Manuel António Pina – Eugénio de Andrade no seu leito de morte

Na mão de Ana o iogurte não
iluminava, escurecia,
comunhão ajoelhada
no fundo do coração do dia

dividido onde, desperto, ele dormia.
O movimento da colher embalava-o
como uma música que quase se ouvia
neste mundo ou um colo que o adormecia.

A tarde declinava, as sombras,
como sonhos, alongavam-se na almofada;
tudo fazia um sentido
limpo e simples, onde não alcança a poesia.

O que não fora dito
calado ficaria para sempre,
as palavras haviam-se sumido, transidas,
no interior da casa, o próprio silêncio emudecera.

Senhor, permite que adormeçamos
antes que feches a luz,
que os rebanhos estejam recolhidos
e os credores se tenham afastado da nossa porta,
mas que tenhamos pago as dívidas aos que nos serviram
e aos que nos amaram e aos que nos esperaram;
as tuas grandes mãos sustentarão o telhado e as paredes
e moerão o grão e fermentarão o trigo,
apaga com as tuas mãos o nosso rasto
e que repousemos
sem motivo para nos culparmos
por não termos sido felizes.

             Foz do Douro, 22/1/2005

Manuel António Pina – Carta a Mário Cesariny no dia da sua morte

Hoje soube-se uma coisa extraordinária,
que morreste. Talvez já to tenham dito,
embora o caso verdadeiramente não
te diga respeito, e seja assunto nosso, vivo.

Algo, de fato, deve ter acontecido
porque nada acontece, a não ser o costume,
amor e estrume; quanto ao resto
tudo prossegue de acordo com o Plano.

Há apenas agora um buraco aqui,
não sei onde, uma espécie de
falta de alguma coisa insolente e amável,
de qualquer modo, aliás, altamente improvável.

Depois, de gato para baixo, mortos
(lembrei-me disto de repente
agora que voltaste malevolamente a ti)
estamos todos. A gente vê-se um dia destes por aí.

Manuel António Pina – As escadas

Toma, este é o meu corpo, o que sobe as escadas
em direção à tua escuridão, deixando-me,
ou a alguma coisa menos tangível,
no seu lugar.

Também elas envelheceram, as escadas,
também, como eu, desabitadas.
Anoiteceu, ao longe afastam-se passos, provavelmente os meus,
e, à nossa volta, os nossos corpos desvanecem-se como terras estrangeiras.

Manuel António Pina – As Coisas

Há em todas as coisas uma mais-que-coisa
fitando-nos como se dissesse: “Sou eu”,
algo que já lá não está ou se perdeu
antes da coisa, e essa perda é que é a coisa.

Em certas tardes altas, absolutas,
quando o mundo por fim nos recebe
como se também nós fôssemos mundo,
a nossa própria ausência é uma coisa.

Então acorda a casa e os livros imaginam-nos
do tamanho da sua solidão.
Também nós um dia tivemos um nome
mas, se alguma vez o ouvimos, não o reconhecemos.

Manuel António Pina – A avó

Tinha ao colo o gato velho
cansadamente passando
a sua branca mão pelo
pelo dele preto e brando

Sentada ao pé da janela
olhando a rua ou sonhando-a
todo o passado passando
a passos lentos por ela

Dormiam ambos enquanto
a tarde se ia acabando
o gato dormindo por fora
a avó dormindo por dentro

Manuel António Pina – Extrema-unção

Uma breve, amável mágoa à
flor dos olhos, um distante desapontamento,
morrias como se pedisses desculpa
por nos fazeres perder tempo.

Tinhas pressa mas não o mostravas,
receavas que não estivéssemos preparados,
e, suspenso sobre nós, esperavas
que disséssemos tudo, que fizéssemos o apropriado.

Morrer não é motivo de orgulho,
mas estavas cansado demais para te justificares.
Ainda por cima no mês de Julho,
com as férias marcadas, ausentes os familiares.

Tínhamos levado as crianças de casa,
feito os telefonemas, escolhido os dizeres.
O quarto fora arrumado, a cama mudada
com roupa lavada. Só faltava morreres.

             8/1/01

Manuel António Pina – Quinquagésimo ano

São muitos dias
(e alguns nem tantos como isso…)
e começa a fazer-se tarde de um modo
menos literário do que soía,
(um modo literal e inerte
que, no entanto, não posso dizer-te
senão literariamente).
Mas não há pressa, nem se vê ninguém a correr;
a única coisa que corre é o tempo,
do lado de fora, porque dentro
a própria morte é uma maneira de dizer.
Caem co’a calma as palavras
que sustentaram o mundo,
e nem por isso o mundo parece
menos terreno ou impermanece.
Restam, é certo, alguns livros,
algumas memórias, algum sentido,
mas tudo se passou noutro sítio
com outras pessoas e o que foi dito
chega aqui apenas como um vago ruído
de vozes alheias, cheias de som e de fúria:
literatura, tornou-se tudo literatura!
E a vida? (Falo de uma vida
muda de palavras e de dias, uma vida nada mais que vida;
haverá uma vida assim para viver,
uma vida sem a si mesma se saber?)
Lembras-te dos nossos sonhos? Então
precisávamos (lembras-te?) de uma grande razão.
Agora uma pequena razão chegaria,
um ponto fixo, uma esperança, uma medida.

             18/5/00

Manuel António Pina – Todas as palavras

As que procurei em vão,
principalmente as que estiveram muito perto,
como uma respiração,
e não reconheci,
ou desistiram e
partiram para sempre,
deixando no poema uma espécie de mágoa
como uma marca de água impresente;
as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
nem foram capazes de dizer-me;
as que calei por serem muito cedo,
e as que calei por serem muito tarde,
e agora, sem tempo, me ardem;
as que troquei por outras (como poderei
esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?);
as que perdi, verbos e
substantivos de que
por um momento foi feito o mundo
e se foram levando o mundo.
E também aquelas que ficaram,
por cansaço, por inércia, por acaso,
e com quem agora, como velhos amantes sem
desejo, desfio memórias,
as minhas últimas palavras.

Manuel António Pina – Café do molhe

Perguntavas-me
(ou talvez não tenhas sido
tu, mas só a ti
naquele tempo eu ouvia)

por que a poesia,
e não outra coisa qualquer:
a filosofia, o futebol, alguma mulher?
Eu não sabia

que a resposta estava
numa certa estrofe de
um certo poema de
Frei Luis de Léon que Poe

(acho que era Poe)
conhecia de cor,
em castelhano e tudo.
Porém se o soubesse

de pouco me teria
então servido, ou de nada.
Porque estavas inclinada
de um modo tão perfeito

sobre a mesa
e o meu coração batia
tão infundadamente no teu peito
sob a tua blusa acesa

que tudo o que soubesse não o saberia.
Hoje sei: escrevo
contra aquilo de que me lembro,
essa tarde parada, por exemplo.

Manuel António Pina – Sérgio

Onde agora estás não alcançam
o clamor dos magistrados
nem a faca do assassino.
A tua própria morte não te pertence já,
é assunto nosso, desprovido e inerte.
Que faremos nós com o teu inúmero corpo,
como te diremos o que está a acontecer-te?

Fechou-se qualquer coisa qualquer porta
espessa e desabitada,
a faca pôs tudo como estava.

Sobram, inúteis, as lágrimas (mais isso que te importa?),
as últimas palavras, a última carta;
se não fosse essa faca seria outra faca
noutra noite noutra auto-estrada
e se não fosses tu seria outro
do mesmo modo vivo e morto.


             31/12/88