sou um homem livre, um indivíduo inviolável, ser soberano no interior dos seus limites.
Mas a liberdade começa na escravidão e a soberania na dependência. O sinal mais vivo da servidão é o medo de viver. O definitivo sinal de liberdade é o fato de o medo deixar espaço ao gozo tranquilo da independência.

Dir-se-á que preciso ser dependente para conhecer o gozo de ser livre! É certamente verdade. À luz dos meus atos, percebo que toda a minha vida parece não ter tido por objetivo senão construir o seu próprio infortúnio: sempre me escravizou o que devia tornar-me livre.

Outros homens têm outros mestres. A mim o talento torna-me escravo ao ponto de não ousar em pregá-lo — tal é o medo de o ter perdido. Mais: subjugo-me de tal modo ao meu nome, que mal me atrevo a escrever uma linha, não vá esta manchá-lo. E, quando se instala a depressão, é dela que sou também escravo. O meu maior desejo é retê-la. O meu prazer mais forte, sentir que tudo o que valho residia no que julgo ter perdido: essa capacidade de gerar beleza a partir do que é em mim desespero, desgosto e fraqueza. Com amargo prazer desejo ver ruir o que arquitetei e ver-me, eu também, envolto na neve do esquecimento. Mas quê? A depressão é uma boneca russa, e na última boneca estão a faca, a lâmina de barbear, o veneno, as águas profundas e o salto para um grande abismo. De todos esses instrumentos de morte me torno escravo. Perseguem-me como cães, a não ser que o cão seja apenas eu. Parece-me então ser o suicídio a única prova da liberdade humana.
Porém — não sei ainda de onde nem como — sinto que se aproxima o milagre da libertação. E a eternidade, que há bem pouco me assombrava, testemunha agora este acesso à liberdade: esta descoberta súbita e simples de que ninguém, nenhum poder, nenhum ser humano, tem o direito de me forçar ao ponto de secar em mim o desejo de viver.

Que é do mar se os rios se recusam? Estou, afinal, perto do mar e da sua ciência. Ninguém pode exigir ao mar que traga todos os barcos, ou ao vento que encha todas as velas. De igual modo, ninguém tem o direito de me exigir que viva prisioneiro de certas funções. A minha divisa não é o dever antes de tudo, mas a vida acima de tudo. Como os outros homens, tenho direito a alguns momentos em que possa sentir-me à parte, em que possa saber que para além de pertencer a essa massa anônima chamada população mundial, sou também uma unidade autônoma.

Só nesses instantes me liberto de tudo o que na minha vida foi causa de desespero. Reconheço que o mar e o vento não deixarão de me sobreviver e que a eternidade nem sequer de mim se lembra. Por que me hei-de eu lembrar dela? A vida só é curta se a coloco no patíbulo do tempo. As suas possibilidades só são limitadas se me ponho a contar o número de palavras ou livros que a morte me dará ainda tempo de acender. Mas por que me hei-de eu pôr a contar? No fundo, o tempo de nada serve, inútil instrumento de medida que só regista o que a vida já me trouxe.

Na verdade, nada do que é importante e acontece e me faz vivo, tem a ver com o tempo. O encontro com um ser amado, uma carícia na pele, a ajuda no momento crítico, a voz solta de uma criança, o frio gume da beleza – nada disso tem horas e minutos. Tudo se passa como se não houvesse tempo. Que importa se a beleza é minha durante um segundo ou por cem anos? A felicidade não só se situa à margem do tempo, como nega toda a relação deste com a vida.

Assim, num só movimento, liberto os ombros do peso de dois fardos: o tempo e as tarefas que teimam em me exigir. Nem a vida é mensurável nem viver é uma tarefa. O salto do cabrito ou o nascer do sol não são tarefas. Como há-de sê-lo a vida humana – força surda a crescer na dor da perfeição? E o que é perfeito não desempenha tarefas. O que é perfeito labora em estado de repouso. É absurdo pretender que a função do mar seja exibir armadas e golfinhos. Evidentemente que o faz – mas preservando toda a sua liberdade. Que outra tarefa a do homem senão viver? Faz máquinas? Escreve livros? Faça o que fizer poderia muito bem fazer outra coisa. Não é isso que importa. Importa é saber-se livre como qualquer outro elemento da criação. Importa é saber-se um fim autônomo, que repousa em si mesmo como uma pedra sobre a areia.

Posso até isentar-me do poder da morte. É verdade que não consigo afastar a ideia que ela se me cola constantemente aos calcanhares. Muito menos sou capaz de lhe negar realidade. Mas posso aniquilar a sua ameaça, evitando escorar a minha vida em pontos de apoio tão precários como o tempo e a glória.

Aqui é que não é lugar de permanência: eternamente voltado para o mar a comparar a sua liberdade com a minha. Chegará o momento de retomar o caminho da terra e enfrentar os responsáveis pela opressão que me faz vítima. Serei forçado a reconhecer que o homem deu vida a formas que, pelo menos na aparência, se revelam mais fortes do que ele. Mesmo a minha recente liberdade não é suficiente para as fatigar, mas somente para suspirar sob o seu peso.

Entretanto, entre as exigências que pesam sobre o homem, sei distinguir as exigências absurdas das inelutáveis. E absurdo é termos perdido para sempre uma forma de liberdade: a que advém de se possuir um elemento próprio. O peixe, tal como o pássaro e o animal terrestre, têm o seu. Thoreau ainda podia contar com a floresta de Walden – mas onde está hoje a floresta na qual o ser humano prove que pode viver livre, e não limitado pelos rígidos moldes da sociedade?

Sou obrigado a responder: em parte alguma. Se desejo viver livre, é por enquanto necessário que o faça no interior desses moldes. Sei que o mundo é mais forte do que eu. E para resistir ao seu poder só me tenho a mim. O que já não é pouco. Se o número não me esmagar, sou, também eu, um poder. E enquanto me for possível empurrar as palavras contra a força do mundo, esse poder será tremendo, pois quem constrói prisões expressa-se pior do que quem se bate pela liberdade. E no dia em que só o silêncio me restar como defesa, então será limitado, pois gume algum pode fender o silêncio vivo.

É este o meu único consolo. Sei que as recaídas no desespero serão profundas e numerosas, mas a lembrança do milagre da libertação leva-me como uma asa a um fim que me inebria: um consolo que seja mais do que apenas isso, e mais vasto que uma filosofia: que seja, enfim, uma razão de viver.

REPUBLICAÇÃO: artigo publicado no blog originalmente em 17/10/2017

Francis J. Quirós – Efêmero

Efêmero é algo breve, de curta duração. Efêmera é a tua história na história da humanidade. A humanidade é efêmera. Tudo o que é material é efêmero. Também o imaterial: um olhar, um gesto, uma saudação, um beijo, um orgasmo. As coisas que são e as que não são mais, mas que foram um dia: aqueles dias na praia, aquele deus a quem tu rezaste, aquela excitação que sentiste e até a próxima pessoa que irás conhecer. São efêmeros os teus seguidores e os “likes” de teu perfil… O efêmero nos prende, nos apaixona, precisa de nós. Tudo sucumbe ante a fragilidade do tempo. O tempo torna efêmera toda existência e pensamento, como um nascimento. E o nascimento de um palhaço é um ato de fé que raras vezes ocorre neste mundo em constante movimento. Assim começa esse espetáculo onde as palavras desaparecem, a emoção e a improvisação se tornam a linguagem principal e o tempo se transforma na urgência de viver. Cuco, é aquele palhaço que te olha nos olhos para que você reflita sobre ele. Ele só quer brincar, aprender, experimentar, fracassar. E sobretudo divertir-se com um público que frequentemente esqueceu o significado de rir como uma criança. Porque o riso também é efêmero. E é por isso que ele é tão desejado. Bem-vindo ao teatro, senta-te e deixa-te levar.

Texto de apresentação da peça “Cucko, cuando lo efímero se detiene”, de Francis J. Quirós

REPUBLICAÇÃO: texto publicado no blog originalmente em 05/06/2017

Efímero

Efímero, es algo breve, de poca duración. Efímera es tu historia en la historia de la humanidad. La humanidad es efímera. Todo lo material es efímero. También lo inmaterial: una mirada, un gesto, un saludo, un beso, un orgasmo. Las cosas que son y las que ya no son pero fueron algún día: esos días en la playa, ese dios al que rezasteis, esa euforia que sentisteis e incluso la próxima persona que conozcas. Son efímeros tus seguidores y los “likes” de tu perfil… Lo efímero nos engancha, nos enamora, nos necesita. Todo sucumbe ante la fragilidad del tiempo. El tiempo convierte en efímero toda existencia y pensamiento, como un nacimiento. Y el nacimiento de un payaso es un acto de fe que pocas veces sucede en este veloz mundo. Así comienza este espectáculo donde la palabra desaparece, la emoción y la improvisación se convierten en el lenguaje principal y el tiempo se transforma en la urgencia de vivir. Cucko, es ese payaso que te mira a los ojos para que te reflejes en él. Sólo quiere jugar, aprender, experimentar, fracasar. Y sobre todo divertirse con un público que, a veces, ha olvidado qué es eso de reír como un niño o una niña. Porque la Risa, también es efímera. Y por eso todos la deseamos con tanta fuerza. Bienvenidos al teatro, siéntate y déjate llevar.

Samuraitiger19 – Nos minutos finais de sua vida, Calvin teve uma última conversa com Haroldo…

“Calvin? Calvin, querido?”

No escuro, Calvin ouviu a voz de Susie, sua esposa de 53 anos. Calvin se esforçou para abrir os olhos. Deus, ele se sentia tão cansado e foi preciso muita força para conseguir. Lentamente a luz espantou as trevas, e ele enxergou novamente. Aos pés de sua cama estava sua esposa. Calvin molhou os lábios ressequidos e falou com voz rouca: “Você… o… encontrou?”

“Sim, querido”, disse Susie, com tristeza na voz. “Ele estava no sótão.”

Susie enfiou a mão dentro de sua grande bolsa e tirou para fora um velho e macio tigre cor de laranja. Calvin não pôde deixar de rir. Havia sido assim por muito tempo. Muito tempo.

“Eu o lavei para você”, disse Susie, sua voz falhando um pouco enquanto ela colocava o tigre de pelúcia ao lado de seu marido.

“Obrigado, Susie”, disse Calvin.

Por algum tempo, Calvin apenas permaneceu deitado em sua cama de hospital, a cabeça virada para o lado, olhando o velho brinquedo com nostalgia.

“Querida”, Calvin disse finalmente, “Você se importaria em me deixar sozinho com o Haroldo por um tempo? Eu gostaria de conversar com ele.”

“Tudo bem”, disse Susie. “Vou pegar algo para comer no restaurante. Volto daqui a pouco.”

Susie beijou seu marido na testa e virou-se para sair. Com força repentina, mas suavemente, Calvin a deteve. Carinhosamente, ele puxou sua esposa e lhe deu um beijo apaixonado nos lábios. “Eu te amo”, disse Susie.

Susie se virou e saiu. Calvin viu as lágrimas que escorriam em seu rosto enquanto ela passava pela porta.

Calvin então se virou para encarar seu mais antigo e querido amigo. “Oi, Haroldo. Já faz muito tempo, não é, velho amigo?”

Haroldo não era mais um boneco de pelúcia, mas o grande e velho tigre peludo de quem Calvin sempre se lembrava. “Muito tempo, Calvin”, disse Haroldo.

“Você… não mudou nem um pouco.” Calvin sorriu.

“Você mudou bastante”, disse Haroldo com tristeza.

Calvin sorriu. “Mesmo? Eu nem percebi.”

Houve uma longa pausa. O som de um relógio tiquetaqueando os segundos ecoou no estéril quarto de hospital.

“Então… Você se casou com a Susie Derkins”, disse Haroldo, finalmente sorrindo. “Eu sempre soube que você gostava dela.”

“Cale a boca!”, Calvin falou, com um imenso sorriso no rosto.

“Conte tudo o que eu perdi. Eu adoraria saber o que você tem feito!”, Haroldo falou, entusiasmado.

E assim Calvin disse-lhe tudo. Contou como ele e Susie se apaixonaram quando ainda estavam na escola e como haviam se casado logo depois de se formar; sobre seus três filhos e quatro netos; sobre como ele transformou o Astronauta Spiff em um dos mais populares romances de ficção científica da década, e assim por diante. Depois de contar tudo para Haroldo houve novamente uma longa pausa.

“Você sabe… Eu visitei você no sótão um monte de vezes.” Calvin disse.

“Eu sei.”

“Mas eu não conseguia vê-lo. Tudo o que eu enxergava era um bicho de pelúcia”. Sua voz estava embargada e lágrimas de arrependimento começaram a jorrar de seus olhos.

“Você cresceu, velho amigo”, disse Haroldo.

Calvin não resistiu mais e soluçou, abraçando seu melhor amigo. “Eu sinto muito! Eu sinto muito! Eu quebrei minha promessa! Eu havia prometido que não iria crescer e que nós ficaríamos juntos para sempre!”

Haroldo acariciou os cabelos de Calvin, ou o pouco que restava deles. “Mas você não a quebrou.”

“Como assim?”

“Estávamos sempre juntos… em nossos sonhos.”

“Estávamos?”

“Sim.”

“Haroldo?”

“Sim, velho amigo?”

“Estou tão feliz por ter visto você assim… uma última vez…”

“Eu também, Calvin. Eu também.”

“Querido?”, a voz de Susie soou atrás da porta.

“Sim, querida?”, respondeu Calvin.

“Posso entrar?”, Susie perguntou.

“Só um minuto.”

Calvin voltou-se para Haroldo pela última vez. “Adeus, Haroldo. Obrigado… por tudo…”

“Não. Eu que agradeço, Calvin”, Haroldo disse.

Calvin voltou-se para a porta e disse: “Pode entrar agora.”

Susie entrou e disse: “Olha quem veio visitá-lo.”

Os filhos e netos de Calvin seguiram Susie quarto adentro. O neto mais novo ultrapassou correndo todos os outros e deu um forte e entusiasmado abraço em Calvin. “Vovô!!”, gritou a criança, visivelmente feliz.

“Francis!”, ralhou a filha de Calvin, “Seja gentil com seu avô.”

A filha de Calvin voltou-se para ele. “Sinto muito, papai. Francis não tem se comportado muito bem nos últimos tempos. Ele só corre e faz bagunça e agora deu pra vir com umas histórias estranhas.”

Calvin sorriu e disse: “Olha só! O mesmo que diziam de mim quando eu tinha a idade dele.”

Calvin e sua família conversaram um pouco mais, até que uma enfermeira disse: “Desculpem, o horário de visitas está quase terminando.”

Os entes queridos de Calvin se despediram, prometendo voltar no dia seguinte. Enquanto eles se preparavam para sair, Calvin disse: “Francis. Venha aqui um pouco.”

Francis chegou perto do avô, “O que é isso, vovô?”

Calvin pegou o tigre de pelúcia que estava em sua cabeceira e, com as mãos trêmulas, o estendeu para seu neto, que olhou para o tigre exatamente como ele fizera muitos anos atrás. “Este é o Haroldo. Ele era o meu melhor amigo quando eu tinha a sua idade. Eu quero que ele seja seu agora.”

“É apenas um tigre de pelúcia”, Francis disse, com as sobrancelhas levantadas.

Calvin sorriu: “Bem, deixe-me contar-lhe um segredo.”

Francis inclinou-se para Calvin. Calvin sussurrou: “Se você capturá-lo com uma armadilha para tigres usando um sanduíche de atum como isca ele se transformará em um tigre de verdade”.

Francis suspirou, com reverente admiração. Calvin continuou: “E não é só isso, ele será seu melhor amigo para sempre.”

“Uau! Obrigado, vovô!” Francis disse, abraçando seu avô com força novamente.

“Francis, precisamos ir agora.”, chamou a filha de Calvin.

“Ok!”, gritou Francis de volta.

“Cuide bem dele”, Calvin disse.

“Sim”, Francis disse, antes de sair correndo atrás dos outros membros da família.

Calvin se deitou de costas e olhou para o teto. A hora de partir estava chegando. Ele podia senti-lo na alma. Calvin tentou se lembrar de uma frase que ele leu em um livro uma vez. Ela dizia algo sobre a morte ser a próxima grande aventura ou algo parecido. Suas pálpebras ficaram pesadas e sua respiração tornou-se mais lenta. Enquanto mergulhava em seu sono final, ele ouviu a voz de Haroldo, como se o tigre estivesse ao seu lado. “Eu vou cuidar dele, Calvin…”

Calvin deu seu primeiro passo em direção a mais uma aventura e seu último suspiro com um sorriso no rosto.

NOTA: Conto publicado no Reddit, escrito por samuraitiger19, e livremente traduzido por mim. Embora se trate de uma história relativamente simples, escrita sem grande apuro literário, seu autor conseguiu – a se crer nos comentários dos leitores – a façanha de fazer chorar um número enorme de visitantes que leram a historieta. Por que será? Eu tenho um palpite. Quem teve a sorte de ter em mãos e ler as tirinhas com as histórias de Calvin e Haroldo, magistralmente escritas e desenhadas por Bill Watterson, ingressou em um universo que remete diretamente à infância que não é apenas a do personagem, mas também a do leitor. Esse talvez seja o segredo do sucesso das tirinhas que, embora tenham sido descontinuadas desde 1995, continuam ganhando fãs até hoje mundo afora: a capacidade de reviver em nós, leitores, nossa infância perdida. Então chega um aspirante a escritor e conta uma história em que são narrados os últimos minutos de vida do adorado personagem, valendo-se de alguns dos inúmeros elementos das tirinhas (o tigre que “ganha vida” aos olhos do personagem principal; a “armadilha para tigres”; a valorização de alguns aspectos da infância, como a imaginação e a amizade; Susie Derkins; o Astronauta Spiff), o que causa uma imediata sensação de identificação, como se o conto fosse mesmo a última história sobre Calvin. E pensamos: “Sim, esses poderiam ser realmente os últimos momentos do Calvin”. E no final, como era de se esperar, Calvin morre. Assim como morreu já há muito tempo nossa infância. E aqui está aquilo que julgo ser o maior mérito do conto: o de nos lembrar que tudo tem um fim e que nem mil tigres de pelúcia conseguiriam impedir a passagem do tempo e toda a transformação que ela provoca.
Tá bom, eu confesso: também chorei quando li a historinha…

Link para a o original:

In the final minutes of his life, Calvin has one last talk with Hobbes.

REPUBLICAÇÃO. Texto publicado originalmente no blog em 28/02/2016.

Nelson Santander – O dia em que meu pai ouviu a voz de Deus

O conhecido escritor de ficção científica Arthur C. Clarke formulou três “leis” acerca da relação entre o homem e a tecnologia que ficaram muito famosas. Dentre elas, a mais conhecida é a terceira, que reza:

“Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia.”

Lembrei dessa Lei quando, em um certo domingo, fui visitar meus pais. Antes mesmo que eu tivesse tempo de tomar um café, meu pai disparou, com um olhar esquisito:

“Eu sei que você não acredita em sobrenatural, mas aconteceu uma coisa estranha comigo”.

Normalmente, quando alguém que conhece meu ceticismo tenta me convencer de algo sobrenatural, costuma me lançar um olhar que é um misto de temor e desafio. Mas não era esse o olhar do meu pai. Para mim a princípio me pareceu o olhar de quem, em face do desconhecido, quer ser convencido de que nada de extraordinário aconteceu, e que o mundo pode seguir seu curso regular novamente.

Ele então me contou que na semana anterior havia ligado a TV e que, inusitadamente, o aparelho não sintonizou no “Brasil Urgente” (seu programa favorito de todas as tardes). De forma surpreendente, a tela ficou escura e então os auto-falantes da TV começaram a reproduzir uma música, segundo ele, “maravilhosa”. Meu pai ficou paralisado, confuso. Ele tentou voltar para o Datena, mas não conseguiu. Vencido pela beleza da orquestração, sentou-se no sofá e pôs-se a ouvir o que saía da TV. Depois daquela música, outra se seguiu. E outra. E outra. Todas completamente desconhecidas pra ele, mas absurdamente lindas (ele não usou precisamente essas palavras, mas era isso que seus olhos diziam).

E assim se passaram mais de três horas em que meu pai, embora meio assustado por estar testemunhando um evento estranho, não conseguia deixar de apreciar o momento. Depois que o som cessou, ele tentou que a TV tocasse novamente aquelas canções, mas tudo o que conseguiu foi dar de cara com o Datena narrando a história de mais um esquartejamento. Para sua decepção, meu pai não mais conseguiu fazer a TV falar com ele com aquelas melodias.

Quando concluiu sua narrativa, ele me perguntou, genuinamente curioso, mas ainda um tanto quanto espantado: “E aí?”, o olhar desafiador finalmente surgindo.

À essa altura, eu já estava com um meio-sorriso no rosto. Chamei-o à sala, fui até a TV, liguei o aparelho, fiz a minha “magia” e de repente, o adágio do Concerto para Clarineta em A maior, K.622, de Mozart, inundava a sala, sob o olhar atento e extasiado do meu pai. Na sequência, veio a famosa Ária na corda sol, de Bach, seguida do Adágio em Sol Menor, de Albinoni. Só então ele se lembrou de me perguntar como eu tinha conseguido fazer aquilo.

Desliguei a TV, estiquei a mão e, tateando na parte de trás do aparelho, retirei o pendrive que eu havia colocado lá na última visita que fizera à casa dele, um mês antes. Na ocasião, eu havia tentado de toda forma ensinar meu pai a acessar o pendrive pelo controle remoto para que pudesse ouvir uma playlist de músicas clássicas em MP3 que eu havia criado especialmente pra ele. Sem sucesso. Meu pai sempre foi uma nulidade com equipamentos eletrônicos, mal e mal sabendo ligar a TV e colocar nos canais que ele gosta de assistir. Desisti de explicar e acabei esquecendo o pendrive lá. De alguma maneira, ao tentar sintonizar em seu programa na TV, ele apertou algum botão errado no controle e acessou a pasta com a playlist que eu havia criado. Como não conhecia aquelas músicas e como a TV não estava ligada em nenhum canal, ele ficou tentando imaginar o que acontecera, e não chegou a nenhuma conclusão lógica. Portanto, concluiu, só podia ser algo sobrenatural. “Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia.”

Depois que mostrei que não havia nada de extraordinário no que acontecera com ele, a reação do meu pai foi muito interessante. Claramente, ele ficou um pouco envergonhado por ter pensado que havia testemunhado um milagre quando tudo não passara de um feito tecnológico. De entremeio com a vergonha, percebi também uma genuína frustração. Não sei se traduzo adequadamente, mas minha intuição é a de que ele talvez tenha imaginado que algo, ou “A Voz”, o havia escolhido para lhe mostrar a Sua obra: músicas divinas que ninguém jamais ouvira, a não ser o meu pai.

Mas o mais interessante foi que, depois de ter descoberto que não eram divinas, mas humanas as canções que o haviam arrebatado, seu interesse por elas claramente diminuiu:

– São bonitas sim, Nelsinho. Mas você sabe, eu gosto é de música orquestrada, Glenn Miller, Billy Vaughn. E Ray Conniff. Conhece? “Besame Mucho” é que é música!

Não sei se existe alguma lição a se tirar do episódio. Meu olhar cético para as coisas tende a achar graça na necessidade que as pessoas têm de encontrar o divino em qualquer fenômeno natural ou humano desconhecido ou inusitado com o qual se deparam. Meu velho pai achava que estava ouvindo a voz de Deus, quando na verdade eram os humanos Mozart, Beethoven, Chopin e etc. quem lhe falavam por meio de suas árias, adágios e andantes.

Mas minha visão seria totalmente limitada se eu negasse que uma outra leitura desse tipo de evento é também possível: não seriam essas canções uma forma que o Incognoscível encontrou para falar com os seres humanos? E, nesse contexto, não seriam os compositores e músicos apenas como aparelhos de TV nos quais Ele espetou Seu pendrive divino para emitir o Seu som e a Sua voz?

(relato retirado da página de perfil do autor no Facebook)

Nelson Santander – O ano novo inalcançável

Meu xará Nelson Motta costuma afirmar, sem firulas, que a música americana é a melhor do mundo. O jornalista, compositor, escritor, roteirista, produtor musical, teatrólogo e letrista paulista radicado no Rio de Janeiro dispensa apresentações: sua extensa produção em todos os quadrantes da atividade musical – da produção à composição, passando pela crítica e história da música – lhe conferem um certo estatuto privilegiado para falar sobre o tema. Se ele diz que a música americana é a melhor do planeta, não sou eu quem irá contradita-lo.

É uma afirmação ousada, concordo. Afinal, todo país conta com artistas capazes de engendrar uma gama de produções artísticas de alta qualidade. Mas não dá para negar que, por uma série de razões (que vão da riqueza econômica do país mais rico do planeta à diversidade cultural que se verifica entre as diversas regiões do país, passando por um sistema educacional que incentiva as atividades voltadas às artes), a produção cultural americana é farta e diversificada. Em um ambiente assim, quase darwiniano, é enorme a possibilidade de que novos artistas talentosos possam surgir. Por sua visibilidade, o campo musical é onde essa profusão se revela com maior clareza: do rock ao jazz, do country à música clássica, do pop ao blues, não há nenhuma forma de expressão musical que os americanos não dominem com maestria. Nos estilos mais populares – mesmo no pop -, melodias sofisticadas costumam vir de par com letras muito bem escritas.

É o caso da pequena pérola chamada This Year, do The White Buffalo – nome artístico do cantor compositor americano Jake Smith -, que publiquei pela primeira vez no blog há dois anos, e à qual eu sempre retorno nos finais de ano. Pouco conhecido do público brasileiro – e mesmo do grande público americano -, Jake Smith já tem uma sólida carreira musical, iniciada com o lançamento de seu primeiro álbum – Hogtied Like a Rodeo – em 2002. Os fãs da série Sons of Anarchy talvez o conheçam porque várias canções interpretadas (e algumas compostas) por ele fizeram parte da trilha sonora do seriado (“Come Join The Murder”,  “Matador”, “Damned”, “Wish It Was True”, “House of the Rising Sun” (com os The Forest Rangers), “The Whistler”, “Set My Body Free”, “Sweet Hereafter”, “Oh Darling, what have I done” e “Bohemian Rhapsody” (também com os The Forest Rangers).

Para alguém que topa com o seu trabalho pela primeira vez, duas coisas impressionam: primeiro, o vozeirão e a técnica vocal do cara. Realmente, é assombroso como ele canta bem. E segundo, a qualidade das suas canções. Influenciado por dois gêneros aparentemente inconciliáveis – o country (o estilo musical favorito de seus pais) e o punk rock, mais rock, soul, folk, blues – suas melodias são belas e variadas. Muitas vezes, imprevisíveis. Sobre suas letras, o artista costuma dizer que, por apreciar “músicas realmente honestas”, como as de Bob Dylan, Leonard Cohen, Elliot Smith e Kris Kristofferson, seu objetivo ao escrever é sempre abordar os temas “de uma forma real, de uma forma honesta”:

“Eu entro em cada personagem e o empurro o mais longe que posso. Por exemplo, “If I Lost My Eyes” é uma canção do novo álbum (ele se refere ao álbum de 2019, “Darkest Darks, Lightest Lights”), é muito sombria e baseada na ideia de que se você perder suas faculdades mentais, seu companheiro ficará com você, ele preencherá esse vazio?” (https://www.musicradar.com/news/the-white-buffalo-youre-just-trying-to-hit-people-in-the-heart-with-songs)

This Year é a nona canção do álbum Shadows, Greys & Evil Ways (um puta álbum, diga-se de passagem). Trata-se de um folk-rock cuja melodia e arranjos seguem, em termos de cadência e força, a história contada na letra, emprestando à canção um sentido mais completo. A letra acompanha por um ano a história da vida de um típico looser americano. Jake Smith se vale da passagem das estações (inverno, primavera, verão, outono e inverno novamente) para indicar o estado de espírito do personagem que conta sua história em primeira pessoa.

O ciclo se inicia com a virada do ano (que ocorre no inverno norte-americano). A força do compositor já pode ser sentida nos primeiros versos que, embora descrevam a euforia típica que toma conta das pessoas nas festas de fim de ano, revelam que se trata de uma falsa felicidade – pelo menos do ponto de vista do personagem que fala de si e de suas agruras. Sob esse aspecto, são reveladoras, nessa primeira parte, os versos “O ano novo veio com o mesmo velho elenco”, “Nós dançamos e bebemos como se ele fosse o último” e “Vamos nos concentrar nesta noite única / E apenas torcer para que cheguemos em casa vivos”.

Com a chegada da primavera – que marca, psicologicamente, o início efetivo do ano dos EUA após a temporada de inverno -, o personagem parece se animar. Para demonstrar o novo estado de espírito do homem, o compositor enfileira versos que, sem explicitar a leveza de espírito do personagem, mostram que ele está atento ao que ocorre ao seu redor:

Os dias ficam mais longos, e as noites mais curtas
A mãe acorda um pouco mais radiante do que antes
O gelo derrete e os jardins florescem
O ar fresco e os campos são adoráveis
A grama e os narcisos fazem cócegas em nossos pés
As flores, elas desabrocham e os pássaros, eles cantam
Preenchendo o dia com as melodias que eles produzem

Mas nosso depressivo personagem, embora perceba a beleza da nova estação, não se deixa afetar muito por ela. Conquanto flores e pássaros cantem na sua frente, ele não sente “mais vontade de cantar”, pois, para ele “as estações mudam”, mas ele não muda “em nada”. De toda forma, mesmo consciente de estar sujeito a erros e acertos, ele acredita ser possível “melhorar” e ser “diferente” no ano que se inicia.

O verão é a única estação do ano em que o personagem parece se livrar de seu estado depressivo e acreditar que tudo pode realmente mudar para melhor. É o que ele afirma, peremptoriamente e não sem uma ponta de desconfiança, após descrever como as pessoas e coisas se comportam na estação do ano mais alegre:

Oh, o futuro, o futuro parece promissor
Eu até acho que posso acertar tudo, afinal

Mas chega, então, o “melancólico outono”, soprando “para longe os ventos do verão”. A metáfora não é gratuita. A chegada do outono que expulsa o verão marca o início da derrocada anual do personagem. Jake Smith se vale como nunca dos efeitos causados pelo outono no clima e na natureza para explicitar os dramas internos e externos enfrentados pelo personagem. “As folhas caem das árvores” e ele percebe que nunca mais as verá novamente – constatando que a fase boa de sua vida naquele ano já acabou. O personagem então diz que é hora de se recolher, “ficar dentro de casa”. Os próximos versos – terríveis – também usam as mudanças típicas sofridas pela natureza no outono americano para demonstrar com toda força o grau de devastação interna do personagem:

Sem flores, nem frutos, e os gramados todos morrem
Como pode tudo desmoronar tão rápido?
E por que eu achei que iria durar?
Quando tudo está morrendo, como eu posso me sentir vivo?
Oh, a vida é curta, e todos os dias bons desapareceram

O personagem constata então que talvez esteve “perdido” até aquele momento. Com o restinho de forças que lhe restam, ainda tem a esperança de que talvez possa se encontrar no ano que já vai terminando.

Mas então chega o inverno, a mais terrível das estações para um depressivo. O personagem, que havia se recolhido dentro de casa no outono, é dela arrancado à força pelo inverno, que lhe “derruba a porta” e faz o seu sangue fluir. Ao contrário do que acontecia na primavera (Os “dias ficam mais longos, e as noites mais curtas”), agora os “dias são muito curtos e as noites muito longas”. O natal está próximo, mas não traz felicidade nenhuma, até porque, “todo o dinheiro se foi”, sem que o personagem saiba “para onde”: “O natal não é fácil quando você não pode pagar o aluguel”. É quando “as luzes se apagam para uma noite infeliz”*. À essa altura, embora o personagem saiba que não pode desistir (pois “tudo o que você pode fazer é persistir na luta”), ele tem a plena consciência de que já perdeu o jogo. E de lavada. E sabe que não tem mais tempo para reverter o resultado:

Oh, a vida é dura, eu tenho lutado: um fracasso.
Talvez eu tenha estado perdido
Não acho que eu irei me encontrar
Este ano

Os versos finais da canção são um verdadeiro exercício de resignação e, surpreendentemente, de esperança. Ele de novo reconhece seus erros e acertos e renova a esperança de que talvez consiga melhorar e de que pode ser que o ano seja diferente. Mas não esse, que acabou. O próximo. A sacada de Jake Smith, aqui, é repetir quase que integralmente o verso em que ele anunciava que o ano que se iniciava talvez pudesse ser diferente para melhor (“Maybe I’ll get better, maybe I’ll be different, this year”), alterando apenas uma palavra: this é substituída por next. Com isso, o personagem promove o realinhamento de sua vida fracassada com o ano que se inicia, na esperança de que neste ano novo tudo possa melhorar – evidenciando, portanto, o caráter circular da letra da canção.

Publiquei pela primeira vez o vídeo legendado desta canção (com alguns erros de tradução, devidamente corrigidos abaixo) no dia 31 de dezembro de 2018. O vídeo vinha acompanhado do seguinte texto:

Acho que toda mensagem de “Feliz Ano Novo” se resume à ideia contida na letra desta música: tente melhorar sempre e sempre. Se não der, tente de novo no ano que vem. E no outro. E no outro. Uma hora dá certo. Ou não.

Feliz 2019!

Dois anos depois, em 31 de dezembro de 2020 – o grande ano da peste – continuo pensando desta forma. Só que hoje estou bem menos esperançoso.

Feliz 2021! Se você conseguir.

* N. do T.: o verso original é assim: And the lights go out to a silent night. Silent Night é o nome de uma das canções natalinas mais conhecidas em todo o planeta. No Brasil, ela foi conhecida por Noite Feliz. Traduzido literalmente, o verso original ficaria mais ou menos assim: E as luzes se apagam para uma noite silenciosa. Para tentar aproveitar o efeito poético da paráfrase usada pelo compositor, também me vali do título em português da canção, mas invertendo o adjetivo de feliz para infeliz, o que, acredito, não afetou o sentido original pretendido pelo autor da canção).

Para quem quiser conhecer mais do trabalho do The White Buffalo, seguem alguns links interessantes:

O site oficial do artista: https://thewhitebuffalo.com/

O canal oficial do artista no Youtube (no qual, dentre outros materiais, periodicamente ele publica uns vídeos divertidíssimos da série “In the garage”, gravados literalmente na garagem da casa dele): https://thewhitebuffalo.com/

Playlist no Spotify com minhas canções preferidas do artista (não inclui as do último álbum – “On the Widow’s Walk”, pois ainda não o decantei completamente): https://open.spotify.com/playlist/2ItEZZwARmif2nWwl93o5x

Este ano

Outro ano mais velho, ele veio e se foi
O sangue, as lágrimas e o dinheiro gasto
O ano novo veio com o mesmo velho elenco
Nós dançamos e bebemos como se ele fosse o último
Agitando e esperando que a contagem regressiva comece
Em câmara lenta, do dez até o um
Um beijo e os fogos de artifício iluminam o céu
Caindo aos pedaços durante a “Auld Lang Syne”
Vamos nos concentrar nesta noite única
E apenas torcer para que cheguemos em casa vivos

A terra gira, a primavera se precipita
Os dias ficam mais longos, e as noites mais curtas
A mãe acorda um pouco mais radiante do que antes
O gelo derrete e os jardins florescem
O ar fresco e os campos são adoráveis
A grama e os narcisos fazem cócegas em nossos pés
As flores, elas desabrocham e os pássaros, eles cantam
Preenchendo o dia com as melodias que eles produzem
E eu não sinto mais vontade de cantar
As estações mudam, mas eu não mudo em nada
Bem, eu errei, eu acertei
Isso está claro
Talvez eu consiga melhorar
Talvez eu seja diferente
Este ano

Ooh, lá vem o verão, ele vem quente
Sem camisa, nada de escola, dê a ele tudo o que você tem
O sol, ele chama, então vamos para fora
Brindar com nossas bebidas ao sol quente
O asfalto arde nas ruas da cidade
É melhor você se apressar ou irá queimar seus pés
Se atirando na água, espirrando e gritando
Amor e riso o suficiente para um e para todos
Oh, o futuro, o futuro parece promissor
Eu até acho que posso acertar tudo, afinal

Melancólico outono sopra para longe os ventos do verão
As folhas caem das árvores, nunca as verei novamente
Como brasas, elas flutuam pelas ruas
Dourada e vermelha dança que se repete
Bem, agora é fechar as cortinas
Vamos ficar dentro de casa
Sem flores, nem frutos, e os gramados todos morrem
Como pode tudo desmoronar tão rápido?
E por que eu achei que iria durar?
Quando tudo está morrendo, como eu posso me sentir vivo?
Oh, a vida é curta, e todos os dias bons desapareceram
Talvez eu tenha estado perdido
Talvez eu me encontre
Este ano

Bem, o inverno e o frio chegam com a tempestade
Derrubam a porta e seu sangue flui
Os dias são muito curtos e as noites muito longas
Os corais de natal aparecem, eu não consigo cantar junto
Oh, todo o dinheiro se foi, não sei para onde
O natal não é fácil quando você não pode pagar o aluguel
E as luzes se apagam para uma noite infeliz
E tudo o que você pode fazer é persistir na luta
E eu simplesmente não consigo ver o errado
E eu simplesmente não consigo ver o correto
Oh, a vida é dura, eu tenho lutado: um fracasso.
Talvez eu tenha estado perdido
Não acho que eu irei me encontrar
Este ano

Bem, eu errei, eu acertei
Isso está claro.
Mas talvez eu consiga melhorar
Talvez seja diferente
No próximo ano

Trad.: Nelson Santander

The White Buffalo – This Year

Another year older, it came and went
Blood and the tears and the money spent
The new year’s here with the same old cast
We dance and we drink like it may be our last
Buzzin’ waitin’ for the countdown to come
Feels like slow motion from ten to one
A kiss and the fireworks light the sky
Falling apart over Auld Lang Syne
Let’s focus on this night alone
Just hope that we’d make it home alive
The Earth it turns, spring rushes in
Days get longer and nights go thin
Mother wakes up a little brighter than before
Cold melts away and the gardens grow
The air is crisp and fields are sweet
Grass and the daffodils tickling our feet
Flowers they bloom and the birds they sing
Fill up the day with the songs they bring
And I don’t feel much like singing at all
Seasons change but I don’t change at all
Well I’ve done wrong, well I’ve done right, that’s clear
Maybe I’ll get better, maybe I’ll be different, this year
Ooh, here comes summer, well it’s comin’ in hot
No shirt, no school, give it all you got
The sun, it calls so let’s go outside
Toastin’ our drinks in the warm sunshine
The asphalt smoulders in the city streets
You better run fast or you’re gonna burn your feet
Splashin’ and yellin’ the cannonball
Enough love and laughter for one and all
Oh the future’s, future’s looking bright
I think that I might get it right after all
Moody autumn blows in off a summer wind
Leaves fall off of the trees, never see them again
Like embers they float into the streets
Golden and red dance repeat
Well it’s close of the curtains, let’s stay inside
No flower, no fruit and the lawns all die
Well how could it all fall apart so fast
And why would I think it would ever last?
When everything is dying, well, how can I feel alive?
Oh, life is short, well all good days disappear
Maybe I’ve been lost, maybe I’ll get found, this year
Well the winter and the cold come storming in
Kicks down the door and your blood runs thin
Day’s too short and the night’s too long
Carolers came, I can’t sing along
Oh money’s all gone, don’t know where it went
Christmas ain’t easy when you can’t pay the rent
And the lights go out to a silent night
And all you can do is just stay in the fight
And I just can’t see the wrong, and I just can’t see the right
Oh, life is hard, I’ve been fighting, a failure
Maybe I’ve been lost, don’t think I’ll get found, this year
Well I’ve done wrong, well I’ve done right, that’s clear
But maybe I’ll get better, maybe I’ll be different, next year

Philip Roth – [Quando se visita uma sepultura]

Quando se visita uma sepultura, todo mundo tem pensamentos mais ou menos iguais, que, abstraída a questão da eloquência, não diferem muito daqueles que Hamlet expressou ao contemplar o crânio de Yorick. Há muito pouco para se pensar ou dizer que não seja uma variante de “Ele me carregou nos ombros mil vezes”. Num cemitério, a gente costuma se dar conta de como são limitados e banais nossos pensamentos sobre o assunto. Ah, pode-se tentar conversar com o morto, caso você acredite que isso possa ser útil; pode-se começar, como fiz naquela manhã, dizendo: “Muito bem, mamãe…”, porém é difícil não pensar – mesmo que se tenha ido além da primeira frase – que você poderia, do mesmo modo, estar conversando com a coluna vertebral pendurada no consultório de alguma osteopata. Você pode fazer promessas a eles, pô-los a par das últimas notícias, implorar que o compreendam, que o desculpem ou que lhe deem seu amor – ou pode optar por uma abordagem oposta, mais efetiva, arrancando as ervas daninhas, ajeitando os cascalhos, passando o dedo pelas letras gravadas na lápide; pode até se abaixar e pôr as mãos diretamente sobre os vestígios deles – tocando a terra, a terra deles, pode fechar os olhos e recordar-se de como eram quando ainda estavam ao seu lado. Mas nada se modifica com tais recordações, exceto que os mortos parecem ainda mais distantes e fora do alcance do que estavam quando você dirigia o carro dez minutos antes. Se não há ninguém no cemitério para observá-lo, você pode fazer algumas coisas bem doidas a fim de conseguir que os mortos pareçam algo mais do que são. Mas, mesmo que você tenha êxito e se motive suficientemente para sentir a presença deles, ainda assim irá embora sem eles. O que os cemitérios provam, ao menos para gente como eu, não é que os mortos estão presentes, mas que se foram de vez. Eles se foram, enquanto nós, por enquanto, não fomos. Isso é fundamental e, embora inaceitável, bem fácil de compreender.

Philip Roth – Patrimônio (excerto)

Bertrand Russell – de “No que acredito”

“Acredito que ao morrer apodrecerei e nada do meu eu sobreviverá. Não sou jovem e amo a vida. Mas desdenho tremer de terror à ideia do aniquilamento. A felicidade não se torna menos verdadeira por ter que chegar ao fim, e o pensamento e o amor não perdem o seu valor por não durarem para sempre. Muitos homens já se portaram orgulhosamente no cadafalso; certamente o mesmo orgulho deveria nos ensinar a pensar verdadeiramente sobre o posto do homem no mundo. Mesmo se inicialmente as janelas abertas da ciência fazem-nos tremer após o quente aconchego dos mitos antropomórficos tradicionais, no final o ar fresco revigora, e os grandes espaços têm o seu próprio esplendor.”

Rodrigo da Silva – Chegará um dia em que o seu coração parará de bater

Chegará um dia em que o seu coração parará de bater. A sua pupila dilatará. A sua pele ficará pálida e a sua temperatura corporal esfriará. Você ficará inteiramente esquálido; e então roxo. O seu sangue se tornará mais ácido com o acúmulo de dióxido de carbono. E as suas células começarão a se dividir, esvaziando as enzimas dos tecidos. O cálcio endurecerá os seus músculos. E o seu corpo passará a exalar um odor acre, fruto de uma mistura química constituída por mais de quatrocentos compostos orgânicos.

Tudo o que constitui a sua existência entrará em colapso – o que significa dizer que a sua linha do tempo chegará ao derradeiro ponto final. A partir destes preciosos segundos você não deixará mais qualquer rastro nesta bola azul gigante perdida no espaço. Não haverá mais nenhum som. Nem qualquer imagem. Nem tato. Nem cheiro. Restará apenas o inadiável: carne em processo de decomposição, um fenômeno da natureza conhecido como morte, óbito, falecimento, perecimento, fim.

E não se engane, o mundo permanecerá no mesmo lugar. As partidas de futebol não farão um minuto de silêncio em homenagem à sua história. Nas ruas os carros continuarão buzinando aleatoriamente, e nas emissoras de TV os apresentadores de telejornal prosseguirão dando notícias que você jamais ouvirá. Nas esquinas os pedestres insistirão em atravessar as ruas como se você nunca tivesse existido.

No seu círculo social, a implacável indiferença tomará conta do tempo. Os seus amigos permanecerão dedicando vastas horas ao consumo dos milhões de vídeos de gatinhos disponíveis na internet. E nas redes sociais os seus inimigos pleitearão longas batalhas retóricas sobre política com pessoas que eles nunca viram. Os seus entes mais próximos padecerão de sofrimento nas primeiras semanas, mas paulatinamente voltarão a executar os processos naturais da vida, adaptando-se à sua ausência.

Tudo permanecerá intocado: as baladas, os bares, os programas de auditório, o carnaval, os shows de humor, os barulhos ensurdecedores dos carros rebaixados. Virá a primavera, o verão, o outono, o inverno. E então tudo se repetirá num novo ciclo. Você deixará de ser carne para virar memória. E o tempo não falhará em transformar sua existência numa vaga lembrança, um túmulo abandonado no meio de um cemitério, uma refeição ordinária numa quarta-feira entediante para uma porção de bactérias e insetos.

Dentro da gente habita uma bomba relógio invisível. Ninguém sabe exatamente o prazo dela, mas o artefato abstrato atravancado é religiosamente pontual. Cada instante da vida é uma escolha sobre como gastar o tempo que o tempo tem. Mesmo a decisão que levou à leitura deste texto até aqui. Pode parecer clichê de empreendedor de palco, melodrama de parachoque de caminhão, mas você é literalmente a única pessoa no mundo capaz de administrar cada minuto que resta entre o término desta frase e o seu túmulo.

Nesse caminho, tentarão até prometer vagas soluções, parceladas em doze vezes sem juros. Mas acredite: não há outro indivíduo neste planeta apto a salvá-lo da apatia e da improdutividade. Nem quem tenha a capacidade de libertá-lo dos relacionamentos tóxicos, dos subempregos e dos vampiros emocionais. Há um monte de gente bacana lá fora esperando encontrar gente bacana. E há um monte de babaca tentando sugar cada gota da sua energia. Há um monte de coisas grandes prontas para serem conquistadas. E há o tempo perdido. É você quem determina o que fazer com o que resta desse relógio.

Chegará um dia em que o seu coração parará de bater.

Mas não hoje. Não agora.

Henry Scott Holland – [A morte não é nada]

A morte não é nada. Ela não conta. Eu apenas passei para a sala vizinha. Nada aconteceu. Tudo permanece exatamente como sempre foi. Eu sou eu, e você é você, e a velha vida que vivemos carinhosamente juntos permanece intocada, inalterada. O que quer que tenhamos sido um para o outro, ainda o somos. Chame-me pelo meu antigo nome. Fale de mim do mesmo jeito simples de sempre. Não mude o timbre da voz. Não vista nenhum ar forçado de solenidade ou de dor. Ria como sempre ríamos das piadas de que desfrutávamos juntos. Brinque, sorria, pense em mim, ore por mim. Que o meu nome seja sempre aquela palavra de todos conhecida que sempre foi. Que ele seja pronunciado sem esforço, sem o fantasma de uma sombra a pairar sobre ele. A vida tem o mesmo significado que sempre teve. É a mesma que sempre foi. Há uma continuidade absoluta e inquebrável. O que é esta morte senão um insignificante acidente? Por que eu deveria ser esquecido se estiver fora do alcance da visão? Estou simplesmente à sua espera, por um intervalo, em um local bem próximo, ao dobrar a esquina. Está tudo bem. Ninguém está ferido. Nada está perdido. Um breve momento e tudo será como era antes. Como riremos das dificuldades da partida quando nos encontrarmos novamente!

Trad.: Nelson Santander

Death is nothing at all. It does not count. I have only slipped away into the next room. Nothing has happened. Everything remains exactly as it was. I am I, and you are you, and the old life that we lived so fondly together is untouched, unchanged. Whatever we were to each other, that we are still. Call me by the old familiar name. Speak of me in the easy way which you always used. Put no difference into your tone. Wear no forced air of solemnity or sorrow. Laugh as we always laughed at the little jokes that we enjoyed together. Play, smile, think of me, pray for me. Let my name be ever the household word that it always was. Let it be spoken without an effort, without the ghost of a shadow upon it. Life means all that it ever meant. It is the same as it ever was. There is absolute and unbroken continuity. What is this death but a negligible accident? Why should I be out of mind because I am out of sight? I am but waiting for you, for an interval, somewhere very near, just round the corner. All is well. Nothing is hurt; nothing is lost. One brief moment and all will be as it was before. How we shall laugh at the trouble of parting when we meet again!

NDT.: “Death Is Nothing At All” é o trecho de um sermão proferido pelo cônego Henry Scott Holland na Catedral de São Paulo, Londres, em 15/05/1910. Este trecho – só que em forma de verso e ligeiramente modificado – é muitas vezes atribuído a Santo Agostinho. A confusão talvez se deva ao fato de que o texto de Holland guarda evidentes semelhanças com uma das cartas escritas por Santo Agostinho no Século IV (a carta 263, endereçada a Sapida). A carta pode ser lida no link que segue (em inglês): http://www.newadvent.org/fathers/1102263.htm).

A título de curiosidade e comparação, segue uma das inúmeras versões em português do poema/oração atribuída a Santo Agostinho (que, aliás, ficou muito bonita):

A morte não é nada.
Apenas passei ao outro lado.
Eu sou eu. Tu és tu.
O que fomos um para o outro ainda o somos.

Dá-me o nome que sempre me deste.
Fala-me como sempre me falaste.
Não mudes o tom a um triste ou solene.
Continua rindo com aquilo que nos fazia rir juntos.
Reza, sorri, pensa em mim, reza comigo.
Que o meu nome se pronuncie em casa
como sempre se pronunciou.

Sem nenhuma ênfase, sem rosto de sombra.
A vida continua significando o que significou,
continua sendo o que era.

O cordão de união não se quebrou.
Porque eu estaria fora de teus pensamentos
apenas porque estou fora de tua vida terrena?

Não estou longe,
Somente estou do outro lado do caminho.
Já verás, tudo estará bem.
Redescobrirás o meu coração,
e nele redescobrirás a ternura mais pura.

Seca tuas lágrimas e se me amas.
Não chores mais.

Oscar Wilde – Da vaidade

“Por que você chora?”, perguntaram as Oreiades.

“Choro por Narciso”.

“Ah, não nos espanta que você chore por Narciso”, continuaram elas. “Afinal de contas, todas nós sempre corremos atrás dele pelo bosque, você era o único que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua beleza”.

“Mas Narciso era belo?”, quis saber o lago.

“Quem melhor do que você poderia saber?”, responderam, surpresas, as Oreiades.

“Afinal de contas, era em suas margens que ele se debruçava todos os dias”.

O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse:

“Eu choro por Narciso, mas jamais havia percebido que era belo. Choro por ele porque, todas as vezes que ele se deitava sobre minhas margens, eu podia ver, no fundo dos seus olhos, a minha própria beleza refletida”.