Hans Magnus Enzensberger – Discurso pós-jantar em um noivado

Este eu, um invólucro que,
contanto que ninguém o abra,
parece compacto, regular
como um Kinder ovo,
quase apetitoso. Só por dentro
é escuro. Quem sabe
o que estará esperando por você lá.
Obsessões, sem dúvida,
hábitos enferrujados,
medos incompreensíveis,
truques de segunda mão,
desejos infantis.
Que você deseje tê-la,
esta caixa de presente,
beira o milagre.

Trad.: Nelson Santander (a partir de tradução do alemão para o inglês feita por Martin Chalmers e Esther Kinsky, in A History of Clouds. 99 Meditations by Hans Magnus Enzensberger)

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 29/04/2018

After-Dinner Speech at an Engagement

This self, a container, which,
as long as no one opens it,
appears compact, smooth
as a Kinder egg,
almost appetizing. Only inside,
there it’s dark. Who knows
what’s waiting for you there.
Obsession no doubt,
rusty habits,
incomprehensible fears,
second-hand tricks,
childish desires.
That you want to have it,
this gift box,
borders on a miracle.

Amalia Bautista – No final

No final, muito poucas são as palavras
que realmente nos magoam, e muito poucas
as que conseguem alegrar a alma.
E são também muito poucas as pessoas
que tocam nossos corações, e ainda
menos as que o fazem por muito tempo.
No final, são pouquíssimas as coisas
que realmente importam na vida:
ser capaz de amar alguém, ser amado
e não morrer antes de nossos filhos.

Trad.: Nelson Santander

Al Cabo

Al cabo, son muy pocas las palabras
que de verdad nos duelen, y muy pocas
las que consiguen alegrar el alma.
Y son también muy pocas las personas
que mueven nuestro corazon, y menos
aún las que lo mueven mucho tiempo.
Al cabo, son poquíssimas las cosas
que de verdad importan en la vida:
poder querer a alguien, que nos quieran
y no morri después que nuestros hijos.

Juan Vicente Piqueras – Véspera de Permanecer

Tudo está pronto: a mala,
as camisas, os mapas, as vãs esperanças.

Estou removendo o pó das minhas pálpebras.
Já pus na lapela
a rosa dos ventos.

Tudo está em ordem: o mar, o ar, o atlas.

Só me falta o quando,
o onde, um diário de bordo,
cartas de navegação, ventos propícios,
coragem e alguém que saiba
me amar como nem eu mesmo sei.

O navio inexistente, o olhar,
os perigos, as mãos do espanto,
o fio umbilical do horizonte
que sublinha esses versos suspensivos…

tudo está preparado: a sério, em vão.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO (com alterações na tradução): poema publicado no blog originalmente em 28/04/2018

Juan Vicente Piqueras – Víspera de Quedarse

Todo está preparado: la maleta,
las camisas, los mapas, la fatua esperanza.

Me estoy quitando el polvo de los párpados.
Me he puesto en la solapa
la rosa de los vientos.

Todo está a punto: el mar, el aire, el atlas.

Sólo me falta el cuándo,
el adónde, un cuaderno de bitácora,
cartas de marear, vientos propicios,
valor y alguien que sepa
quererme como no me quiero yo.

El barco que no existe, la mirada,
los peligros, las manos del asombro,
el hilo umbilical del horizonte
que subraya estos versos suspensivos…

Todo está preparado: en serio, en vano.

Judith Viorst – A uma amiga de meia-idade considerando adultério com um homem mais jovem

É complicado ser temerária
Quando há dobras em seu derrière
E chega a hora de expor o que sua meia-calça
      está ocultando.
E embora os olhos amorosos de um marido
Façam certas concessões para suas coxas,
Jovens amantes podem ter um olhar menos benevolente para o que
      você está expondo.

É complicado se render ao pecado
Enquanto você tenta manter a barriga contraída
Esperando que o blush ainda esteja iluminando
      sua tez,
E torcendo para que ele não perceba,
Enquanto corre os dedos pelos seus cabelos pretos,
Que você ficou inequivocamente grisalha
      em toda uma outra seção.

É complicado experimentar o êxtase
Quando a sinusite se intromete em cada beijo
E quando, nas posições complicadas, suas costas
      começam a feri-la.
E quando você acrescenta tudo o que implica
Ensinar-lhe o que a excita e o que a frustra,
Talvez seja recomendável reconsiderar as virtudes da
      virtude.

Trad.: Nelson Santander

To a Middle-Aged Friend Considering Adultery with a Younger Man

It’s hard to be devil-may-care
When there are pleats in your derrière
And it’s time to expose what your panty hose
are concealing.
And although a husband’s fond eyes
Make certain allowances for your thighs,
Young lovers might look less benignly at what
you’re revealing.

It’s hard to surrender to sin
While trying to hold your stomach in
And hoping your blusher’s still brightening up
your complexion,
And hoping he isn’t aware
As he runs his fingers through your dark hair,
That you’ve grown unmistakably gray in a whole
other section.

It’s hard to experience bliss
When sinus intrudes on every kiss
And when, in the tricky positions, your back
starts to hurt you.
And when you add all it entails
To teach him what turns you on and what fails,
You might want to reconsider the virtues of
virtue.

Haroldo de Campos – Servidão de Passagem

forma de fome

proêmio

mosca ouro?
mosca fosca.

mosca prata?
mosca preta.

mosca íris?
mosca reles.

mosca anil?
mosca vil.

mosca azul?
mosca mosca.

mosca branca?
poesia pouca.

o azul é puro?
o azul é pus.

de barriga vazia.

o verde é vivo?
o verde é vírus

de barriga vazia.

o amarelo é belo?
o amarelo é bile

de barriga vazia.

o vermelho é fúcsia?
o vermelho é fúria

de barriga vazia.

a poesia é pura?
a poesia é para

de barriga vazia.

poesia em tempo de fome
fome em tempo de poesia

poesia em lugar do homem
pronome em lugar do nome

homem em lugar de poesia
nome em lugar do pronome

poesia de dar o nome

nomear é dar o nome

nomeio o nome
nomeio o homem
no meio a fome

nomeio a fome

poema

de sol a sol
soldado
de sal a sal
salgado
de sova a sova
sovado
de suco a suco
sugado
de sono a sono
sonado

sangrado
de sangue a sangue

onde mói esta moagem
onde engrena esta engrenagem

moenda homem moagem
moagem homem moenda

engrenagem
gangrenagem

de lucro a lucro
logrado
de logro a logro
lucrado
de lado a lado
lanhado
de lodo a lodo
largado

sol a sal
sal a sova
sova a suco
suco a sono
sono a sangue

onde homem
          essa moagem
onde carne
          essa carnagem
onde osso
          essa engrenagem

homem forrado
homem ferrado

homem rapina
homem rapado

homem surra
homem surrado

homem buraco
homem burra

homem senhor
homem servo

homem sobre
homem sob

homem saciado
homem saqueado

homem servido
homem sorvo

homem come
homem fome

homem fala
homem cala

homem soco
homem saco

homem mó
homem pó

quem baraço
quem vassalo

quem cavalo
quem cavalga

quem explora
quem espólio

quem carrasco
quem carcassa

quem usura
quem usado

quem pilhado
quem pilhagem

quem uísque
quem urina
quem feriado
quem faxina
quem volúpia
quem vermina

carne carniça carnagem

sangragem sangria sangue

homemmoendahomemmoagem

açúcar
nessa bagaço?

almíscar
nesse sovaco?

petúnia
nesse melaço?

índigo nesse buraco?

ocre
acre
osga
asco

canga cangalho cagaço
cansaço cachaço canga
carcassa cachaça gana

de míngua a míngua
de magro a magro
de morgue a morgue
de morte a morte

só moagem
ossomoagem

sem miragem
selvaselvagem

servidão de passagem

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 24/04/2018

David Wagoner – Perdido

Permanece imóvel. As árvores à frente e os arbustos ao teu lado
Não estão perdidos. Onde quer que estejas é chamado de Aqui,
E deves tratá-lo como um poderoso estranho,
Pedir permissão para conhece-lo e ser conhecido.
A floresta respira. Escuta. Ela responde,
Eu fiz este lugar ao teu redor.
Se o deixares, poderás voltar novamente, dizendo Aqui.
Nenhuma árvore é igual para o Corvo.
Nenhum ramo é igual para a Curruíra.
Se o que uma árvore ou um arbusto faz está perdido para ti,
Certamente estás perdido. Permanece imóvel. A floresta sabe
Onde estás. Deixa que ela te encontre.

Trad.: Nelson Santander

Lost

Stand still. The trees ahead and bushes beside you
Are not lost. Wherever you are is called Here,
And you must treat it as a powerful stranger,
Must ask permission to know it and be known.
The forest breathes. Listen. It answers,
I have made this place around you.
If you leave it, you may come back again, saying Here.
No two trees are the same to Raven.
No two branches are the same to Wren.
If what a tree or a bush does is lost on you,
You are surely lost. Stand still. The forest knows
Where you are. You must let it find you.

Manuel António Pina – Instituto de Oncologia

Estes cumprem o rito antigo mantendo
a chama da morte acesa na obscura água da vida
e engrossam o rio dos mortos
como pura memória sem nome.

Nós rebelamo-nos, levantamos as mãos ao céu,
e depois fechamo-las para deter
o rio da mudança fluindo por entre os dedos,
porque éramos os menos fortes e os menos densos.

Frágeis mãos dispersaram o que nos pertencia
e quando regressámos tinham partido todos.
Agora, diante de nós mesmos para sempre,
até a nossa miséria nos parece alheia.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 22/04/2018

Thom Gunn – Natureza morta

Não esquecerei tão cedo
A pele amarelo-acinzentada
À qual o rosto se havia fixado:
Pálpebras apertadas: nada dele,
Nenhum tremor interior,
Brincava na superfície.
Ele ainda respirava, e contudo
Esta era uma obscura habilidade.
Não esquecerei tão cedo
O ângulo de sua cabeça,
Mantida imobilizada para trás
Na planície estirada do colchão,
De volta daquilo que ele não podia
Nem aceitar, como uma objeção,
Nem, como um respirador de longa data,
Abandonar de forma consentida,
O tubo em sua boca selado
Em um atônito O.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: Este poema integra uma sequência de elegias compostas pelo escritor em memória de amigos que morreram durante a epidemia de aids no final da década de 1980. Este em particular foi escrito em homenagem ao seu amigo Larry Hoyt.

Still Life

I shall not soon forget
The greyish-yellow skin
To which the face had set:
Lids tights: nothing of his,
No tremor from within,
Played on the surfaces.
He still found breath, and yet
It was an obscure knack.
I shall not soon forget
The angle of his head,
Arrested and reared back
On the crisp field of bed,
Back from what he could neither
Accept, as one opposed,
Nor, as a life-long breather,
Consentingly let go,
The tube his mouth enclosed
In an astonished O.

Charles Bukowski – Para Jane Cooney Baker, morta em 22/01/1962

e então você se foi
me deixando aqui
num quarto com uma cortina rasgada
e o Idílio de Siegfried tocando no radinho vermelho.

e então você se foi tão rápido
quanto quando você veio pra mim,
e nós tínhamos dito adeus antes,
e quando eu estava limpando seu rosto e lábios
você abriu os maiores olhos que eu já tinha visto
e disse “Eu devia saber
que era você”
você conseguiu ver
mas não por muito tempo

e um homem velho com pernas brancas e finas
na cama ao lado
dizia, “Eu não quero morrer,”
e seu sangue veio de novo
e eu o aparei com as mãos em concha
tudo o que ficou
das noites e dos dias também,
e o homem velho ainda estava vivo
mas você não estava
nós não estamos.
e você foi como você veio,
você me deixou tão rápido
você já tinha me deixado várias vezes antes
quando eu pensava que isso me mataria
mas não
e você sempre voltava.

agora eu desliguei o rádio vermelho
e alguém no apartamento ao lado bate uma porta
a sentença final: eu não vou te encontrar na rua
o telefone não vai tocar, e nenhum movimento vai
me deixar em paz.

não basta que haja várias mortes
e que esta não seja a primeira;
não basta que eu viva mais muitos dias,
talvez até muitos anos.
não basta.

o telefone é como um bicho morto que
não vai falar.
E quando falar de novo será
sempre a voz errada agora.

antes eu esperava e você sempre entrava
porta adentro.
agora você vai esperar
por mim.

Trad.: Sigval Schaitel, Fabio Soares e Gerciana de Espíndola

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 09/04/2018

TO JANE COONEY BAKER, DIED 1-22-62

and so you go
leaving me here
in a room with a torn shade
and Siegfried’s Idol playing on a small red radio.

and so you left quickly
as you arrived to me,
and we have said goodbyes before,
and as I wiped your face and lips
you opened the largest eyes I have yet to see
and said, “I might have known
it would be you,” …you did see
but not long
an old man of white thin legs
said, “I don’t want to die,”
and your blood came again
and I held it in the pail of my hands,
all that was left
of the nights, and the days too,
and the old man was still alive
but we were not
we are not.

and you went as you arrived,
you left me quickly,
you left me many times before
when I thought it would kill
but it did not
and you returned.

now I have turned off the red radio
and somebody in the next apartment slams a door.
the indictment is final: I will not find you on the street
or will the phone ring, and yet each moment will not
let me be.

it is not enough that there are many deaths
and that this is not the first;
it is not enough that I may live more days,
perhaps, more years.

it is not enough.
the phone is like a dead animal that will
not speak. it has spoken
but always the wrong voice now.

I have waited before and you have walked through
the door. now you must wait for me.

Frances Leviston – Todo animal faz um som, exceto nós

Agosto
e os cordeiros
foram levados de suas mães.
O dia todo elas emitem seus humanos lamentos
através da cerca da fazenda até a lagoa da orelha de um fazendeiro
e ao longo da lama pela nunca esquecida
necessidade de expressar o que foi perdido –
a fala visceral, incontornável,
a fala naufragada,
a perda.

Trad.: Nelson Santander

Every Animal has a Noise Except Us

August
and the lambs
have been taken from the mothers.
All day they cast their human cries
across the field-fence, into the pond of a farmer’s ear
and down through mud to the never-forgotten
need to tell of what was lost –
the gut-fished, unrefusable tongue,
the sunken tongue,
the loss.