Craig Santos Perez — Amor em tempos de mudanças climáticas

Amor em tempos de mudanças climáticas

reciclando o “Sonnet XVII”1 de Pablo Neruda

Não te amo como se fosses metais raros da terra,
diamantes de sangue ou reservas de petróleo bruto que provocam
a guerra. Eu te amo como amamos as espécies mais
vulneráveis: urgentemente, entre o habitat e a sua perda.

Eu te amo como se ama a última semente a salvo
dentro de um cofre, gestando a herança de nossas origens,
e, graças ao teu corpo, o sabor que amadurece
dos teus frutos ainda vive docemente em minha língua.

Eu te amo sem saber como ou quando este mundo
vai acabar. Eu te amo organicamente, sem pesticidas.
Eu te amo assim porque nós somente sobreviveremos

no composto rico em nitrogênio do nosso abraço,
tão perto que tuas emissões de carbono são minhas,
tão perto que teu mar se eleva com o meu calor.

Trad.: Nelson Santander

Nota:

O Soneto XVII, de Neruda, é o que segue, na tradução de Carlos Nejar:

Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
te amo como se amam certas coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.

Te amo como a planta que não floresce e leva
dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascendeu da terra.

Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo diretamente sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,

senão assim deste modo em que não sou nem és
tão perto que tua mão sobre meu peito e minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.

Love in a Time of Climate Change

recycling Pablo Neruda’s “Sonnet XVII”

I don’t love you as if you were rare earth metals,
conflict diamonds, or reserves of crude oil that cause
war. I love you as one loves the most vulnerable
species: urgently, between the habitat and its loss.

I love you as one loves the last seed saved
within a vault, gestating the heritage of our roots,
and thanks to your body, the taste that ripens
from its fruit still lives sweetly on my tongue.

I love you without knowing how or when this world
will end. I love you organically, without pesticides.
I love you like this because we’ll only survive

in the nitrogen rich compost of our embrace,
so close that your emissions of carbon are mine,
so close that your sea rises with my heat.

Jorge Luis Borges – João 1,14

Não será menos enigmática esta página
que as de Meus livros sagrados nem aquelas outras que repetem
as bocas ignorantes,
por julgá-las de um homem, não espelhos
obscuros do Espírito.
Eu que sou o É, o Foi e o Será
torno a condescender com a linguagem,
que é tempo sucessivo e emblema.
Quem brinca com um menino brinca com algo
próximo e misterioso;
eu quis brincar com Meus filhos.
Estive entre eles com assombro e ternura.
Por obra de magia nasci
curiosamente de um ventre.
Vivi enfeitiçado, encarcerado num corpo
e na humildade de uma alma.
Conheci a memória,
essa moeda que não é nunca a mesma.
Conheci a esperança e o temor,
esses dois rostos do incerto futuro.
Conheci a vigília, o sono, os sonhos, a ignorância, a carne,
os torpes labirintos da razão, a amizade dos homens,
a misteriosa devoção dos cães.
Fui amado, compreendido, louvado e pendi de uma cruz.
Bebi o cálice até as fezes.
Vi por Meus olhos o que nunca havia visto:
a noite e suas estrelas.
Conheci o polido, o arenoso, o díspar, o áspero,
o sabor do mel e da maçã,
a água na garganta da sede,
o peso de um metal na palma,
a voz humana, o rumor de uns passos sobre a relva,
o odor da chuva na Galileia,
o alto grito dos pássaros.
Conheci também a amargura.
Encomendei esta escrita a um homem qualquer;
nunca será o que desejo dizer,
não deixará de ser seu reflexo.
De Minha eternidade caem estes signos.
Que outro, não o que é agora seu amanuense, escreva o poema.
Amanhã serei um tigre entre os tigres
e predicarei Minha lei a sua selva,
ou uma grande árvore na Ásia.
Às vezes penso com nostalgia
no odor dessa carpintaria.

Trad.: Carlos Nejar e Alfredo Jacques.
Revisão de trad.: Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz

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Jorge Luis Borges – Juan, I, 14

No será menos un enigma esta hoja
que las de Mis libros sagrados
ni aquellas otras que repiten
las bocas ignorantes,
creyéndolas de un hombre, no espejos
oscuros del Espíritu.
Yo que soy el Es, el Fue y el Será,
vuelvo a condescender al lenguaje,
que es tiempo sucesivo y emblema.
Quien juega con un niño juega con algo
cercano y misterioso;
yo quise jugar con Mis hijos.
Estuve entre ellos con asombro y ternura.
Por obra de una magia
nací curiosamente de un vientre.
Viví hechizado, encarcelado en un cuerpo
y en la humildad de un alma.
Conocí la memoria,
esa moneda que no es nunca la misma.
Conocí la esperanza y el temor,
esos dos rostros del incierto futuro.
Conocí la vigilia, el sueño, los sueños,
la ignorancia, la carne,
los torpes laberintos de la razón,
la amistad de los hombres,
la misteriosa devoción de los perros.
Fui amado, comprendido, alabado y pendí de una cruz.
Bebí la copa hasta las heces.
Vi por Mis ojos lo que nunca había visto:
la noche y sus estrellas.
Conocí lo pulido, lo arenoso, lo desparejo, lo áspero,
el sabor de la miel y de la manzana,
el agua en la garganta de la sed,
el peso de un metal en la palma,
la voz humana, el rumor de unos pasos sobre la hierba,
el olor de la lluvia en Galilea,
el alto grito de los pájaros.
Conocí también la amargura.
He encomendado esta escritura a un hombre cualquiera;
no será nunca lo que quiero decir,
no dejará de ser su reflejo.
Desde Mi eternidad caen estos signos.
Que otro, no el que es ahora su amanuense, escriba el poema.
Mañana seré un tigre entre los tigres
y predicaré Mi ley a su selva,
o un gran árbol en Asia.
A veces pienso con nostalgia
en el olor de esa carpintería.

Jorge Luis Borges – Elogio da Sombra

A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
pode ser o tempo de nossa felicidade.
O animal morreu ou quase morreu.
Restam o homem e sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que não são ainda a escuridão.
Buenos Aires,
que antes se espalhava em subúrbios
em direção à planície incessante,
voltou a ser La Recoleta, o Retiro,
as imprecisas ruas do Once
e as precárias casas velhas
que ainda chamamos o Sul.
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar;
o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e se parece à eternidade.
Meus amigos não têm rosto,
as mulheres são aquilo que foram há tantos anos,
as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isso deveria atemorizar-me,
mas é um deleite, um retorno.
Das gerações dos textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
e dos ontens do mundo,
a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,
os atos dos mortos,
o compartilhado amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave,
a meu espelho.
Breve saberei quem sou.

Trad.: Carlos Nejar e Alfredo Jacques.
Revisão de trad.: Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz

Jorge Luis Borges – Elogio de La Sombra

La vejez (tal es el nombre que los otros le dan)
puede ser el tiempo de nuestra dicha.
El animal ha muerto o casi ha muerto.
Quedan el hombre y su alma.
Vivo entre formas luminosas y vagas
que no son aún la tiniebla.
Buenos Aires,
que antes se desgarraba en arrabales
hacia la llanura incesante,
ha vuelto a ser la Recoleta, el Retiro,
las borrosas calles del Once
y las precarias casas viejas
que aún llamamos el Sur.
Siempre en mi vida fueron demasiadas las cosas;
Demócrito de Abdera se arrancó los ojos para pensar;
el tiempo ha sido mi Demócrito.
Esta penumbra es lenta y no duele;
fluye por un manso declive
y se parece a la eternidad.
Mis amigos no tienen cara,
las mujeres son lo que fueron hace ya tantos años,
las esquinas pueden ser otras,
no hay letras en las páginas de los libros.
Todo esto debería atemorizarme,
pero es una dulzura, un regreso.
De las generaciones de los textos que hay en la tierra
sólo habré leído unos pocos,
los que sigo leyendo en la memoria,
leyendo y transformando.
Del Sur, del Este, del Oeste, del Norte,
convergen los caminos que me han traído
a mi secreto centro.
Esos caminos fueron ecos y pasos,
mujeres, hombres, agonías, resurrecciones,
días y noches,
entresueños y sueños,
cada ínfimo instante del ayer
y de los ayeres del mundo,
la firme espada del danés y la luna del persa,
los actos de los muertos,
el compartido amor, las palabras,
Emerson y la nieve y tantas cosas.
Ahora puedo olvidarlas. Llego a mi centro,
a mi álgebra y mi clave,
a mi espejo.
Pronto sabré quién soy.

Jorge Luis Borges – James Joyce (em três traduções)

Primeira tradução: Carlos Nejar e Alfredo Jacques.
Revisão de trad.: Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz

Em um dia do homem estão os dias
do tempo, desde o inconcebível
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias,
até aquele outro em que o ubíquo rio
do tempo terrenal torne a sua fonte,
que é o Eterno, e se apague no presente,
no futuro, no passado o que agora é meu.
Entre a aurora e a noite está a história
universal. Do fundo da noite vejo
a meus pés os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dá-me, Senhor, coragem e alegria
para escalar o cume deste dia.

Cambridge, 1968.

Segunda tradução: Josely Vianna Baptista

Num só dia do homem estão os dias
do tempo, desde aquele inconcebível
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias
até o outro em que o rio ubíquo
do tempo secular torne à nascente,
que é o Eterno, e se apague no presente,
no futuro, no ontem, no que ora possuo.
Entre a aurora e a noite está a história
universal. E vejo desde o breu,
junto a meus pés, os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dai-me, Senhor, coragem e alegria
para escalar o cume deste dia.

(Cambridge, 1968)

Terceira Tradução: Augusto de Campos

Em apenas um dia estão os dias
Do tempo, desde aquele inconcebível
Dia inicial do tempo, em que o terrível
Deus prefixou os dias e agonias

Até aquele em que o ubíquo rio
Do tempo terrenal torne à nascente,
Que é o Eterno, e se apague no presente,
O futuro, o que foi e o que ora expio.

Entre a aurora e a noite está a história
Universal. Vejo, do fundo breu
A meus pés o caminho do hebreu,

Cartago aniquilada, Inferno e Glória
Dá-me, Senhor, coragem e alegria
Para escalar a escarpa deste dia.

Cambridge, 1968

James Joyce

En un día del hombre están los días
Del tiempo, desde aquel inconcebible
Día inicial del tiempo, en que un terrible
Dios prefijó los días y agonías

Hasta aquel otro en que el ubicuo río
Del tiempo terrenal torne a su fuente,
Que es lo Eterno, y se apague en el presente,
El futuro, el ayer, lo que ahora es mío.

Entre el alba y la noche está la historia
Universal. Desde la noche veo
A mis pies los caminos del hebreo,

Cartago aniquilada, Infierno y Gloria.
Dame, Señor, coraje y alegría
Para escalar la cumbre de este día.

Cambridge, 1968

Carlos Nejar – Gazel do Universo Começando

Irei, irás
onde os ventos
nos exigem.

E o universo
é o começo
de estar contigo.

2.

O arado
com o trigo
vai rodar.

Irei, irás
com os cabelos
rodando.

O céu irá
rodar
no colo plúmeo
das espigas.

Seguirás
com as colinas
e os plátanos
rodando.

O mundo
é tua mão
desprevenida.

Vai rodando
a alma
no teu corpo,
o feno dos meses,
tuas tranças.

Irei, irás
onde reluz
de outro limite,
o mar.

E o universo todo
é o começo
de estar contigo.

Carlos Nejar – José Mora

Eu retornei. A morte imensa,
tão imensa que não tocava
mais os seus limites,
os feudos. E eu, aos poucos,
fui vencendo, fui
desembaraçando seus cordames,
o mortal peso, a superfície
desamparada e vasta como se
num escafandro viesse lentamente
ao som das águas e fosse
uma cítara tangida entre
duas espigas de penumbra
e um rosal de clara água.
Fosse, fosse a mão
escapando da manga,
o braço do casaco
e os gestos no suave
bandolim da alma,
cavoucando a terra água,
a fera terra água
e agarrasse as aspas
e este touro na braçada
rolasse e sacudia fora
esta parte da morte.
E é como face a face
dei com a aurora.