Excelentíssimo Senhor Friedrich,
tenho a impressão de estar a ver agora o senhor,
no terraço do sanatório, ao amanhecer,
com o nevoeiro a cair e o canto a rebentar
nas gargantas dos pássaros.
Não muito alto, a cabeça como um projétil,
o senhor está a escrever um novo livro
e uma estranha energia flui de si:
parece que vejo os seus pensamentos como se fossem
grandes exércitos em parada
O senhor sabe que morreu a morena Anne Frank
e os seus colegas de escola e amigos, rapazes e raparigas,
os coetâneos, e as amigas dos seus amigos
e os seus primos.
Quero perguntar-lhe o que é que são as palavras, o que é
a claridade, porque é que as palavras continuam a queimar
passados cem anos, embora a terra
seja tão pesada.
É óbvio que não existe nexo entre a iluminação
e a obscura dor da crueldade.
Existem pelo menos dois reinos,
mas é possível que haja ainda mais.
No caso, porém, de não haver Deus e de nenhuma força
estabelecer conexões entre elementos antagônicos,
o que é que são então as palavras e qual é a origem
da sua luz interior?
E qual a origem da alegria? E qual o destino do nada?
Qual a morada do perdão?
Porque é que os sonhos pequenos se dissipam ao chegar do dia
enquanto os grandes continuam a crescer?
Trad.: Marco Bruno