Paulo Henriques Britto – de “Oito sonetos entrópicos”

I

Deixar de ser é coisa natural,
como é natural ser. Pensando bem
(ou só pensando, seja bem ou mal),
o que haverá de natural, porém,
em ser o que se é, e não ser, apenas?
Não haverá um toque de artifício
implícito em escamas, pelos, penas,
nos ossos que sustentam o edifício
todo, na fome que impele essa máquina
furiosa e cega, essa goela ávida,
em direção a seu estado final,
que é como o do silício, ou do feldspato,
de tudo que é só no sentido lato,
franco, de ser — este, sim, natural?

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III

Podar as que ainda restam — expecitativas
que, sabe-se lá como, deram um jeito
de sobreviver, mais ou menos vivas,
à imolação das ilusões. Bem feito —
é o pensamento cruel reservado
pra esta hora dura e inabitável.
Quem mandou ousar o plano abusado
de uma felicidade inaceitável
pra esses deuses sequiosos de vingança
que nos invejam, com ódio, a existência?
E se até a mais mínima esperança
pra esses putos for uma insolência?
Não espere coisa alguma. Jogue limpo.
Todo cuidado é pouco com o Olimpo.

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VII

Não pode ser tão complicado assim.
Porque afinal de contas não é mais
que o fechar de uma conta, mais um fim
numa longa sequência de finais
felizes ou não. — Não, não pode ser
mais difícil que um dos muitos começos
a que se conseguiu sobreviver
quase inteiro, sem maiores tropeços.
E não é muito pior estar no meio
de tudo, sem o glamour dos inícios
e o frisson dos finais, diante do feio
e abissal dia a dia, com seus vícios
banais? O fim — em verdade vos digo —
é prêmio muito mais do que castigo.

BRITTO, Paulo Henriques. “Oito Sonetos Entrópicos”. In:_ Fim de Verão. São Paulo: Companhia das Letras, 2022

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