Czesław Miłosz – Uma vida afortunada

Sua velhice coincidiu com os anos de colheita abundante.
Não houve terremotos, secas ou inundações.
Dir-se-ia que a mudança das estações ganhava em regularidade,
As estrelas se fortaleciam e o sol aumentava seu poder.
Mesmo em províncias remotas nenhuma guerra foi travada.
Gerações cresceram amistosas para com seus semelhantes.
A natureza racional do homem não era motivo de escárnio.

Foi amargo dizer adeus a um planeta tão renovado.
Ele tinha inveja e se envergonhava de todas as suas dúvidas,
Satisfeito que sua dilacerada memória desaparecesse com ele.
Dois dias depois de sua morte um furacão arrasou os litorais.
Fumaças surgiram de vulcões inativos há cem anos.
A lava se espalhou por florestas, vinhedos e cidades.
E a guerra começou com uma batalha nas ilhas.

Trad.: Nelson Santander a partir de uma versão em inglês do poema traduzida do polonês por Peter Dale Scott & Czeslaw Milosz

A Felicitous Life

His old age fell on years of abundant harvest.
There were no earthquakes, droughts, or floods.
It seemed as if the turning of the seasons gained in constancy,
Stars waxed strong and the sun increased its might.
Even in remote provinces no war was waged.
Generations grew up friendly to fellow men.
The rational nature of man was not a subject of derision.

It was bitter to say farewell to the earth so renewed.
He was envious and ashamed of his doubt,
Content that his lacerated memory would vanish with him.
Two days after his death a hurricane razed the coasts.
Smoke came from volcanoes inactive for a hundred years.
Lava spread over forests, vineyards, and towns.
And war began with a battle on the islands.

Czesław Miłosz – Café

Daqueles que se encontravam à mesa do café
onde, no meio-dia de inverno, um jardim de gelo reluzia nas vidraças,
só eu sobrevivi.
Eu poderia entrar ali se quisesse
e, tamborilando meus dedos em um frio vazio,
convocar as sombras.

Com incredulidade, toco o mármore frio,
com incredulidade, toco minha própria mão.
Isto – é, e eu – estou em cada novo devir,
enquanto eles estão presos para todo o sempre
em suas últimas palavras, seus últimos olhares,
e tão remotos quanto o Imperador Valentiniano
ou os chefes dos Masságetas, sobre os quais nada sei,
embora mal tenha passado um ano, ou dois. Ou três.

Ainda posso derrubar árvores nas florestas do extremo norte,
posso palestrar de uma plataforma ou rodar um filme
usando técnicas das quais eles nunca ouviram falar.
Posso descobrir o sabor das frutas das ilhas oceânicas
e ser fotografado em trajes da segunda metade do século.
Mas eles são para sempre como bustos em sobrecasacas e jabôs em alguma monstruosa enciclopédia.

Às vezes, quando a aurora da tarde pinta os telhados de uma rua miserável
e eu contemplo o céu, vejo nas nuvens brancas
uma mesa tremulando. O garçom rodopia com sua bandeja
e eles olham para mim com uma explosão de risos,
pois eu ainda não sei o que é morrer pelas mãos de um homem,
eles sabem – eles o sabem muito bem.

Trad.: Nelson Santander

Cafe

Of those at the table in the cafe
where on winter noons a garden of frost glittered on windowpanes
I alone survived.
I could go in there if I wanted to
and drumming my fingers in a chilly void
convoke shadows.

With disbelief I touch the cold marble,
with disbelief I touch my own hand.
It – is, and I – am in ever novel becoming,
while they are locked forever and ever
in their last word, their last glance,
and as remote as Emperor Valentinian
or the chiefs of the Massagetes, about whom I know nothing,
though hardly one year has passed, or two or three.

I may still cut trees in the woods of the far north,
I may speak from a platform or shoot a film
using techniques they never heard of.
I may learn the taste of fruits from ocean islands
and be photographed in attire from the second half of the century.
But they are forever like busts in frock coats and jabots in some monstrous encyclopedia.

Sometimes when the evening aurora paints the roofs in a poor street
and I contemplate the sky, I see in the white clouds
a table wobbling. The waiter whirls with his tray
and they look at me with a burst of laughter
for I still don’t know what it is to die at the hand of man,
they know – they know it well.


                              Polish; trans. Czeslaw Milosz

Czesław Miłosz – Encontro

Ao amanhecer, cruzávamos os campos congelados em uma carroça.
Uma asa vermelha se ergueu da escuridão.

E subitamente uma lebre atravessou a estrada.
Um de nós apontou para ela com a mão.

Isso foi há muito tempo. Hoje, nenhum deles vive,
Nem a lebre, nem o homem que fez o gesto.

Oh, meu amor, onde estão, para onde vão?
O clarão daquela mão, vestígio de movimento, rumorejar de cascalhos.
Pergunto não por tristeza, mas com admiração.

Wilno, 1936

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: poema originalmente escrito em polonês e traduzido para o inglês pelo próprio autor e Lillian Vallee.

Encounter

We were riding through frozen fields in a wagon at dawn.
A red wing rose in the darkness.

And suddenly a hare ran across the road.
One of us pointed to it with his hand.

That was long ago. Today neither of them is alive,
Not the hare, nor the man who made the gesture.

O my love, where are they, where are they going?
The flash of a hand, streak of movement, rustle of pebbles.
I ask not out of sorrow, but in wonder.

Wilno, 1936

Czesław Miłosz – Dádiva

Um dia tão feliz.
O nevoeiro cedo dissipou-se, e eu trabalhei no jardim.
Os Beija-Flores se detinham sobre as flores de madressilva.
Não havia nada na terra que eu quisesse possuir.
Eu não conhecia ninguém que valesse a pena invejar.
Qualquer mal que eu tivesse sofrido, esqueci.
Pensar que uma vez eu fui o mesmo homem não me envergonhava.
Em meu corpo eu não sentia dor.
Ao endireitar-me, vi o mar azul e as velas.

Trad.: Nelson Santander

Gift

A day so happy.
Fog lifted early, I worked in the garden.
Hummingbirds were stopping over honeysuckle flowers.
There was no thing on earth I wanted to possess.
I knew no one worth my envying him.
Whatever evil I had suffered, I forgot.
To think that once I was the same man did not embarrass me.
In my body I felt no pain.
When straightening up, I saw the blue sea and sails.

Czesław Miłosz – Elegia para N. N.

Diga-me se é muito longe para você.
Você poderia vir sobre as ondas mansas do Báltico
passando pelos campos da Dinamarca, atravessando um bosque de faias,
poderia se voltar para o oceano, e de lá, logo estaria em
Labrador, branca nesta época do ano.
E se você, que sonhava com uma ilha deserta,
tivesse medo das cidades e das luzes piscando ao longo da rodovia,
poderia pegar o caminho direto através do deserto
sobre águas azuis-escuras de degelo, entre as pegadas de cervos e caribus,
até Sierra e as minas de ouro abandonadas.
O rio Sacramento poderia te-la conduzido
entre colinas cobertas de carvalhos espinhosos.
Então, apenas um bosque de eucaliptos, e você me encontraria.

É verdade, quando a manzanita está em flor,
e a baía, clara nas manhãs de primavera,
eu penso com relutância na casa entre os lagos
e nas redes esticadas sob o céu lituano.
A cabine de banho onde você costumava deixar seu vestido
se transformou para sempre em um cristal abstrato.
A escuridão rescendendo a mel está lá, perto da varanda,
e as cômicas corujinhas, e o cheiro de couro.

Como se podia viver naquela época, eu realmente não posso dizer.
Estilos e vestidos oscilam, indistintos,
não autossuficientes, tendendo a um final.
Faz diferença que ansiemos pelas coisas tal como elas eram?
O conhecimento dos anos de fogo chamuscou os cavalos ao lado da caldeiraria,
as esquálidas colunas no mercado,
as escadas de madeira e a peruca de Mama Fliegeltaub.

Nós aprendemos tanto, você bem o sabe:
como, aos poucos, se nos arrebatam o que não podia
ser levado. Pessoas, paisagens.
E que o coração não morre quando achamos que deveria,
nós sorrimos, há chá e pão sobre a mesa.
E que é só remorso por não termos amado
as pobres cinzas de Sachsenhausen
com amor absoluto, além das nossas forças.

Você se habituou a novos e chuvosos invernos,
a uma vila onde o sangue do proprietário alemão
foi lavado das paredes às quais ele nunca mais voltou.
Eu também aceitei, mas o que foi possível, cidades e países.
Não se pode entrar duas vezes no mesmo lago
pisando em folhas apodrecidas de amieiro,
interrompendo uma estreita faixa de sol.

Culpa, sua e minha? Não uma grande culpa.
Segredos, seus e meus? Não grandes segredos.
Não quando nos amarram a mandíbula com um lenço, colocam uma pequena cruz entre os dedos,
e um cão ladra em algum lugar, e irrompe a primeira estrela.

Não, não foi por causa da distância que
você deixou de me visitar naquele dia ou noite.
Ano após ano ela cresce até se apoderar de nós,
eu o entendi, assim como você: indiferença.

Berkeley, 1963

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: o poema foi originalmente escrito em polonês. Minha tradução parte de uma versão em inglês, vertida para aquela língua pelo próprio Czesław Miłosz e Lawrence Davis.

Elegy for N. N.

Tell me if it is too far for you.
You could have run over the small waves of the Baltic
and past the fields of Denmark, past a beech wood
could have turned toward the ocean, and there, very soon
Labrador, white at this season.
And if you, who dreamed about a lonely island,
were frightened of cities and of lights flashing along the highway
you had a path straight through the wilderness
over blue-black, melting waters, with tracks of deer and caribou
as far as the Sierras and abandoned gold mines.
The Sacramento River could have led you
between hills overgrown with prickly oaks.
Then just a eucalyptus grove, and you had found me.

True, when the manzanita is in bloom
and the bay is clear on spring mornings
I think reluctantly of the house between the lakes
and of nets drawn in beneath the Lithuanian sky.
The bath cabin where you used to leave your dress
has changed forever into an abstract crystal.
Honey-like darkness is there, near the veranda,
and comic young owls, and the scent of leather.

How could one live at that time, I really can’t say.
Styles and dresses flicker, indistinct,
not self-sufficient, tending toward a finale.
Does it matter that we long for things as they are in themselves?
The knowledge of fiery years has scorched the horses standing at the forge,
the little columns in the marketplace,
the wooden stairs and the wig of Mama Fliegeltaub.

We learned so much, this you know well:
how, gradually, what could not be taken away
is taken. People, countrysides.
And the heart does not die when one thinks it should,
we smile, there is tea and bread on the table.
And only remorse that we did not love
the poor ashes in Sachsenhausen
with absolute love, beyond human power.

You got used to new, wet winters,
to a villa where the blood of the German owner
was washed from the wall, and he never returned.
I too accepted but what was possible, cities and countries.
One cannot step twice into the same lake
on rotting alder leaves,
breaking a narrow sun-streak.

Guilt, yours and mine? Not a great guilt.
Secrets, yours and mine? Not great secrets.
Not when they bind the jaw with a kerchief, put a little cross between the fingers,
and somewhere a dog barks, and the first star flares up.
No, it was not because it was too far
you failed to visit me that day or night.
From year to year it grows in us until it takes hold,
I understood it as you did: indifference.

Berkeley, 1963
Translated by Czesław Miłosz and Lawrence Davis

Czeslaw Milosz – Sobre anjos

Tudo foi tirado de vocês: túnica branca,
asas, até mesmo a existência.
Contudo, ainda acredito em vocês,
mensageiros.

Aqui, onde o mundo está virado do avesso,
uma trama maciça bordada com astros e bestas,
vocês passeiam, inspecionando as suturas confiáveis.

Curta é sua estadia neste lugar:
às vezes na hora matinal, se o céu está claro,
na melodia repetida por um pássaro,
ou no cheiro das maçãs no fim do dia
quando as luzes fazem dos pomares lugares mágicos.

Dizem que alguém os concebeu,
mas para mim isso não parece convincente,
pois os humanos também foram concebidos.

A voz – sem dúvida é uma prova válida,
pois só pode pertencer a criaturas radiantes,
sem peso e aladas (afinal, por que não?),
cingidas pelo raio.

Eu ouvi aquela voz várias vezes quando dormia
e, o que é estranho, percebi mais ou menos
uma ordem ou um apelo em uma língua sobrenatural:

o dia se aproxima
mais um
faça o que puder.

Trad.: Nelson Santander

On angels

All was taken away from you: white dresses,
wings, even existence.
Yet I believe in you,
messengers.

There, where the world is turned inside out,
a heavy fabric embroidered with stars and beasts,
you stroll, inspecting the trustworthy seams.

Short is your stay here:
now and then at a matinal hour, if the sky is clear,
in a melody repeated by a bird,
or in the smell of apples at close of day
when the light makes the orchards magic.

They say somebody has invented you
but to me this does not sound convincing
for the humans invented themselves as well.

The voice — no doubt it is a valid proof,
as it can belong only to radiant creatures,
weightless and winged (after all, why not?),
girdled with the lightening.

I have heard that voice many a time when asleep
and, what is strange, I understood more or less
an order or an appeal in an unearthly tongue:

day draw near
another one
do what you can.

Czeslaw Milosz – Onde quer que esteja

Onde quer que esteja, em qualquer lugar
na Terra, escondo dos outros a certeza de
que n ã o s o u d a q u i.
Como se tivesse sido enviado para absorver
o máximo das cores, sons, cheiros, sabores,
provar de tudo o que é
reservado ao Homem, converter o vivido
num registo mágico e levá-lo para lá, de onde
parti.

Trad.: Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves

Czeslaw Milosz – A queda

A morte de um homem é como a queda de uma poderosa nação
Que teve valentes exércitos, capitães e profetas,
E ricos portos e barcos em todos os mares,
Mas agora não socorrerá nenhuma cidade sitiada,
Não entrará em nenhuma aliança,

Porque suas cidades estão vazias, sua população dispersa,
Sua terra que certa vez proveu de colheitas está saturada de cardos,
Sua missão olvidada, sua língua perdida,
O dialeto de um povo posto sobre inacessíveis montanhas.

Trad.: Pedro Gonzaga

Upadek

Śmierć człowieka jest jak upadek państwa potężnego,
Które miało bitne armie, wodzów i proroków,
I porty bogate, i na wszystkich morzach okręty,
A teraz nie przyjdzie nikomu z pomocą, z nikim nie zawrze przymierzy,

Bo miasta jego puste, ludność w rozproszeniu,
Oset porósł jego ziemie kiedyś dającą urodzaj,
Jego powołanie zapomniane, język utracony,
Dialekt wioski gdzieś daleko w niedostępnych górach.

Czesław Miłosz – Uma descrição honesta de mim mesmo com um copo de whisky num aeroporto, digamos, em Minneapolis

Meus ouvidos captam cada vez menos as conversas, meus olhos vêm se tornando fracos, embora sigam insaciáveis.

Vejo suas pernas em minissaias, em calças compridas, em tecidos ondulantes,

Observo uma a uma, separadamente, suas bundas e coxas, acalentado por sonhos pornô.

Velho depravado, é chegada a hora da cova, não dos jogos e folguedos da juventude.

Mas eu faço o que sempre fiz: componho cenas dessa terra sob as ordens da imaginação erótica.

Não é que eu deseje estas criaturas em particular, desejo tudo, e elas são como um signo de uma união extática.

Não é minha culpa se somos feitos assim, metade contemplação desinteressada, metade apetite.

Se um dia eu puder subir aos Céus, lá haverá de ser como aqui, exceto por estar eu desfeito de meus sentidos embotados e do peso de meus ossos.

Transformado em puro olhar, absorverei, como antes, as proporções dos corpos humanos, as cores das irises, uma rua parisiense na alvorada de junho, e toda a inconcebível, a inconcebível multiplicidade das coisas visíveis.

Trad.: Pedro Gonzaga

Uczciwe opisanie samego siebie nad szklanką whisky na lotnisku, dajmy na to w Minneapolis

Moje uszy coraz mniej słyszą z rozmów, moje oczy słabną, ale dalej są nienasycone.

Widzę ich nogi w minispódniczkach, spodniach albo w powiewnych tkaninach,

Każdą podglądam osobno, ich tyłki i uda, zamyślony, kołysany marzeniami porno.

Stary lubieżny dziadu, pora tobie do grobu, nie na gry i zabawy młodości.

Nieprawda, robię to tylko, co zawsze robiłem, układając sceny tej ziemi z rozkazu erotycznej wyobraźni.

Nie pożądam tych właśnie stworzeń, pożądam wszystkiego, a one są jak znak ekstatycznego obcowania.

Nie moja wina, że jesteśmy tak ulepieni, w połowie z bezinteresownej kontemplacji, i w połowie z apetytu.

Jeżeli po śmierci dostanę się do Nieba, musi tam być jak tutaj, tyle że pozbędę się tępych zmysłów i ociężałych kości.

Zmieniony w samo patrzenie, będę dalej pochłaniał proporcje ludzkiego ciała, kolor irysów, paryską ulicę w czerwcu o świcie, całą niepojętą, niepojętą mnogość widzianych rzeczy.