José Infante – Remorsos ao iniciar um novo ano

Já pensaste algumas vezes que talvez foste tu
quem não amaste ninguém, ou talvez não
o suficiente para que não te deixassem
abandonado pelo mundo, como um fantasma errante?
Pensavas que sempre foste generoso,
mas agora te perguntas se na verdade não foste
possessivo, ciumento, desconfiado e sufocante.
Acreditaste que o amor era para ti a única entrega,
o único sentimento que guiava tua vida,
a única razão de tua existência, o motivo
e a raiz que iluminava tudo o que fazias,
desde o cuidado da casa até o das as palavras,
os silêncios nos quais às vezes te encerravas de forma
repentina e que só pensavas serem amor também,
inexprimível. Uma forma absurda de adoração.
O que fizeste de errado ou em que te equivocaste?
Ou foi o destino que jogou contigo uma partida
cruel e destruidora? Olhas para trás, agora que
começa um novo ano e ficas igualmente tentado
a fazer um balanço completo do tempo que passou.
Dentro de ti queres crer que teus erros, todos,
foram produtos apenas do amor, que não conseguias
manter a teu lado, por mais que tenhas tentado.
Erros que eram produto do inefável
que te impedia de expressar todo o sentimento
de teu coração e de teu próprio corpo. Agora duvidas disso.
Neste mês de janeiro de dois mil e dez, aos 63 anos
de tua triste existência, acodem remorsos
urgentes, que te acossam e impregnam teu ânimo.
Cada dia de tua vida de velho fracassado.
Talvez tenhas amado a ti mesmo mais do que o que a vida
tão generosamente te ofereceu. Ou não percebeste,
perdido como sempre estiveste em um escuro labirinto
que só conduz ao inferno e ao nada.

Trad.: Nelson Santander

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Remordimientos al comenzar un año

¿No has pensado algunas veces que quizás fuiste tú
quien no quisiste a nadie, o tal vez no
lo suficientemente para que no te dejaran
abandonado por el mundo, como fantasma errante?
Tú pensabas que siempre fuiste generoso,
pero ahora te preguntas si en realidad no fuiste
posesivo, celoso, desconfiado y agobiante.
Has creído que el amor fue para ti la única entrega,
el único sentimiento que guiaba tu vida,
la única razón de tu existencia, el motivo
y la raíz que iluminaba todo lo que hacías,
desde el cuidado de la casa hasta el de las palabras,
los silencios en los que a veces te encerrabas de forma
repentina y que solo pensabas que eran amor también,
inexpresable. Una manera absurda de adoración.
¿Qué hiciste mal o en qué te equivocaste?
¿O fue el destino quien jugó contra ti una partida
cruel y destructora? Miras atrás, ahora que comienza
de nuevo un año y tienes la misma tentación
de hacer un balance total del tiempo que ha pasado.
Dentro de ti quieres creer que tus errores, todos,
fueron producto tan solo del amor, que no lograbas
retener a tu lado, por más que lo intentaste.
Errores que eran producto de lo inefable
que te impedía expresar el sentimiento entero
de tu corazón y de tu propio cuerpo. Ahora lo dudas.
En este mes de enero de dos mil diez, a los 63
de tu triste existencia, acuden remordimientos
urgentes, que te acosan y que impregnan tu ánimo.
Cada día de tu vida de viejo fracasado.
Talvez te quisiste a ti mismo más que a lo que la vida
tan generosamente te ofrecía. O no te diste cuenta,
perdido como has estado siempre en un oscuro laberinto
que tan solo conduce al infierno y a la nada.

Retrospectiva 2024 – Nostalgia, Números e Novos Horizontes

Sabe, eu queria muito – juro – começar essa retrospectiva com um texto otimista. Imaginei algo leve e espirituoso, cheio de piadas sem graça e trocadilhos embaraçosos, com um quê de Luis Fernando Veríssimo dos anos 80. Pensei em uma introdução com o espírito dos comerciais do Boticário, capaz de transmitir aquele apelo emocional que todos buscamos nos Révellions, enquanto bebemos até vomitar e a Globo mostra os fogos sobre Copacabana, as pessoas gritando descontroladas, pulando ondinhas, fazendo oferendas. Sabe aquele Réveillon em família, com o tio bolsonarista e suas piadas inconvenientes, o filho adolescentes com cara de tédio, a avó surda que precisa que a levem ao banheiro de meia em meia hora? Então, algo assim.

Queria mesmo, mas não deu.

Calma, esse não é um desabafo suicida ou algo parecido. Depois de ler “Último Capítulo“, um dos inúmeros grandes contos de Machado de Assis1, prometi a mim mesmo que se um dia precisar recorrer a uma solução tão extrema, o farei com discrição e sem alarde. Quero evitar que, em um improvável encontro post mortem, me torne alvo da ironia mordaz do Machadinho, ou vítima de suas chufas, remoques e alcunhas zombeteiras… Que os que me sobreviverem tentem decifrar os motivos de minha eventual e súbita partida.

Também não se trata de um desabafo amargurado, ou daquela leve depressão que se abate sobre nós nos finais de ano.

Ou é?

Sim, 2024 foi pesado. No trabalho, na vida privada, no país. Mas não são todos anos assim, depois que nos tornamos adultos? Sim, são. E quanto mais envelhecemos, pior parece ficar. Um nítido cansaço de tudo parece nos afetar a todos nessa época do ano. Uma nostalgia dos natais passados nos assalta – lembranças da infância ou de qualquer outra época da vida em que fomos felizes – levando-nos àqueles inconvenientes balanços de fim de ano que invariavelmente nos põem para baixo. Afinal, o que passou sempre parece melhor do que a vida que levamos hoje. Muitas vezes, é quase impossível competir com passado.

Para a maioria de nós, por mais difícil que tenha sido a infância e a juventude, esses serão sempre lugares em que repousam, como joias em um estojo, nossas memórias afetivas mais intensas e nostálgicas. Os presentes de natal, os dias de vadiagem das férias de fim de ano, as luzes coloridas da cidade

Lembra daquele primeiro Réveillon com a namoradinha? O beijo e as promessas de amor eterno ao som das rolhas de Cidra Cereser estourando. As noites de verão, você tentando criar coragem para se declarar para a menina mais bonita do bairro. Não, da cidade. Quiçá do País. Lembra dela? Qual era mesmo o nome? Luciana? Aldamira? Sônia? Rosemeire?

Seu nome seu nome era…
Perdeu-se na carne fria
perdeu-se na confusão de tanta noite e tanto dia
perdeu-se na profusão das coisas acontecidas
constelações de alfabeto
noites escritas a giz
pastilhas de aniversário
domingos de futebol
enterros corsos comícios
roleta bilhar baralho

(de Poema Sujo, Ferreira Gullar)

Para quem já passou dos cinquenta, a vida atual raramente consegue competir com essas memórias idealizadas. A vida já nos desgastou de tal forma, e acumulamos tantos traumas, recalques, remorsos, mágoas, insatisfações, arrependimentos, frustrações, perdas, que comparar o presente com o passado soa quase como escárnio.

“As crianças e seus presentes, os adultos e seus ausentes”, diria Janio de Freitas.

E nós, entre as ausências e os presentes, tentamos preencher o tempo com aquilo que remanesce – ou, pelo menos, com o que acreditamos que deve permanecer. Talvez sejam nossas memórias, aquelas que revisitamos compulsivamente ao final de cada ano, em busca de algum significado maior. Talvez sejam nossos pequenos projetos – os que nos mantêm ativos, produtivos, vivos –, ainda que, muitas vezes, nos pareçam vãos diante da grandeza do tempo que nos ultrapassa.

É curioso como, em meio a essa maré de balanços e melancolias, encontramos espaço para comemorar o que construímos, mesmo que pareça modesto. Pequenas conquistas, números e estatísticas ganham outra dimensão quando vistos sob o prisma da persistência. Afinal, o que é a vida senão um acúmulo de números e histórias? No meu caso, esse blog tem sido um desses lugares onde o presente tenta dialogar com o passado, e onde, quem sabe, algumas dessas histórias possam deixar marcas, nem que sejam digitais.

Mas chega de divagar – o texto já desliza para o enfadonho. Vamos ao que interessa.

Queria dizer apenas que, apesar do mencionado cansaço, o blog segue firme e crescendo. Pode não ser um fenômeno da internet, mas os números são animadores:

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Comentários: 277

Em 2024, foram 183 mil visualizações e 117 mil visitantes, 86 curtidas e 42 comentários (ei, pessoal, vamos curtir e comentar mais, até para eu saber se estou no caminho certo). Para um blog de poesia, não é nada mal. Acho. Eu sei que perfis como o ótimo Vila dos Poetas (@viladospoetas) no Instagram atraem milhares de curtidas por post, mas são plataformas com propostas diferentes. Meu blog aposta na palavra escrita, quase sem os recursos audiovisuais que encantam nas redes sociais.

E 2025 promete mais. Continuaremos com publicações diárias, alternando textos inéditos e republicações. Além de trazer a tradução de ótimos poemas de poetas pouco conhecidos no Brasil e que ainda não figuraram na página – como Anna Swir, Jackie Bartley, Christopher Wiseman, Laura Foley, etc. -, de fevereiro a abril, publicarei uma coletânea de Linda Pastan, com 60 poemas traduzidos, a maioria inéditos.

Os temas? Aqueles que vocês já conhecem: angústias existenciais, mortalidade, envelhecimento, perda, amor, meio ambiente e as pequenas epifanias da vida cotidiana. Nada que você que frequenta a página já não tenha visto antes. Pode soar repetitivo, mas cada poema carrega um olhar único, que ressignifica até os temas mais batidos com sua própria marca irredutível.

Então é isso. Agora sim, vamos finalmente ao que interessa: os melhores textos publicados na página em 2024. Arrisque-se neles. Vale a pena.

Faltou algo? Ah, é mesmo: feliz 2025!

  1. Há entre os suicidas um excelente costume, que é não deixar a vida sem dizer o motivo e as circunstâncias que os armam contra ela. Os que se vão calados raramente é por orgulho; na maior parte dos casos ou não têm tempo, ou não sabem escrever. Costume excelente: em primeiro lugar, é um ato de cortesia, não sendo este mundo um baile, de onde um homem possa esgueirar-se antes do cotilhão; em segundo lugar, a imprensa recolhe e divulga os bilhetes póstumos, e o morto vive ainda um dia ou dois, às vezes uma semana mais. ↩︎

1. Allen Hoey - Ano Novo

Neve de novo. Às vezes uma rajada
faz girar os flocos que caem em linha reta.
Uma dúzia de pardais se faz
diminuta nos galhos nus da
Rosa-de-Saron, (...)
2. Linda Pastan - Os Meses

Janeiro

Retorcidas pelo vento,
meras estruturas para gelo ou neve,
as árvores decidem
resistir por enquanto,

elas brotarão em abril. (...)
3. Wendell Berry - Eles se sentam juntos na varanda

Eles se sentam juntos na varanda, a escuridão
Aproximando-se, a casa atrás deles na penumbra.
Terminada a refeição, lavaram e secaram
A louça – apenas dois pratos agora, dois copos,
Duas facas, dois garfos, duas colheres – tarefa pequena para dois. (...)
4. Ursula K. Le Guin - Prece de uma Noite de Janeiro

Sinos badalam, excêntricos ventos
assobiam gelados vindos das terras desérticas
sobre as montanhas. Janus, Senhor
do inverno e dos começos, fendido
e abalado, com duas faces, (...)
5. Terence Winch - Aquele Navio já Partiu

Em nossa antiga vida, comíamos sorvete e pudim
de pão. Bebíamos copo após copo de
Grand Marnier até ficarmos enjoados.
Nossa libido era grande como um outdoor.
Nossa libido era maior do que a tela
de um cinema drive-in no meio do nada,
exibindo intermináveis clássicos pornográficos
adolescentes. (...)
6. Dorianne Laux - Eu te desafio

É outono, e estamos nos livrando
dos livros, nos preparando para aposentar e
mudar para um lugar menor, mais
gerenciável. Vivendo ao contrário,
na nova casa à prova de idade, nada
no chão para tropeçar, nenhum obstáculo
para os vagarosos mecanismos de nossos corpos,
uma mesinha para dois. (...)
7. Dean Young - Ode às Cinzas

Quando a vi mais adiante, corri dois quarteirões
gritando seu nome; depois, percebendo que não era
você, mas uma sósia assustada, continuei
correndo, gritando agora aos céus, perpetuando
sua fama e seu brilho. (...)
8. Julia Hartwig - Assim Será

Tudo retornará
E não será em forma de cinzas ou ruínas
tudo será como antes da extinção

à vista e em flor
Amizades não desfeitas
poços não envenenados
combates ainda repletos de esperança de êxito (...)
9. Tony Harrison - Longa Distância II

Daqueles que se encontravam à mesa do café
onde, no meio-dia de inverno, um jardim de gelo reluzia nas vidraças,
só eu sobrevivi.
Eu poderia entrar ali se quisesse
e, tamborilando meus dedos em um frio vazio,
convocar as sombras. (...)
10. Aleksandr Blok - Cleópatra

O museu triste da rainha
Há um, dois, três anos já se abriu.
Bêbada e louca a turba ainda se apinha…
Ela espera no túmulo sombrio. (...)
11. Anna Akhmátova - Cleópatra

Ela já beijara os lábios de Antônio, sem vida,
E chorava, de joelhos, ante Augusto, vencida…
E os servos a traíram. Sob a águia de Roma
As trombetas ressoam. E o crepúsculo assoma. (...)
12. Sharon Olds - Cemitério de Leningrado, Inverno de 1941

Naquele inverno, os mortos não puderam ser enterrados.
O solo estava congelado, os coveiros fracos de fome,
a madeira dos caixões era usada como combustível. Por isso, eles foram cobertos com algo
e levados em um trenó de criança para o cemitério,
no ar abaixo de zero. (...)
13. Mary Oliver - Quebra

Eu desço até a beira-mar.
Como tudo cintila na luz matutina!
A cúspide da concha,
o búzio quebrado do caracol,
os mexilhões azuis abertos,
lesmas-do-mar rosa-pálidas marcadas por cracas — (...)
14. John Updike - A Morte da Cachorra

Ela deve ter sido chutada ou atropelada por um carro sem que víssemos.
Muito nova para saber muito, ela começava a aprender
A usar os jornais espalhados pelo chão da cozinha
E a ganhar, quando os molhava, as palavras “Boa garota! Boa garota!” (...)
15. Mark Strand – Meu Nome

Certa noite, quando a relva estava verde-dourada
e as marmóreas árvores à luz do luar se erguiam como novos memoriais
no ar perfumado, e toda a paisagem pulsava
com o zumbido e o murmúrio dos insetos, eu me deitei na grama
sentindo a vastidão abrir-se acima de mim, e me perguntei
o que eu me tornaria – (...)
16. Dorianne Laux - Da gentileza de estranhos

Não importa a dor, seu peso,
somos obrigados a carregá-la.
Erguemo-nos e ganhamos impulso, a força monótona
que nos empurra através da multidão.
Mas então um garoto me dá instruções
com tanto entusiasmo. (...)
17. Dan Albergotti - Considere as Flores do Campo

Os grãos
espalhados no chão
buscam um ponto de arrimo
que consigam encontrar no terreno,
abrem-se, estendendo pés embrionários
como luminescentes raios e passos retardatários
para achar o nutrimento mais próximo e sugá-lo. (...)
18. Charles Simic - Minha Contenda com o Infinito

Eu preferia o fugaz,
Como a lembrança de um gole de vinho
De nobre safra
Na língua, de olhos fechados… (...)
19. Emily Montgomery - Algo Bonito

Eu quis reservar algo bonito para você.
As últimas três joias de romãs reluzentes
equilibradas na palma da minha mão antes que eu as comesse.
O canto matinal dos pássaros no limoeiro depois de você ter ido trabalhar,
a lembrança da chuva da noite passada ainda impressa no gramado. (...)
20. Li-Young Lee - O Grande Relógio

Quando o grande relógio da estação parou,
as folhas continuaram a cair,
os trens continuaram a circular,
o cabelo da minha mãe continuou a crescer, ainda mais negro,
e o corpo do meu pai continuou a encher-se de tempo. (...)
21. Thomas Lux - Irreconciliabilidade

Não importa o que você faça,
não é possível retê-lo por muito tempo,
nem trazê-lo de volta.

O céu, o céu vazio,
quase azul, as casas modestas do sono,
cobertas de musgo, irão chamá-lo. (...)
22. Faith Shearin - O que eu Gosto

Não da festa em si — um turbilhão de momentos desconfortáveis e risos
que, na verdade, querem dizer outra coisa. Não do momento logo após o fim
da festa, quando nos jogamos no sofá, pratos espalhados por toda parte,
bitucas de cigarro flutuando no refrigerante, um único pedaço intocado de torta

sobre a mesa de centro. (...)
23. Nuno Júdice - Como Aves, Cuja Passagem

Como sombras passaram entre nós,
como sombras. Uma vez perante alguns amigos
e desconhecidos, afirmei conhecê-los e citei
os seus nomes. Mas o que não correspondia
a um acto heroico, nada significava
hoje, mesmo entre amigos e desconhecidos. (...)
24. W. S. Merwin - Um Retrato

á é quase o dia do seu aniversário e
enquanto me visto sozinho em casa
um botão se solta e assim que encontro
uma agulha com um buraco suficientemente grande
para eu passar a linha
e finalmente costurar o botão
abro uma velha foto sua
que sempre fazia essas coisas por mágica (...)
25. Chad Frame - Área de Fumantes

Páscoa, e o recinto de vidro está embaçado
como um olho remelento. Os velhos fumam,
ofegantes em seus bonés e cadeiras de rodas.

Trouxemos o cachorro do meu pai. Eu sei que não é
um cachorro de homem, anuncia ele, o chihuahua
repousando na colcha azul cobrindo seu colo. (...)
26. Jan Heller Levi - Nada mal, pai, nada mal

Acho que você é mais você mesmo quando está nadando;
fatiando a água a cada braçada,
a maneira engraçada como respira, a boca arqueada
como se estivesse bocejando. (...)
27. Tomas Tranströmer - Postais Pretos

(...) II

No meio da vida, eis que a morte chega
e tira nossas medidas. Essa visita logo
é esquecida, e seguimos com a vida. Mas a veste
segue sendo silenciosamente cosida.
28. Timothy Liu - Thoreau

Meu pai e eu não temos para onde ir.
Sua esposa não nos deixa entrar em casa —
medo de contrair AIDS. Ela acredita que
dormir com homens é pior do que um pecado,
meu pai diz, enquanto nos sentamos no meio-fio
em frente à casa dos vizinhos. (...)
29. Larry Levis - Estrelas de Inverno

Certa vez, meu pai quebrou a mão de um homem
No escapamento de um trator John Deere. O homem,
Rubén Vásquez, queria matar o próprio pai
Com uma faca de fruta afiada, & segurava
A ponta curva dela, levemente, entre os dois
Primeiros dedos, para cortar
Horizontalmente, & com surpreendente graça,
A garganta. (...)
30. Ada Limón – A Capa de Chuva

Quando o médico sugeriu cirurgia
e uma órtese por toda minha infância,
meus pais se apressaram em me levar
à fisioterapia, massagens intensas,
osteopatia, e logo minha coluna torta
desenrolou-se um pouco, pude respirar novamente,
e me movimentar mais, um corpo livre
da dor. (...)
31. Ted Kooser - Pais

Meus falecidos pais tentam se manter fora do meu caminho.
Quando entro em um cômodo, eles já o deixaram,
foram procurar o que precisa ser feito
em outra parte da casa, meu pai com o aspirador,
minha mãe com pano de pó e o lustra-móveis. (...)
32. Marie Howe - A Menina

Tão perto do fim de minha vida fértil e
ainda sem filhos

– se eu pudesse lembrar de um dia sequer em que era puramente uma menina
e ainda não uma mulher –

mas não creio que tenha havido um dia assim para mim. (...)
33. Tung-Hui Hu - Como Cuidar?

Naquele mês, eu me perguntava onde eles se reuniam,
antes dos hospitais, antes da ala oncológica,
dos cuidados intensivos, das urgências.

Naquele tempo, tudo era urgente, amarrar
mãos e pés, imobilizar o corpo
antes que pudesse se transformar em cadáver. Agora
é mais fácil, olhar fotografias em vez disso, (...)
34. Patrick Philips - Matinê

Após a biópsia,
após a cintilografia óssea,
após a consulta e o choro,

por algumas horas ninguém conseguia encontrá-los,
nem mesmo minha irmã,
porque acontece que

eles tinham ido ao cinema. (...)
35. Rachel McKibbens - Sem Título

(...) E vocês ouvirão a si mesmas dizendo:

Último amor, desejo morrer para poder voltar para ti
nova e nunca provada por nenhuma outra boca além da tua.
E quero ser as mãos que tiram teus filhos
de dentro de ti e os guardam profundamente dentro de mim, até estarem
prontos para serem filhos de um amor tão real e impressionante.
Ou vocês vão dizer: (...)
36. Ada Limón - Antes

Descalça e usando um capacete
vermelho reluzente, eu cavalgava
na garupa da Harley do meu pai
aos sete anos de idade.
Antes do divórcio.
Antes do novo apartamento.
Antes do novo casamento.
Antes da macieira. (...)
37. Adam Zagajewski - Tente Louvar o Mundo Mutilado

Tente louvar o mundo mutilado.
Lembre-se dos longos dias de junho,
dos morangos silvestres e das gotas de vinho rosé.
Das urtigas que metódicas invadem
as propriedades abandonadas dos exilados.
Você deve louvar o mundo mutilado.
Você observou os elegantes iates e navios;
um deles tinha uma longa jornada pela frente,
enquanto o salino esquecimento aguardava os demais. (...)
38. Fleur Adcock - O Hospital Soho para Mulheres

Estou no supermercado, hesitante –
nesta tarde, precisamente nela –
entre os tomates, o queijo e os pães,

coisas que uso como ingredientes
para preparar meu jantar, e elas
comem na cama suas refeições: (...)
39. Ed Madden - Sacrifício

Quando meu pai me amarrou, eu me submeti,
fechei os olhos para a faca em seu punho.
Mesmo agora, as cordas ainda prendem meus pulsos,
rudes amarras do amor. (...)
40. Theodore Roethke - Elegia para Jane

Lembro-me dos cachos no pescoço, úmidos e macios como gavinhas;
E do olhar ligeiro, peixinho sorrindo de soslaio;
E como, ao começar a falar, as sílabas leves fluíam para ela.
Ela se equilibrava no deleite de seus pensamentos,
Uma ave, feliz, cauda ao vento,
Sua canção fazendo tremer os ramos e os pequenos galhos.
A sombra cantava com ela;
Os sussurros das folhas se tornavam beijos;
E o mofo cantava nos vales descoloridos sob a rosa. (...)
41. Sue Boyle - Um Centro de Lazer é Também um Templo do Saber

A garota de cor dourada no vestiário feminino
está empenhada em tornar seu corpo mais belo:
ela flexionou e tonificou cada músculo com um mergulho matinal
e removeu os resíduos químicos de piscina
usando um esfoliante aromático e suave. (...)
42. Colette Bryce - Versão Inicial

Nosso embarcação tardou a alcançar Betsaida; os ventos nos oprimiam,
rápidos e gelados, e nossas mãos estavam cheias de bolhas dos remos.
Tínhamos esgotado nosso estoque de canções e gracejos, com quilômetros
ainda por percorrer, quando Jesus falou: (...)
43. John Burnside - História

Hoje
enquanto empinávamos pipas
– a areia se desfazendo em fitas ao longo da praia
e o cheiro de gasolina de Leuchars1 flutuando sobre
os campos de golfe;
a maré alta distante
cinza-codorna;
pessoas
correndo, ou parando para observar
enquanto os aviões de guerra decolavam e circulavam
na luz matinal –
(...)
44. Malena Mörling - Viajando

Como postes de luz
ainda acesos
após o amanhecer,
os mortos
nos encaram
de fotografias
emolduradas. (...)
45. Linda Pastan - Instruções

Você deve embalar sua dor em seus braços
até que ela adormeça, e depois deixá-la

em um quarto escuro
e sair na ponta dos pés.

Por um momento, você sentirá
o vazio da paz. (...)
46. Paul Guest - Elegia Universal

Pelo sol, que se apagará ou se esgotará
ou dramaticamente implodirá em uma era
futura tão terrível quanto esta. Pelo
cervo com um chifre só que expirou a caminho
de um santuário ao norte
porque sim. Pela sequoia-túnel,
arrancada em uma tempestade
outro dia. Pela minha fantasia de infância
em atravessa-la. Pela Califórnia. (...)
47. Paul Bailey - Noturno

Certa vez, conheci um homem que desejava nunca ter nascido.
Ele falava sério quando dizia isso.
Ele não era um poseur.
Nos poucos e radiantes anos em que o conheci,
Ele nunca falava para causar impacto. (...)
48. Mary Oliver - Rosas no Final do Verão

O que acontece
com as folhas depois
que ficam vermelhas e douradas
e caem? O que ocorre

com as aves canoras
quando não podem mais
cantar? O que acontece
com suas asas ágeis? (...)
49. Seamus Heaney - Tempestade na Ilha

Estamos preparados: construímos baixas nossas casas,
cobrimo-las com boa ardósia e embutimos as paredes na rocha.
Esta terra ressequida nunca nos incomodou
Com feno, logo, como você pode ver, não há pilhas
De palhas que possam ser perdidas. Nem árvores
Que possam estar presentes quando ela atinge toda
Sua potência: você sabe o que eu quero dizer – folhas e galhos
Podem formar um coro trágico em uma tempestade,
De modo que você ouve o que teme,
Esquecendo que aquilo está atingindo também a sua casa. (...)
50. Ronald Wallace - Fora do Registro

No sótão, encontro as anotações
que ele fez na universidade
há mais de quarenta anos: viva
o feriado de Ação de Graças!, ele escreveu
nas margens da Psych 102.
E por um momento posso vê-lo lá,

sentir a exuberância fluindo
naquela estranha célula do seu corpo
onde ainda permaneço
um código secreto incompleto, um fragmento
de DNA, alguma matéria estelar ancestral. (...)
51. Matt W. Miller - Clube Ícaro

Não estamos no ar por mais do que alguns
segundos prateados quando aquele rapaz
alado e arrogante é sugado
por uma das turbinas, iniciando um incêndio
que arranca a asa de estibordo
da fuselagem, arremessando
passageiros, fazendo-nos chover
sobre o norte da Califórnia, dezenas
de nós caindo em direção à baía
e você pode imaginar os gritos, (...)
52. Rigoberto González - Casa

Não sou sua mãe, não me comoverei
com o sofrimento ou a gratidão de homens
que lamentam como órfãos à minha porta.
Não sou uma igreja. Não respondo às
orações, mas nunca as rejeito. (...)
53. Laura Kasischke - A Palma

Vejo que você terá uma vida comum, talvez
tenha filhos, talvez se case com
um homem amável, mas pouco
notável. Aguarda-lhe
uma viagem simples
(Cataratas do Niágara? Parque Yellowstone?). Embarque
nela. Faça
as escolhas que precise fazer: pintar
de azul o banheiro de cima, mudar-se
para o Wisconsin. Não importa.
Mas aqui, aqui nesta linha, esta linha
como uma cicatriz em sua mão — aqui
vejo algo mais. (...)
54. Sarah Freligh - Maravilhoso

Estou voltando da escola quando o rádio
fala de E.B. White, seu aniversário, e eu saio
do aqui e agora da rodovia na hora do rush,

e viajo de volta ao passado, onde minha mãe está lendo
para mim e minha irmã a parte em que Charlotte põe seus ovos
e morre, e embora esta seja a quinta vez que Charlotte

morre, (...)
55. Edward Thomas - Adlestrop

Sim, lembro-me bem de Adlestrop —
Do nome, porque num certo dia
De calor o trem ali parou
Do nada. Junho se consumia. (...)
56. Franny Choi - Pós-morte

Para responder à sua pergunta, sim,
me vejo querendo cada vez menos
transar com o rapaz morto que foi meu
antes de não ser mais nada. (...)
57. Kim Addonizio - Comendo Juntas

Sei que minha amiga está partindo,
embora ela ainda esteja sentada
à minha frente no restaurante
e se incline sobre a mesa para mergulhar
seu pão no azeite do meu prato; sei
como o cabelo dela costumava ser espesso,
e o que custa para ela deixar de lado
seu boné masculino no meio da refeição,
olhar diretamente para o jovem garçom
e sorrir quando ele pergunta
se estamos gostando. (...)
58. Patrick Kavanagh - Raglan Road

Na Raglan Road, em um dia de outono, uma vez a conheci e sabia
Que suas mechas escuras lançariam uma urdidura que me apanharia;
Eu enxerguei o perigo, mas continuei pela viela encantada,
E disse: que a aflição seja uma folha no chão ao despontar da alvorada. (...)
59. William Stafford - Viajando na Escuridão

Viajando na escuridão, encontrei um cervo
morto à margem da estrada junto ao Rio Wilson.
Geralmente é melhor rolá-los para o cânion:
a estrada é estreita; desvios poderiam causar mais mortos. (...)
60. Thomas Ligotti - Memento

Você pretendia cuidar de tudo
e organizar seus assuntos.
Mas o inesperado aconteceu
e não houve tempo.

Mais tarde, os entes queridos vieram,
se desfizeram de algumas coisas
e deixaram outras de lado:
lembranças ou objetos de valor. (...)
61. James Davis May - Lei da Silva

Até na noite em que meu amigo morreu
depois de uma longa doença —
não vou usar a palavra
batalha,
pois o câncer havia desaparecido,
e depois voltou, como algum assassino de filmes de terror —
até naquela noite, a gata selvagem, aquela
branca e fofa e às vezes afável,
ainda cruzava nossa garagem, silenciosamente,
dos pinheiros do vizinho até nossos rododendros,
até naquela noite, ela procurava algum roedor
ou pássaro para aterrorizar e mutilar
e talvez até matar. (...)
62. Maria Popova - Último da Espécie

O chilrear sincopado
do último Moho braccatus –
um pequeno pássaro
havaiano já extinto –
foi extraído de uma bobina
no arquivo de som
da biblioteca britânica. (...)
63. Sharon Olds - Volto a Maio de 1937

Vejo-os parados nos portões solenes de suas faculdades,
vejo meu pai caminhando
sob o ocre arco de arenito, os
azulejos vermelhos brilhando como placas
de sangue atrás de sua cabeça,
vejo minha mãe carregando alguns livros leves
parada ao pé do pilar feito de pequenos tijolos,
o portão de ferro fundido ainda aberto atrás dela, as
pontas afiadas brilhando no ar de maio,
eles estão prestes a se formar, estão prestes a se casar,
eles são crianças, são tolos, tudo o que sabem é que são
inocentes, que nunca machucariam ninguém. (...)
64. Mary Oliver - Robert Schumann

Mal passa um dia sem que eu pense nele
no hospício: mais jovem

do que sou agora, trilhando a longa estrada
da loucura em direção à morte.

Sua música explode pelo
mundo todo, de um modo que ele

nunca imaginou. E agora compreendo
algo tão assustador e maravilhoso –

como a mente se apega ao caminho conhecido, precipitando-se
pelos cruzamentos, agarrando-se

como fiapo ao que lhe é familiar. (...)
65. Theodore Roethke - O Campo Distante

I

Sonho com viagens repetidamente:
Em voar como um morcego por um túnel estreito
Em dirigir sozinho, sem bagagem, por uma longa península
A estrada ladeada por uma vegetação rala carregada de neve,
Uma neve fina e seca atingindo o para-brisas,
Neve e granizo alternados, nenhum tráfego em sentido contrário,
E nenhuma luz atrás, no embaçado espelho lateral,
A estrada mudando de asfalto vitrificado para cascalho de pedras,
Terminando finalmente em um desolado sulco na areia,
Onde o carro se detém,
Preso em um monte de neve
Até os faróis se apagarem. (...)
66. Jen Lambert - Um Grande Cômodo Vazio

Quando recebemos o resultado, meu pai me envia uma mensagem.
Ele diz que deveríamos esperar para contar a ela.
Ele diz: deixe-a ter mais um Natal feliz,
o que significa que ele quer ter mais um Natal feliz,
o que significa que ele está com medo. (...)
67. Kim Addonizio - O que os Mortos Temem

Em noites de inverno, os mortos
veem suas fotografias escorregarem
das abas das carteiras,
e suas cartas serem jogadas numa caixa
junto com as roupas para doação.
Ninguém se lembra de suas piadas,
dos tiques nervosos, do medo
de lugares fechados. (...)
68. Mary Oliver - A Tartaruga

irrompe da pele arroxeada
da água, arrastando sua carapaça
com escamas musgosas
através das águas rasas, entre os juncos
e pelos lodaçais, para a elevação,
até a areia dourada,
para cavar, com suas patas desajeitadas,
um ninho, e ali se abaixar, expelindo
seus ovos brancos
na escuridão, e você pensa (...)
69. Juana Bignozzi - [agora que estou velha]

agora que estou velha
e és um senhor idoso
gostaria que recordasses apenas
das fotos das viagens
dos vestidos leves e floridos (...)
70. Raymond Carver - Luto

Acordei cedo esta manhã e da minha cama
olhei para longe através do Estreito e vi
um pequeno barco movendo-se na água agitada,
com uma única luz acesa. (...)
71. Sharon Olds - Tudo

A maioria de nós jamais foi concebida.
Muitos de nós nunca nascemos —
sobrevivemos em um mar solitário por horas,
semanas, com membros extras ou ausentes,
ou segurando nos braços nossa pobre segunda cabeça,
que brota de nosso peito. (...)
72. Mary Oliver - Hospital Universitário de Boston

As árvores no gramado do hospital
são frondosas e exuberantes. Elas também
recebem os melhores cuidados,
como você e os muitos anônimos,
nos quartos limpos acima desta cidade,
onde dia e noite os médicos continuam
chegando, onde máquinas intrincadas
registram com fria devoção
o sussurro do sangue,
o lento remendar dos ossos,
o desespero da mente. (...)
73. José Infante - Corpo Estranho

Como é lógico e natural que aconteça,
meu corpo vem mudando ao ritmo
implacável dos anos. Rugas, flacidez,
deterioração total por todos os lados, os olhos apagados
e sem brilho. E no olhar opaco nada
que anteveja o futuro. (...)
74. Sharon Olds - Tudo 

A maioria de nós jamais foi concebida.
Muitos de nós nunca nascemos —
sobrevivemos em um mar solitário por horas,
semanas, com membros extras ou ausentes,
ou segurando nos braços nossa pobre segunda cabeça,
que brota de nosso peito. (...)
75. Mary Oliver - Hospital Universitário de Boston

As árvores no gramado do hospital
são frondosas e exuberantes. Elas também
recebem os melhores cuidados,
como você e os muitos anônimos,
nos quartos limpos acima desta cidade,
onde dia e noite os médicos continuam
chegando, onde máquinas intrincadas
registram com fria devoção
o sussurro do sangue,
o lento remendar dos ossos,
o desespero da mente. (...)
76 - Sharon Olds - Depois de 37 anos...

Quando você se inclinou para mim, braços abertos,
como quem tenta atravessar uma fogueira,
quando você cambaleou em minha direção, gritando
que sentia muito pelo que havia feito comigo, seus
olhos se enchendo de um líquido terrível como
bolhas de mercúrio de um termômetro partido
deslizando pelo chão, quando você bradou baixinho
A quem mais eu poderia recorrer? Quem mais eu tinha? (...)
77. Mark Strand - Um fragmento da tempestade

Da sombra dos domos na cidade dos domos,
Um floco de neve, uma nevasca de um único floco, leve, adentrou seu quarto
E flutuou até braço da cadeira onde você, erguendo os olhos
Do livro que lia, o percebeu no instante em que pousou. (...)
78. Susan Browne - Estranha Ode

As árvores no gramado do hospital
são frondosas e exuberantes. Elas também
recebem os melhores cuidados,
como você e os muitos anônimos,
nos quartos limpos acima desta cidade,
onde dia e noite os médicos continuam
chegando, onde máquinas intrincadas
registram com fria devoção
o sussurro do sangue,
o lento remendar dos ossos,
o desespero da mente. (...)

Clique aqui, aqui e aqui e veja também as Retrospectivas dos anos de 2021, 2022 e 2023.

Allen Hoey – Ano Novo

Neve de novo. Às vezes uma rajada
faz girar os flocos que caem em linha reta.
Uma dúzia de pardais se faz
diminuta nos galhos nus da
Rosa-de-Saron, flores do ano passado
emaranhadas nas pontas dos ramos.
Que eu nunca me torne indiferente à perda.

Trad.: Nelson Santander

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New Year

Snow again. At times a gust
swirls the straightly falling flakes.
A dozen sparrows make themselves
small in the bare limbs of the
Rose-of-Sharon, last year’s blossoms
ragged clumps on the stem ends.
May I never harden to loss.

Retrospectiva 2023

E assim, mais um ano se foi. Veloz como um pássaro em voo, impulsionado pela velocidade dos eventos climáticos extremos. Mais um ano marcado pelo terror, destruição e pelas indignidades das guerras e massacres (e nisso a humanidade nunca falha: todo ano, a guerra – esse servidor público do extermínio – bate o ponto em 1º de janeiro e, sem tirar férias ou abonar faltas, segue trabalhando incessantemente). Ano das migrações climáticas e daquelas causadas pelas guerras civis, conflitos armados e pobreza extrema. Ano em que a concentração de riqueza nas mãos de poucos aumentou vertiginosamente, levando ao empobrecimento de nações inteiras.

Foi também o ano em que perdemos Botero, De Masi, Tonny Bennett, Zé Celso, Astrud Gilberto, Rita Lee, Boris Fausto, Juca Chaves, o cartunista Paulo Caruso, Gina Lollobrigida, e, mais perto do universo desta página, a grande Louise Glück.

Em meio a tanta desolação, um alívio: 2023 foi também o ano em que o Brasil se livrou de uma grande catástrofe, para dizer o mínimo. As sombras do recrudescimento do fascismo – que tem varrido o mundo nesses tempos incertos – ainda pairam sobre nós, é verdade, mas, por enquanto, estamos livres delas.

Não, não me permito crer em grandes mudanças para melhor a curto ou médio prazo. Quisera ter o otimismo da sempre perspicaz Dorianne Laux que um dia escreveu:

Se estamos fraturados,
assim o estamos
como estrelas
feitas para brilhar
em todas as direções,
por qualquer dimensão,
bilhões de anos
desde então.

Não lamentarei
o humano, ainda não.
Há algo mais
por vir, nossos corações
são como uma mina de ouro
inexplorada,
um mar desconhecido.

Nada se foi para sempre.
Se viemos do pó
e ao pó voltaremos,
então podemos descobrir o
caminho para qualquer coisa.

Ainda não se sabe
do que somos capazes,
por isso, agora mesmo, eu nos elogio
antecipadamente.

Dorianne Laux – De qualquer forma

Não é o meu caso. Mas, se é assim, sempre podemos nos abrigar no agora, no hoje, que, fundamentalmente, é tudo o que temos de concreto.

Portanto, carpe diem!

Vivamos o efêmero hoje, da melhor maneira possível, que do futuro nada sabemos.

A seguir, apresento a tradicional retrospectiva dos poemas e textos que, a meu critério, foram os mais significativos publicados na página ao longo de 2023. Espero que desfrutem desta seleção.

Desejo a todos um feliz 2024!

1. Juan Vicente Piqueras - Como Estás

Morri na última terça-feira e ninguém notou.

O mundo permaneceu o mesmo, mudando e imutável.
Não houve furacão, anúncio, tempestade
ou nuvens por entre as quais surgisse
aquele raio de luz que aparecia
nas capas dos catecismos. (...)
2. Don Peterson - Compaixão

Ela podia ter meses de sua vida canina,
mas para ser o quê? Ela estava leve como um ninho,
o dia todo sob suas longas orelhas
ouvindo em seu próprio peito um rádio em desalinho. (...)
3. Matthew Olzmann – Carta à pessoa que gravou suas iniciais no mais antigo pinheiro de folha longa da América do Norte

Diga-me como é viver sem
curiosidade, sem sentir admiração. Navegar
em águas cristalinas, desviando os olhos
dos recifes de algas que ondulam
abaixo de você, ignorando o cintilar
das escamas de sereias no nevoeiro,
olhando para o mundo e sentindo
apenas tédio. (...)
4. Judith Hemschemeyer - Naquele Verão

Naquele verão
depois que você se enforcou
sem perguntar
a ninguém que o amava
se eles podiam suportar

dei por mim arrastando mangueiras (...)
5. Dan Albergotti – Coisas para fazer no ventre da baleia

Meça as paredes. Conte as costelas. Registre os longos dias.
Olhe para o céu azul por entre os esguichos. Faça pequenas fogueiras
com os cascos partidos dos barcos de pesca. Pratique sinais de fumaça.
Ligue para os velhos amigos e escute os ecos de vozes distantes. (...)
6. Ursula K. Le Guin – Parentesco

Ardendo muito lentamente, a grande árvore da floresta
se ergue da sutil cavidade de neve
derretida ao seu redor pelo brando e duradouro
calor de seu ser e de sua vontade de ser
raiz, tronco, ramo, folha, (...)
7. Ruth Lepson – No dia da audiência do nosso divórcio

você me convidou para almoçar em uma cantina.
Nunca tínhamos sido tão gentis um com o outro.
Quando você disse que eu ainda era uma desleixada, nós rimos.
Depois do almoço, ficamos no estacionamento. (...)
8. Linda Pastan – A filha

Gostaria de ter tido outra chance
com o meu pai, desempenhado
um papel diferente
no drama da minha infância. (...)
9. Czesław Miłosz – Café

Daqueles que se encontravam à mesa do café
onde, no meio-dia de inverno, um jardim de gelo reluzia nas vidraças,
só eu sobrevivi.
Eu poderia entrar ali se quisesse
e, tamborilando meus dedos em um frio vazio,
convocar as sombras. (...)
10. Mary Oliver – Garças

Onde o caminho
se encerrava,
por entre folhas matizadas,
galhos caídos,
através de nodosas salsaparrilhas,
eu continuei. Por fim,
não pude
salvar meus braços
dos espinhos; (...)
11. Czesław Miłosz – Uma vida afortunada

Sua velhice coincidiu com os anos de colheita abundante.
Não houve terremotos, secas ou inundações.
Dir-se-ia que a mudança das estações ganhava em regularidade,
As estrelas se fortaleciam e o sol aumentava seu poder.
Mesmo em províncias remotas nenhuma guerra foi travada. (...)
12. Adam Zagajewski – Um breve poema

Eu ouvia cânticos gregorianos
num carro em alta velocidade
em uma rodovia na França.
As árvores passavam velozes. As vozes dos monges
entoavam preces a um deus invisível
(ao amanhecer de uma capela tremendo de frio). (...)
13. Thom Gunn – Natureza morta

Não esquecerei tão cedo
A pele amarelo-acinzentada
À qual o rosto se havia fixado:
Pálpebras apertadas: nada dele,
Nenhum tremor interior,
Brincava na superfície.
Ele ainda respirava, e contudo
Esta era uma obscura habilidade. (...)
14. David Wagoner – Perdido

Permanece imóvel. As árvores à frente e os arbustos ao teu lado
Não estão perdidos. Onde quer que estejas é chamado de Aqui,
E deves tratá-lo como um poderoso estranho,
Pedir permissão para conhece-lo e ser conhecido. (...)
15. Brad Aaron Modlin – O que você perdeu no dia em que não foi à aula

A Sra. Nelson explicou como ficar imóvel e ouvir
o vento, como encontrar sentido em encher o tanque,

como descascar batatas pode ser uma forma de oração. Ela respondeu
a perguntas sobre como não se sentir perdido no escuro. (...)
16. Danusha Laméris – Nada quer sofrer

Nada quer sofrer. Nem o vento
que arranha contra a encosta. Nem o penhasco

sendo devorado, lentamente, pelo mar. A terra não quer
sofrer o pisoteio bruto de quem a ignora.

As árvores não querem sofrer o machado, nem ver
suas irmãs derrubadas pela podridão, pelo mofo e oxidação de suas raízes. (...)
17. Eugenio Montale – O lago de Annecy

Não sei por que minhas memórias te relacionam
ao lago de Annecy
que visitei alguns anos antes de tua morte.
Mas na época eu não pensava em ti, era jovem
e julgava ser o senhor do meu destino. (...)
18. Alex Dimitrov – Os anos

Todas as festas que você frequentou
observando o salão
de uma sacada
onde alguém se juntou a você
para fumar e depois voltou. (...)
19. Rosanna Warren – Lago

Você estava com água até as coxas e a luz verde refletia
nas cavidades dos seus quadris e no estômago, que é onde a chama piloto
ardia nas antigas estátuas de Dionísio,
e por um momento, enquanto você caminhava mais em direção ao fundo, parecia que
aquela água poderia lavar o peso
de suas próprias estações e de doenças que não eram as suas: (...)
20. Paulo Henriques Britto – de “Oito sonetos entrópicos”

Deixar de ser é coisa natural,
como é natural ser. Pensando bem
(ou só pensando, seja bem ou mal),
o que haverá de natural, porém,
em ser o que se é, e não ser, apenas? (...)
21. Peter Sirr – Uma cartilha saxônica

Penso então em Borges ficando cego,
e no que ele disse sobre a alma.
Ele tentava entender por que
um homem que perde o mundo
busca espadas e monstros
e saxões com vozes rudes no Salão de Hidromel. (...)
22. Ted Kooser – Fazenda Abandonada

Ele era um homem grande, diz o tamanho
dos seus sapatos sobre uma pilha de pratos quebrados junto à casa;
um homem alto também, diz o comprimento da cama
no quarto do andar de cima; e um homem bom e temente a Deus,
diz a Bíblia com a contracapa arruinada
no chão abaixo da janela, empoeirada de sol;
mas não um fazendeiro, dizem os campos
cobertos por pedregulhos e o celeiro com goteiras. (...)
23. Charlotte Mew – Quartos

Lembro-me de quartos que tiveram relação
Com o constante esgotamento do coração.
O quarto em Paris, o quarto em Genebra,
O quarto pequeno e úmido com cheiro de algas
E aquele som da maré, enlouquecedor e perenal —
Quartos onde as coisas morriam — para o bem ou para o mal. (...)
24. Ada Limón – A rebitadora

O que eu não disse
quando ela me perguntou
por que eu sabia tanto
sobre morrer foi que,
para mim, aquilo era uma tarefa.
Quando papai ligou para dizer
que tínhamos um mês, eu fiz uma lista. (...)
25. Jack Gilbert – Poemas e Elegias para Michiko Nogami

As traduções que fiz da série de poemas e elegias que Jack Gilbert escreveu em homenagem à sua falecida esposa, Michiko Nogami. Uma nota introdutória sobre o poeta, sua esposa e os poemas/elegias acompanha o primeiro poema da série - "I - Noites e manhãs sem fim"
26. Zbigniew Herbert – Uma vida

Eu era um rapaz sossegado, um tanto sonolento e — surpreendentemente —
ao contrário dos meus colegas — que ansiavam por aventuras —
não nutria grandes expectativas — não costumava olhar pela janela
Na escola, era mais diligente do que competente — dócil e estável (...)
27. Gwen Harwood – No parque

Ela se senta no parque. São antiquados os seus trajes.
Duas crianças choram e brigam, puxam-lhe o babado.
Uma outra traça padrões ao acaso no gramado
Alguém que há muito tempo ela amou passa – tarde (...)
28. W. S. Merwin – Para o aniversário da minha morte

Todo ano, sem perceber, passo pelo dia
Em que as últimas chamas acenarão para mim
E o silêncio colocar-se-á a caminho
Infatigável viajante
Como os feixes de uma estrela sem luz (...)
29. Hayden Carruth – Ensaio

(...) Eles estão partindo – seus pelos e seus olhos selvagens,
suas vozes. Cervos saltam e saltam na frente
de estridentes snowmobiles até saltarem para
fora da existência. Falcões circulam uma ou duas vezes
acima de seus ninhos destruídos e depois sobem
até as estrelas. (...)
30. Ada Limón – O real motivo

Eu não tenho nenhuma tatuagem, elas não fazem parte da minha história, e sim da história
de minha mãe. Certa vez, caminhando pela Bedford Avenue quando tinha vinte e poucos anos,

liguei para ela como costumava fazer, como faço. E disse-lhe que queria uma
tatuagem na nuca. Algo discreto, mas permanente,

e como ela é uma artista, eu queria que ela fizesse a arte, um símbolo —
um peixe com o qual eu sonhava todas as noites. (...)
31. Patrizia Cavalli – Agora que

Agora que o tempo parece ser todo meu
e ninguém me chama para almoçar ou jantar,
agora que posso ficar observando
como uma nuvem desbota e se desfaz,
como um gato atravessa o telhado
no imenso luxo de uma aventura, (...)
32. Yusef Komunyakaa – Ode à Larva

Irmã da mosca-varejeira
& da divindade, você faz mágica
Nos campos de batalha,
Em pedaços de carne suína estragada

& em lugares sujos. Sim, você
Chega à raiz de todas as coisas.
Você é sólida & matemática. (...)
33. Filodemo de Gádara – Estação da Rosa Silvestre

É a estação da rosa silvestre e da hortelã, Sosylos,
a estação do grão-de-bico e dos primeiros cortes dos brotos,
dos lambaris e dos queijos salgados, da alface-crespa
em cujas novas folhas a luz transfunde
um brilho quase esquecido. Ainda assim,
reparaste como neste ano algo mudou? (...)
34. James Tate – A promoção

Eu já fui um cachorro em minha vida passada, um cachorro
muito bom, e, por isso, fui promovido a ser humano.
Eu gostava de ser um cachorro. Trabalhava para um fazendeiro pobre,
protegendo e pastoreando suas ovelhas. Lobos e coiotes
tentavam passar por mim todas as noites, mas eu
nunca perdia uma ovelha. (...)
35. Thom Gunn – O atiçador

Quarenta e oito anos atrás —
Já se passaram mesmo quarenta e oito anos
Desde então?— eles forçaram a porta
Que ela havia barricado
Com o peso de uma escrivaninha inteira
Para que ninguém descobrisse, como eles descobriram,
o que ela havia bloqueado. (...)
36. David Wagoner – O silêncio das estrelas

Certa noite, no deserto de Kalahari, quando
Laurens van der Post1 disse aos bosquímanos
Que não conseguia ouvir as estrelas
Cantando, eles não acreditaram. Eles o olharam,
Meio sorridentes. Examinaram seu rosto
Para ver se ele não estava brincando
Ou enganando-os. (...)
37. Hala Alyan – Spoiler

(...) A água devora seu trabalho como uma revoada de pássaros selvagens. Há destroços.
Um farrapo de algas marinhas e sangue onde você arranhou seu braço
tentando resistir à correnteza. Pode demorar muito tempo para acontecer,
mas um dia enfim você deslizará novamente os dedos pela areia, colherá um punhado dela
e espalhará sobre um novo chão. (...)
38. Galway Kinnell – Shelley

Quando eu tinha vinte anos, o único espírito
verdadeiramente livre de quem tinha ouvido falar era Shelley,
Shelley, que escreveu tratados defendendo
o ateísmo, o amor livre, a emancipação
feminina, a abolição da riqueza e das classes sociais,
e poemas sobre a felicidade do amor romântico, (...)
39. Li-Young Lee – Comendo sozinho

Colhi as últimas cebolas frescas do ano.
O jardim está limpo agora. O solo está frio,
gasto e pardacento. O que resta do dia
arde nos bordos, nas bordas dos meus
olhos. Eu me viro, um cardeal desaparece.
Junto à porta da adega, lavo as cebolas,
depois bebo da gelada torneira de metal. (...)
40. Sharon Olds – Minha mão

Quando olho para a minha mão, e para o dorso do meu pulso,
brilhando com o petrolato que
esfreguei em suas fissuras — óleo mineral,
ceresina, lanolina, pantenol, glicerina,
bisabolol, vejo as rugas
finas, muitas formando losangos,
algumas delas longas cicatrizes vacilantes —
isso me parece comovente e afortunado. (...)
41. Lucille Clifton – Dois poemas

adão pensando

ela
roubou meu osso
não é de admirar
que eu anseie cavar de volta
para dentro desesperado
para reconectar costela e argila
e ser inteiro outra vez (...)
42. Philip Schultz – Fracasso

Para pagar o funeral do meu pai,
pedi dinheiro emprestado a pessoas
a quem ele já devia dinheiro.
Um deles o chamou de zé-ninguém.
Não, eu disse, ele era um fracassado.
Ninguém se lembra o nome
de um zé-ninguém, é por isso que
eles são chamados de zés-ninguém. (...)
43. Otto D’Sola – Plenitude

Da formiga à estrela mais alta, fomos capazes de tecer uma longa história que nunca acabará;
da rocha aos pinhais,
dos pântanos ao berço de um tênue vento recém-nascido, fomos capazes de dar ao solo duro e seco a alegria de contemplar uma estrela e uma flor aberta. (...)
44. Ann Fischer-Wirth – Milagre de um coração sagrado e três folhas de faia, cada uma machada de verde e carmesim

Agora, as traças comeram seu triste dicionário.
Uma vez, você esteve atrás do balcão,

laços em seus cabelos, medindo e cortando tecidos
para as damas rechonchudas. E agora uma pilha de Kleenex

sobe pelo seu cotovelo enquanto você lida com sua rinite.
Você se tornou uma caixa de sobras, cabelos ralos

e sem viço, unhas azuis de cianose. (...)
45. Stanley Kunitz – Cometa de Halley

A srta. Murphy, da primeira série,
escreveu o nome dele no quadro negro
com giz e nos contou que ele
viajava rugindo pelas trajetórias de tempestades
da Via Láctea a uma velocidade aterrorizante,
e que se ele desviasse do seu curso
e colidisse com a terra
não haveria aula no dia seguinte. (...)
46. Matthew Rohrer – Não há absolutamente nada mais solitário

Não há absolutamente nada mais solitário
do que o pequeno Mars Rover,
sempre em funcionamento, escavando
rochas, tão longe da Bond street
sob a chuva suave. (...)
47. Ada Limón – Notas sobre o Subterrâneo

Colossal caverna, diga-me, úmido calcário, rocha de arenito,
asa de morcego, cego e translúcido camarão-das-cavernas,

esta queda livre para além do desconhecido,
como se guardam segredos por tanto tempo? (...)
48. Diane Seuss – [Todas as coisas agora me lembram]

Todas as coisas agora me lembram de como o amor costumava ser. Taboas dilatadas em lugares
solitários. Condicionador viscoso em meus cabelos. Sólidos livros. Suas variegadas lombadas. (...)
49. James Tate – A volta para casa

Eu disse ao médico que nunca mais o veria. “Não, acho
que não”, ele disse. Saí pela porta me sentindo realmente bem.
Claro, eu sabia que ia morrer, mas ainda assim o dia parecia claro
para mim. Caminhei até o lago. Patos circulavam ao redor por ali. (...)
50. A. E. Stallings – Lógica de conto de fadas

Os contos de fadas estão repletos de tarefas irreais:
Juntar os pelos do queixo de uma cabra que os homens devora,
Ou cruzar um lago sulfúrico em uma danificada igara,
Escolher o príncipe de uma fila de máscaras iguais, (...)
51. Dennis Trudell – Conto de Feriado

Uma mulher nunca contou ao marido
ou a qualquer pessoa sobre o bilhete de amor
que recebera há trinta anos. Não havia
assinatura, e depois de tentar adivinhar inúmeras
vezes quem na cidade o enviara, ela
há muito aceitara que nunca o saberia. (...)
52. Jeffrey McDaniel – O mundo silencioso

Na tentativa de fazer as pessoas olharem
mais nos olhos umas das outras,
e também para apaziguar os mudos,
o governo decidiu atribuir
a cada pessoa exatamente cento
e sessenta e sete palavras por dia. (...)
53. Emily Bryant Voigt – A cúspide

Tão poucos pássaros — os que passam o inverno
e os gansos migrando pelos campos vazios,
atravessando as hastes retorcidas de milho cortado:
ao nosso redor, tudo o que é verde é suprimido,
e na melancólica floresta, as árvores nuas,
despidas de folhas ou quase sem elas,
formam uma morada sombria entre nuvens baixas
que têm o aspecto de neve obstinada. (...)
54. Sharon Olds – Destino

Finalmente desisti e me tornei meu pai,
sua face oleosa e abatida, brilhando para
qualquer pessoa que eu olhasse, seus olhos castanhos-lodo
em meu rosto, cintilando como chão molhado em que
as coisas que amamos caíram,
e se perderam para sempre. (...)
55. Lisel Mueller – Isso é o que você fará

O que você fez quando a geleira
cobriu sua boca com gelo
     quando suas escamas se desprenderam
e foram deixadas no chão para se deteriorar
     quando você parou de trilhar as águas
e começou a respirar o ar? (...)
56. Bob Hicok – Alzheimer

As cadeiras se movem sozinhas, assim como os livros.
Os netos vêm visitá-la, são
jovens e sem nomes, peças ausentes nos quebra-cabeças
de seus rostos. Ela é como um peixe

no oceano profundo, seu corpo é feito de luz. (...)
57. Ada Limón - Em um poste de luz, há muito tempo

Não sei por onde começar
na lista
de todas as coisas que estão desaparecendo: peixes, pássaros, árvores,
flores, abelhas,
e também idiomas. Dizem que, se as taxas históricas forem
calculadas,
um idioma morrerá a cada quatro meses. (...)
58. Jaime Manrique – O céu sobre a casa de minha mãe

É uma noite de julho
perfumada com gardênias.
Brilham a lua e as estrelas
sem revelar a essência da noite.
Ao longo do crepúsculo
— com suas gradações cada vez mais intensas de ônix,
e o resplendor dourado das estrelas e das sombras —
minha mãe arrumou a casa, o jardim, a cozinha. (...)
59. Philip Larkin – A casa está tão triste

A casa está tão triste. Ficou como foi deixada,
Moldada para o conforto dos últimos saintes
Querendo reconquista-los. Ao invés, despojada
De alguém para agradar, ela definha assim, carente
De um coração para esquecer que foi roubada (...)
60. Eavan Boland – Atlântida – Um soneto perdido

Como diabos aconteceu, eu costumava me perguntar,
de uma cidade inteira – arcos, pilares, colunatas,
isso sem falar nos veículos e animais – ter-se,
um belo dia, afundado? (...)

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Fernando Sabino – Certeza

Fernando Sabino – Certeza

De tudo, ficaram três coisas:
A certeza de que estamos sempre começando.
A certeza de que precisamos continuar.
A certeza de que seremos
interrompidos antes de terminar.
Portanto devemos:
Fazer da interrupção um caminho novo.
Da queda um passo de dança.
Do medo, uma escada.
Do sonho, uma ponte.
Da procura, um encontro.

_________________________________________

A vida…

A vida é um eterno recomeçar, até que não seja mais.

Foi-se 2022, com todo o seu aparato de sustos e alegrias, desafios e superações, terror e gozo; começa 2023, com seu bafejo de esperanças, sonhos e desejos. Ainda estamos, eu e você que me lê, nesse transatlântico do tempo – uns na amurada, outros no salão de jogos, alguns no convés, outros nos porões. Mas o certo é que

Estamos todos aqui / No meio desta vida / Vinda antes de nós – (“Jovens e Velhos“, Arnaldo Antunes).

Veja: não importa onde, mas sim quando. E quando é agora. Não importa o que você fez, mas o que fará daqui pra frente. Não importam as conclusões, mas os recomeços.

Que o seu 2023 seja o início da melhor fase de sua vida. Mas se não der, não tem problema: fica pra 2024. Ou 2025. Talvez 2026…

Feliz ano novo! E boa sorte para todos nós.

Nelson Santander

Javier Salvago – Ano Novo

Como as coisas não podiam
ficar pior
– escreveu Kafka,
em seu Diário – melhoraram.

Como eu gostaria, ante este negro
e inóspito horizonte que se abre,
diante de mim – como mais um ano,
ou como menos um ano -,
de poder dizer o mesmo.
Mas sinto
que ainda não cheguei ao fundo,
que há mais miséria, mais dor, mais tédio
mais adiante, que as coisas
podem piorar.
Que o pior, por assim dizer,
ainda está por vir.

Trad.: Nelson Santander

Javier Salvago – Año Nuevo

Como las cosas no podían
ir a peor
— escribió Kafka,
en su Diario —, mejoraron.

Cómo me gustaría, ante este negro
e inhóspito horizonte que se abre,
ante mí — como un año más,
o como un año menos —,
poder decir lo mismo.
Pero siento
que no he tocado fondo,
que hay más miseria, más dolor, más tedio
más adelante, que las cosas
pueden empeorar.
Que lo peor, como quien dice,
aún está por llegar.

Nota do tradutor: 1º de janeiro de 2019: o dia em que Jair Messias Bolsonaro tomou posse como o 38º Presidente da República Federativa do Brasil. Ano novo?

Amalia Bautista – Façamos uma limpeza geral

Façamos uma limpeza geral,
vamos deitar fora todas as coisas
que não nos servem para nada, essas
coisas que já não usamos, as que
não prestam senão para ganhar pó,
e em que tentamos nem reparar porque
nos trazem as lembranças mais amargas,
coisas que magoam, que ocupam espaço
e nunca quisemos perto de nós.
Façamos uma limpeza geral,
ou melhor ainda, uma mudança,
deixando para trás todas as coisas
sem lhes tocarmos, sem nos sujarmos,
deixemo-las onde sempre estiveram,
vamo-nos nós embora, vida minha,
e recomecemos a acumular.
Ou vamos deitar fogo a tudo isto,
vamos ficar em paz com essa imagem
das brasas do mundo perante os olhos
e com o coração desabitado.

Trad.: Soledade Santos

Vamos a Hacer Limpieza General

Vamos a hacer limpieza general
y vamos a tirar todas las cosas
que no nos sirven para nada, esas
cosas que ya no utilizamos, esas
otras que no hacen más que coger polvo,
las que evitamos encontrarnos porque
nos traen los recuerdos más amargos,
las que nos hacen daño, ocupan sitio
o no quisimos nunca tener cerca.
Vamos a hacer limpieza general
o, mejor todavía, una mudanza
que nos permita abandonar las cosas
sin tocarlas siquiera, sin mancharnos,
dejándolas donde han estado siempre;
vamos a irnos nosotros, vida mía,
para empezar a acumular de nuevo.
O vamos a prenderle fuego a todo
y a quedarnos en paz, con esa imagen
de las brasas del mundo ante los ojos
y con el corazón deshabitado.

Carlos Drummond de Andrade – Receita de Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Laura Liuzzi – Fio Sem Fim

Chega-se, enfim, à última página
embora deixe claro: não se chega
ao fim. Um mesmo fio fino frágil
mas firme, da mesma fibra de rio
conduz memória e história: storage
— está estendido para sempre
e para sempre soará, suará
a cada renovação do sol, mesmo
quando atingirmos o final —
mesmo assim não se chegará
ao fim.

Alice Ruiz

último dia
ainda parece novo
o ano que passou