turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos
menos que escuro
menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo
escuro
mais que escuro:
claro
como água? como pluma? claro mais que claro claro: coisa alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
teu cu
tua gengiva igual a tua bocetinha que parecia sorrir entre as folhas de
banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta como uma boca do
corpo (não como a tua boca de palavras) como uma entrada para
eu não sabia tu
não sabias
fazer girar a vida
com seu montão de estrelas e oceano
entrando-nos em ti
bela bela
mais que bela
mas como era o nome dela?
Não era Helena nem Vera
nem Nara nem Gabriela
nem Tereza nem Maria
Seu nome seu nome era…
Perdeu-se na carne fria
perdeu-se na confusão de tanta noite e tanto dia
perdeu-se na profusão das coisas acontecidas
constelações de alfabeto
noites escritas a giz
pastilhas de aniversário
domingos de futebol
enterros corsos comícios
roleta bilhar baralho
mudou de cara e cabelos mudou de olhos e risos mudou de casa
e de tempo: mas está comigo está
perdido comigo
teu nome
em alguma gaveta
Que importa um nome a esta hora do anoitecer em São Luís do Maranhão à
mesa do jantar sob uma luz de febre entre irmãos e pais dentro de um
enigma?
mas que importa um nome
debaixo deste teto de telhas encardidas vigas à mostra entre cadeiras e mesa
entre uma cristaleira e um armário diante de garfos e facas e pratos de
louças que se quebraram já
um prato de louça ordinária não dura tanto
e as facas se perdem e os garfos
se perdem pela vida caem
pelas falhas do assoalho e vão conviver com ratos
e baratas ou enferrujam no quintal esquecidos entre os pés de
erva-cidreira
e as grossas orelhas de hortelã
quanta coisa se perde
nesta vida
Como se perdeu o que eles falavam ali
mastigando
misturando feijão com
farinha e nacos de
carne assada
e diziam coisas tão reais como a toalha bordada
ou a tosse da tia no quarto
e o clarão do sol morrendo na platibanda em frente à nossa
janela
se apagaram para sempre
Ou não?
Não sei de que tecido é feita minha carne e essa vertigem
que me arrasta por avenidas e vaginas entre cheiros de gás
e mijo a me consumir como um facho-corpo sem chama,
ou dentro de um ônibus
ou no bojo de um Boeing 707 acima do Atlântico
acima do arco-íris
perfeitamente fora
do rigor cronológico
sonhando
Garfos enferrujados facas cegas cadeiras furadas mesas gastas
balcões de quitanda pedras da Rua da Alegria beirais de casas
cobertos de limo muros de musgos palavras ditas à mesa do
jantar,
voais comigo
sobre continentes e mares
E também rastejais comigo
pelos túneis das noites clandestinas
sob o céu constelado do país
entre fulgor e lepra
debaixo de lençóis de lama e de terror
vos esgueirais comigo, mesas velhas,
armários obsoletos gavetas perfumadas de passado,
dobrais comigo as esquinas do susto
e esperais esperais
que o dia venha
E depois de tanto
que importa um nome?
Te cubro de flor, menina, e te dou todos os nomes do mundo:
te chamo aurora
te chamo água
te descubro nas pedras coloridas nas artistas de cinema
nas aparições do sonho
— E esta mulher a tossir dentro de casa!
Como se não bastasse o pouco dinheiro, a lâmpada fraca,
o perfume ordinário, o amor escasso, as goteiras no inverno.
E as formigas brotando aos milhões negras como golfadas de
dentro da parede (como se aquilo fosse a essência da casa)
E todos buscavam
num sorriso num gesto
nas conversas da esquina
no coito em pé na calçada escura do Quartel
no adultério
no roubo
a decifração do enigma
— Que faço entre coisas?
— De que me defendo?
Num cofo no quintal na terra preta cresciam plantas e rosas
(como pode o perfume
nascer assim?)
Da lama à beira das calçadas, da água dos esgotos cresciam
pés de tomate
Nos beirais das casas sobre as telhas cresciam capins
mais verdes que a esperança
(ou o fogo
de teus olhos)
Era a vida a explodir por todas as fendas da cidade
sob as sombras da guerra:
a gestapo a wehrmacht a raf a feb a blitzkrieg catalinas torpedeamentos a quinta-coluna os fascistas os nazistas os comunistas o repórter esso a discussão na quitanda o querosene o sabão de andiroba o mercado negro o racionamento o blackout as montanhas de metais velhos o italiano assassinado na Praça João Lisboa o cheiro de pólvora os canhões alemães troando nas noites de tempestade por cima da nossa casa. Stalingrado resiste.
Por meu pai que contrabandeava cigarros, por meu primo que passava rifa, pelo tio que roubava estanho à Estrada de Ferro, por seu Neco que fazia charutos ordinários, pelo sargento Gonzaga que tomava tiquira com mel de abelha e trepava com a janela aberta,
pelo meu carneiro manso
por minha cidade azul
pelo Brasil salve salve,
Stalingrado resiste.
A cada nova manhã
nas janelas nas esquinas na manchete dos jornais
Mas a poesia não existia ainda.
Plantas. Bichos. Cheiros. Roupas.
Olhos. Braços. Seios. Bocas.
Vidraça verde, jasmim.
Bicicleta no domingo.
Papagaios de papel.
Retreta na praça.
Luto.
Homem morto no mercado
sangue humano nos legumes.
Mundo sem voz, coisa opaca.
Nem Bilac nem Raimundo. Tuba de alto clangor, lira singela?
Nem tuba nem lira grega. Soube depois: fala humana, voz de
gente, barulho escuro do corpo, intercortado de relâmpagos
Do corpo. Mas que é o corpo?
Meu corpo feito de carne e de osso.
Esse osso que não vejo, maxilares, costelas,
flexível armação que me sustenta no espaço
que não me deixa desabar como um saco
vazio
que guarda as vísceras todas
funcionando
como retortas e tubos
fazendo o sangue que faz a carne e o pensamento
e as palavras
e as mentiras
e os carinhos mais doces mais sacanas
mais sentidos
para explodir como uma galáxia
de leite
no centro de tuas coxas no fundo
de tua noite ávida
cheiros de umbigo e de vagina
graves cheiros indecifráveis
como símbolos
do corpo
do teu corpo do meu corpo
corpo
que pode um sabre rasgar
um caco de vidro
uma navalha
meu corpo cheio de sangue
que o irriga como a um continente
ou um jardim
circulando por meus braços
por meus dedos
enquanto discuto caminho
lembro relembro
meu sangue feito de gases que aspiro
dos céus da cidade estrangeira
com a ajuda dos plátanos
e que pode — por um descuido — esvair-se por meu
pulso
aberto
Meu corpo
que deitado na cama vejo
como um objeto no espaço
que mede 1,70 m
e que sou eu: essa coisa
deitada
barriga pernas e pés
com cinco dedos cada um (por que
não seis?)
joelhos e tornozelos
para mover-se
sentar-se
levantar-se
meu corpo de 1,70 m que é meu tamanho no mundo
meu corpo feito de água
e cinza
que me faz olhar Andrômeda, Sírius, Mercúrio
e me sentir misturado
a toda essa massa de hidrogênio e hélio
que se desintegra e reintegra
sem se saber pra quê
Corpo meu corpo corpo
que tem um nariz assim uma boca
dois olhos
e um certo jeito de sorrir
de falar
que minha mãe identifica como sendo de seu filho
que meu filho identifica
como sendo de seu pai
corpo que se para de funcionar provoca
um grave acontecimento na família:
sem ele não há José de Ribamar Ferreira
não há Ferreira Gullar
e muitas pequenas coisas acontecidas no planeta
estarão esquecidas para sempre
corpo-facho corpo-fátuo corpo-fato
atravessado de cheiros de galinheiros e rato
na quitanda ninho
de rato
cocô de gato
sal azinhavre sapato
brilhantina anel barato
língua no cu na boceta cavalo de crista chato
nos pentelhos
corpo meu corpo-falo
insondável incompreendido
meu cão doméstico meu dono
cheio de flor e de sono
meu corpo-galáxia aberto a tudo cheio
de tudo como um monturo
de trapos sujos latas velhas colchões usados sinfonias
sambas e frevos azuis
de Fra Angelico verdes de
Cézanne
matéria-sonho de Volpi
Mas sobretudo meu
corpo
nordestino
mais que isso
maranhense
mais que isso
sanluisense
mais que isso
ferreirense
newtoniense
alzirense
meu corpo nascido numa porta-e-janela da Rua dos Prazeres
ao lado de uma padaria
sob o signo de Virgo
sob as balas do 24o BC
Na revolução de 30
e que desde então segue pulsando como um relógio
num tic tac que não se ouve
(senão quando se cola o ouvido à altura do meu coração)
tic tac tic tac
enquanto vou entre automóveis e ônibus
entre vitrinas de roupas
nas livrarias
nos bares
tic tac tic tac
pulsando há 45 anos
esse coração oculto
pulsando no meio da noite, da neve, da chuva
debaixo da capa, do paletó, da camisa
debaixo da pele, da carne,
combatente clandestino aliado da classe operária
meu coração de menino
claro claro
mais que claro
raro
o relâmpago clareia os continentes passados:
noite e jasmim
junto à casa
vozes perdidas na lama
domingos vazios
água sonhando na tina
pátria de mato e ferrugem
busca de cobre e alumínio
pelos terrenos baldios
economia de guerra?
pra mim
torresmo e cinema
Sozinho naquele
desaguadouro de rio
sob o sol duro do trópico
sozinho na tarde no planeta na história
arrastando camarão
com um cofo de palha
que
que eu buscava ali?
Houvera a guerra de Troia?
Homero Dante Boccaccio?
Já nascera a geometria?
Só tijuco e água salgada
só bagres e baiacus
areia sol vento e chuva
e as velas coloridas
dos barcos pela baía:
que perguntava eu ali
com aquele cofo nas mãos
sob o sol do Maranhão?
Não era o sol de Laplace
nem era a ilha geográfica:
era o sol
o sol apenas
com cheiro de lama podre
e cheiro de peixe e gente
corvina serra cação
papista comendo merda
na saída do bueiro
pátria de sal e ferrugem
que é que eu buscava ali
caminhando pelos trilhos
à toa
saltando dormentes
vadeando pelo córrego
raso de limo sapos garrafas
cheias de lama canos
onde moravam peixes-sabão
andando
sem rumo entre vagões rodas
de trem eixos leprosos
caixas de rolamento
abandonadas cheias
de terra ferrugem graxa
capim coberto de óleo
Que me ensinavam essas aulas
de solidão
entre coisas da natureza
e do homem?
O alto galpão de zinco
clarões de solda
operários na penumbra
paredes negras de fumo
Não era uma casa: uma casa
tem cadeiras mesas poltronas
Um templo
seria? mas
sem nichos sem altar sem santos?
Que era aquilo-uma-usina?
onde a tarde se fazia
com faíscas de esmeril calor de forja
onde a tarde era outra
tarde
que nada tinha daquela
que eu via agora distante
para além da via férrea
além do cais
além das águas do Anil, lá
cega de sol por detrás das ruínas
do Forte da Ponta d’Areia
na entrada da baía
Quantas tardes numa tarde!
e era outra, fresca,
debaixo das árvores boas a tarde
na praia do Jenipapeiro
Ou do outro lado ainda
a tarde maior da cidade
amontoada de sobrados e mirantes
ladeiras quintais quitandas
hortas jiraus galinheiros
ou na cozinha (distante) onde Bizuza
prepara o jantar
e não canta
ah quantas só numa
tarde geral que cobre de nuvens a cidade
tecendo no alto e conosco
a história branca
da vida qualquer
ah ventos soprando verdes nas palmeiras dos Remédios
gramas crescendo obscuras sob meus pés
entre os trilhos
e dentro da tarde a tardelocomotiva
que vem como um paquiderme
de aço
tarda pesada
maxilares cerrados cabeça zinindo
uma catedral que se move
envolta em vapor
bufando pânico
prestes
a explodir
tchi tchi
trã trã trã
tarã TARÃ TARÃ TARÃ
tchi tchi tchi tchi tchi
TARÃ TARÃ TARÃ TARÃ TARÃ TARÃ
(Para ser cantada com a música da
Bachiana no 2, Tocata, de Villa-Lobos)
lá vai o trem com o menino
lá vai a vida a rodar
lá vai ciranda e destino
cidade e noite a girar
lá vai o trem sem destino
pro dia novo encontrar
correndo vai pela terra
vai pela serra
vai pelo mar
cantando pela serra do luar
correndo entre as estrelas a voar
no ar
piuí! piuí piuí
no ar
piuí piuí piuí
adeus meu grupo escolar
adeus meu anzol de pescar
adeus menina que eu quis amar
que o trem me leva e nunca mais vai parar
VAARÃ VAARÃ VAARÃ VAARÃ
tuc tchuc tuc tchuc tuc tchuc
brisa branca brisa fria
cinzentura quase dia
IUÍ IUÍ IUÍ IUÍ IUÍ
Tuc tchuc tuc tchuc tuc tchuc
lará lará larará
lará lará larará
lará lará larará lará lará larará
lará lará lará
lará lará lará
IUÍ IUÍ IUÍ IUÍ IUÍ
iuí iuí iuí iuí iuí iuí iuí
saímos de casa às quatro
com as luzes da rua acesas
meu pai levava a maleta
eu levava uma sacola
rumamos por Afogados
outras ladeiras e ruas
o que pra ele era rotina
para mim era aventura
quando chegamos à gare
o trem realmente estava
ali parado esperando
muito comprido e chiava
entramos no carro os dois
eu entre alegre e assustado
meu pai (que já não existe)
me fez sentar ao seu lado
talvez mais feliz que eu
por me levar na viagem
meu pai (que já não existe)
sorria, os olhos brilhando
VAARÃ VAARÃ VAARÃ VAARÃ
Tchuc tchuc tchuc
tchuc tchuc tchuc
TRARÃ TRARÃ TRARÃ
TRARÃ TRARÃ TRARÃ
Ultrapassamos a noite
quando cruzamos Perizes
era exatamente ali
que principiava o dia
VAARÃ VAARÃ VAARÃ
VAARÃ VAARÃ VAARÃ
E ver que a vida era muito
espalhada pelos campos
que aqueles bois e marrecos
existiam ali sem mim
e aquelas árvores todas
águas capins nuvens — como
era pequena a cidade!
E como era grande o mundo:
há horas que o trem corria
sem nunca chegar ao fim
de tanto céu tanta terra
de tantos campos e serras
sem contar o Piauí
Já passamos por Rosário
por Vale-Quem-Tem, Quelru.
Passamos por Pirapemas
e por Itapicuru:
mundo de bois, siriemas,
jaçanã, pato e nhambu
café com pão
bolacha não
café com pão
bolacha não
vale quem tem
vale quem tem
vale quem tem
vale quem tem
nada vale
quem não tem
nada não vale
nada vale
quem nada
tem
neste vale
nada
vale
nada
vale
quem
não
tem
nada
no
v
a
l
e
TCHIBUM!!!
Muitos
muitos dias há num dia só
porque as coisas mesmas
os compõem
com sua carne (ou ferro
que nome tenha essa
matéria-tempo
suja ou
não)
os compõem
nos silêncios aparentes ou grossos
como colchas de flanela
ou água vertiginosamente imóvel
como
na quinta dos Medeiros, no poço
da quinta
coberto pela sombra quase pânica
das árvores
de galhos que subiam mudos
como enigmas
tudo parado
feito uma noite verde ou vegetal
e de água
muito embora em cima das árvores
por cima
lá no alto
resvalando seu costado luminoso nas folhas
passasse o dia (o século
XX)
e era dia
como era dia aquele
dia
na sala de nossa casa
a mesa com a toalha as cadeiras o
assoalho muito usado
e o riso claro de Lucinha se embalando na rede
com a morte já misturada
na garganta
sem que ninguém soubesse
— e não importa —
que eu debruçado no parapeito do alpendre
via a terra preta do quintal
e a galinha ciscando e bicando
uma barata entre plantas
e neste caso um dia-dois
o de dentro e o de fora
da sala
um às minhas costas o outro
diante dos olhos
vazando um no outro
através de meu corpo
dias que se vazam agora ambos em pleno coração
de Buenos Aires
às quatro horas desta tarde
de 22 de maio de 1975
trinta anos depois
muitos
muitos são os dias num só dia
fácil de entender
mas difícil de penetrar
no cerne de cada um desses muitos dias
porque são mais do que parecem
pois
dias outros há
ou havia
naquele dia do poço
da quinta
também dentro e fora
porque não é possível estabelecer um limite
a cada um desses
dias de fronteiras impalpáveis
feitos de — por exemplo — frutas e folhas
frutas que em si mesmas são
um dia
de açúcar se fazendo na polpa
ou já se abrindo aos outros dias
que estão em volta
como um horizonte de trabalhos infinitos:
porque a poucos passos
do poço
acima da ladeira de terra
na rua sem árvores
donde vim há pouco
passa gente e carroça
ou alguém grita na janela
enquanto um pássaro cruza (possivel-
mente)
por sobre nós
um urubu talvez
deriva na direção da Camboa
leve sobre o vasto capinzal e para além da estrada de ferro
por cima das palhoças na lama
e lá detrás a fábrica
assentada numa plataforma fumegante de cinza e detritos
de algodão
um urubu
que é ele mesmo um dia preto farejando carniça
e na carniça
junto do Matadouro
que fede
o dia (um dia) apodrece
envolvendo o dia
dos moradores das palafitas
e o dia do urubu
e o da lata de azeite Sol Levante
que sobre três pedras
no chão de terra batida da palhoça
onde mora Esmagado
ferve
com arroz-de-toucinho
para o almoço
e todos esses dias enlaçados como anéis de fumaça
girando no cata-vento
esgarçando-se nas nuvens
e o alarido das pipiras na sapotizeira
às seis da tarde
ou
no cubo de sombra e vertigem
da água
do dito poço
da dita quinta
que os anos não trazem mais
E trazem cada vez mais
por ser alarme agora em minha carne
o silêncio daquela água
por ser clarão
a sua sombra
debaixo das minhas unhas
como então sob as folhas com açúcar e luz
pingar de água
um pio
um sopro de brisa
sem pressa
e por todas as partes
se fabricava a noite
que nos envenenaria de jasmim
E a noite mais tarde pronta passaria aos trambolhões
com sua carruagem negra
batendo ferros
feito um trem
pela Costela do Diabo
com seu cortejo de morcegos
Era impossível distinguir
com a pouca luz que havia
como eram seus cavalos
seu condutor seu chicote
a cavalgar no meu sono
sem o testemunho dos irmãos
Numa noite há muitas noites
mas de modo diferente
de como há dias
no dia
(especialmente nos bairros
onde a luz é pouca)
porque de noite
todos os fatos são pardos
e a natureza fecha
os olhos coloridos
guarda seus bichos
entre as pernas, põe as aves dentro dos frutos
e imobiliza todas as águas
embora fique urinando
escondido
em vários pontos da quinta
tão suave que quase ninguém ouve sob as folhas de tajá
E assim as muitas noites
parecem uma só
ou no máximo duas:
sendo a outra
a noite de dentro de casa
iluminada a luz elétrica
A noite adormece as galinhas
e põe a funcionar os cinemas
aciona
os programas de rádio, provoca
discussões à mesa do jantar, excessos
entre jovens que se beijam e se esfregam
junto à cancela
no escuro
e quando o tesão é muito decidem casar
(menos, por exemplo,
Maria do Carmo
que entregava os peitos enormes
pros soldados chuparem
na Avenida Silva Maia
sob os oitizeiros
e deixava que eles esporrassem
entre suas coxas quentes (sem
meter)
mas voltava para casa
com ódio do pai
e malsatisfeita da vida)
De noite, porque
a luz é pouca,
a gente tem a impressão
de que o tempo não passa
ou pelo menos não escorre
como escorre de dia:
como se se desse uma interrupção
para o dr. Bacelar fazer uma palestra
no Grêmio Lítero-Recreativo Português
uma interrupção
para que os operários da fábrica Camboa
descansem um pouco
e se reproduzam nas redes
ou nas esteiras
se amando sem muito alarde
para não acordar os filhos que dormem no mesmo quarto
Como se o tempo
durante a noite
ficasse parado junto
com a escuridão e o cisco
debaixo dos móveis e
nos cantos da casa
(mesmo dentro
do guarda-roupa,
o tempo,
pendurado nos cabides)
E essa sensação
é ainda mais viva
quando a gente acorda tarde
e depara com tudo claro
e já funcionando: pássaros
árvores vendedores de legumes
Mas também
quando a gente acorda cedo e fica
deitado assuntando
o processo do amanhecer:
os primeiros passos na rua
os primeiros
ruídos na cozinha
até que de galo em galo
um galo
rente a nós
explode
(no quintal)
e a torneira do tanque de lavar roupas
desanda a jorrar manhã
A noite nos faz crer
(dada a pouca luz)
que o tempo é um troço
auditivo.
Concluídos os afazeres noturnos
(que encheram a casa de rumores,
inclusive as últimas conversas no quarto)
quando enfim a família inteira dorme —
o tempo se torna um fenômeno
meramente químico
que não perturba
(antes
propicia)
o sono.
Não obstante,
alguém que venha da rua
— tendo caminhado sob a fantástica imobilidade
da Via Láctea —
pode ter a impressão,
diante daqueles corpos adormecidos,
de que o universo morreu
(quando de fato
em todas as torneiras da cidade
a manhã está prestes a jorrar)
Menos, claro,
nas palafitas da Baixinha, à margem
da estrada de ferro,
onde não há água encanada:
ali
o clarão contido sob a noite
não é
como na cidade
o punho fechado da água dentro dos canos:
é o punho
da vida
fechada dentro da lama
Já por aí se vê
que a noite não é a mesma
em todos os pontos da cidade;
a noite
não tem na Baixinha
a mesma imobilidade
porque a luz da lamparina
não hipnotiza as coisas
como a eletricidade
hipnotiza:
embora o tempo ali também não escorra,
não flua: bruxuleia
se debate
numa gaiola de sombras.
Mas o que mais distancia
essa noite da Baixinha
das outras
é o cheiro: melhor dizendo
o mau cheiro
que ela tem como certos animais
na sua carne de lodo
e daí poder dizer-se
que a noite na Baixinha
não passa, não
transcorre:
apodrece
Numa coisa que apodrece
— tomemos um exemplo velho:
uma pera —
o tempo
não escorre nem grita,
antes
se afunda em seu próprio abismo,
se perde
em sua própria vertigem,
mas tão sem velocidade
que em lugar de virar luz vira
escuridão;
o apodrecer de uma coisa
de fato é a fabricação
de uma noite:
seja essa coisa
uma pera num prato seja
um rio num bairro operário
Daí por que na Baixinha
há duas noites metidas uma na outra: a noite
sub-urbana (sem água
encanada) que se dissipa com o sol
e a noite sub-humana
da lama
que fica
ao longo do dia
estendida
como graxa
por quilômetros de mangue
a noite alta
do sono (quando
os operários sonham)
e a noite baixa
do lodo embaixo
da casa
uma noite metida na outra
como a língua na boca
eu diria
como uma gaveta de armário
metida no armário (mas
embaixo: o membro na vagina)
ou como roupas pretas
sem uso dentro da gaveta
ou como uma coisa suja
(uma culpa)
dentro de uma pessoa
enfim como
uma gaveta de lama
dentro de um armário de lama,
assim
talvez fosse a noite na Baixinha
princesa negra e coroada
apodrecendo nos mangues
Mas para bem definir essa noite
da Baixinha
não se deve separá-la
da gente que vive ali
— porque a noite não é
apenas
a conspiração das coisas —
nem separá-la da fábrica
de fios e pano riscado
(de que os homens fazem calças)
onde aquela gente trabalha,
nem do mínimo salário
que aquela gente recebe,
nem separar a fábrica
de lama da fábrica
de fios
nem o fio
do bafio
envenenado na lama
que de feder tantos anos
já é parte daquela gente
(como
o cheiro de um bicho pode ser parte
de outro bicho)
e a tal ponto
que nenhum deles consegue
lembrar flor alguma que não tenha
aquele azedo de lama
(e não obstante
se amam)
Resta ainda acrescentar
— pra se entender essa noite
proletária —
que um rio não apodrece do mesmo modo
que uma pera
não apenas porque um rio não apodrece num prato
mas porque nenhuma coisa apodrece
como outra
(nem por outra)
e mesmo
uma banana
não apodrece do mesmo modo
que muitas bananas
dentro de
uma tina
— no quarto de um sobrado
na Rua das Hortas, a mãe
passando roupa a ferro —
fazendo vinagre
— enquanto o bonde Gonçalves Dias
descia a Rua Rio Branco
rumo à Praça dos Remédios e outros
bondes desciam a Rua da Paz
rumo à Praça João Lisboa
e ainda outros rumavam
na direção da Fabril, Apeadouro,
Jordoa
(esse era o bonde do Anil
que nos levava
para o banho no rio Azul)
e as bananas
fermentando
trabalhando para o dono — como disse Marx —
ao longo das horas mas num ritmo
diferente (muito mais
grosso) que o do relógio
fazendo vinagre
— naquele quarto onde dormia
toda a família e
se vendiam quiabo e jerimum —
fermentando
— enquanto Josias, o enfermeiro,
posava de doutor na quitanda
de meu pai
e eu jogava bilhar
escondido
no botequim do Constâncio
na Fonte do Ribeirão —
mas
um rio
não faz vinagre
mesmo que um quitandeiro o ponha para apodrecer
numa tina
um rio
não apodrece como as bananas
nem como, por exemplo,
uma perna de mulher
— (da mulher
que a gente não via
mas fedia durante toda manhã
na casa ao lado de nossa escola,
na época
da guerra)
um rio não apodrece do mesmo modo que uma perna
— ainda que ambos fiquem
com a pele um tanto azulada —
nem do mesmo modo que um jardim
(pelo menos em nossa cidade
sob o demorado relâmpago do verão)
E como nenhum rio apodrece
do mesmo modo que outro rio
assim o rio Anil
apodrecia a seu modo
naquela parte da ilha de São Luís.
Mesmo porque
para que outro rio
pudesse apodrecer como ele
era preciso que viesse
por esse mesmo caminho
passasse no Matadouro
e misturasse seu cheiro de rio ao cheiro
de carniça
e tivesse permanentemente a sobrevoá-lo
uma nuvem de urubus
como acontece com o Anil antes
de dobrar à esquerda
para perder-se no mar
(para de fato
afogar-se, convulso,
nas águas salgadas
da baía
que se intrometem por ele, por suas veias,
por sua carne doce de rio
que o empurra para trás
o desarruma
o envenena de sal
e o obriga a apodrecer
— já que não pode fluir —
debaixo das palafitas
onde moram os operários da Fábrica
de Fiação e Tecidos da Camboa)
Assim apodrece o Anil
ao leste de nossa cidade
que foi fundada pelos franceses em 1612
e que já o encontraram apodrecendo
embora com um cheiro
que nada tinha
do óleo dos navios que entram agora
quase diariamente no porto
nem das fezes que a cidade
vaza em seu corpo de peixes
nem da miséria dos homens
escravos de outros
que ali vivem agora
feito caranguejos.
Apenas os índios vinham banhar-se
na praia do Jenipapeiro, apenas eles
ouviam o vento nas árvores
e caminhavam por onde
hoje são avenidas e ruas,
sobrados cobertos de limo,
cheios de redes e lembranças
na obscuridade.
Mas desses índios timbiras
nada resta, senão coisas contadas em livros
e alguns poemas em que se tenta
evocar a sombra dos guerreiros
com seu arco
ocultos entre as folhas
(o que não impede que algum menino
tendo visto no palco da escola
I-Juca Pirama
saia a buscar
pelos matos de Maioba ou da Jordoa
— o coração batendo forte —
vestígios daqueles homens,
mas não encontra mais
que o rumor do vento nas árvores)
Exceto se encontra
pousado
um pássaro azul e vermelho
— a brisa entortando-lhe as penas feito
um leque feito
o cocar de um guerreiro
que nele se transformara
para continuar habitando aqueles matos.
E mesmo que
não seja o pássaro o guerreiro
foi decerto visto por ele um dia
e por isso
estranhamente
está presente ali
vendo-o de novo
quem sabe agora mesmo atrás do menino atrás
dos ramos
quando
algo se mexe
e uma lagartixa foge sobre as folhas secas.
E tudo isso se passa
sob a copa das árvores
(longe
da estrada por onde trafegam bondes
e ônibus,
e mais longe ainda
das ruas da Praia Grande
atravancadas de caminhões
pracistas como João Coelho e estivadores
que descarregam babaçu)
Tudo isso se passa
como parte da história dos matos e dos pássaros
E na história dos pássaros
os guerreiros continuam vivos.
E eu nunca pensara antes que havia
uma história dos pássaros
embora conhecesse tantos
desde
o canário-da-terra (na gaiola
de seu Neco), a rolinha fogo-pagô
(na cumeeira da casa)
até o bigode-pardo
(que se pegava com alçapão no capinzal)
o galo-de-campina
parecia um oficial
em uniforme de gala;
o anum era um empregado
da limpeza pública;
o urubu, um crioulo
de fraque; o bem-te-vi,
um polícia de quepe
e apito na boca
sempre atarefado
Para me dar conta
da história dos pássaros
foi preciso ver
o pássaro vermelho e azul
mal pousado no galho
grande demais para aqueles matos
como um fantasma
(a balançar no vento)
foi preciso vê-lo
dentro daquele silêncio
feito de pequenos barulhos vegetais
E ele — fazendo sua história — voou
sem se saber por que
e foi pousar noutra árvore
já agora quase oculto
ora parecendo flor ora folha colorida
e assim sumiu
Já a história dos urubus
é praticamente a mesma história dos homens
que têm cães que morrem
atropelados
em frente à porta da casa
que têm papagaios que aprendem a falar
na cozinha
e curiós
cantando
na gaiola da barbearia
(a filha do barbeiro
fugiu com o filho
do carteiro
um mulato
que trabalhava nos Correios.
As vizinhas cochichavam:
“se tivesse fugido
com um branco,
ao menos ia poder casar”)
Enquanto isso
o dr. Gonçalves Moreira mantinha na sua sala
um casal de canários-belgas numa gaiola de prata
(na Avenida Beira-Mar em frente à entrada da baía.)
E trouxe uma caboclinha
de suas terras em Barra do Corda
para arrumar as gavetas (lençóis
de linho branco cheirando a alfazema)
e cuidar dos canários:
ela limpava a gaiola
e renovava a água e o alpiste
todas as manhãs
na janela do alpendre
(na época da guerra).
Lá embaixo no quintal
a lavadeira batia roupa
no tanque
e cantava junto com a água.
O mamoeiro rente ao muro
amadurecia um mamão para a sobremesa do doutor
(isso por volta de 1942, 43,
quando chegaram os americanos
para construir a base aérea do Tirirical:
compraram todas as frutas e legumes
do Mercado
pagaram um salário incrível pro Antônio José
e puseram o pé em cima da mesa
no Moto Bar)
E os canários, nem-seu-souza,
trinavam na gaiola de prata
Camélia caiu na vida
porque ainda não existia a pílula
Pagou caro aquele amor
feito com dificuldade
detrás do jirau de roupas
em pé junto à cerca
enquanto a família dormia
(o mesmo gosto de hortelã
das pastilhas de aniversário)
Seu pai, seu Cunha, o barbeiro,
quase morre de vergonha,
ele que fazia a barba
de todos os homens da rua
(e o curió na gaiola,
nem-seu-souza).
Por que vai um homem ter filhas,
meu Deus? E ele tinha três.
A mais velha, que era mais sonsa,
foi ao Josias tomar
uma injeção de Eucaliptina
e o enfermeiro aconselhou:
“Dói muito. É melhor num lugar
que tenha mais carne”.
E desde esse santo dia
era injeção toda tarde,
(e o curió,
nem-seu-souza)
A terceira ficou séria
e virou filha de Maria
(e o curió,
nem-seu-souza)
Já o canário-da-terra
parou de cantar quando
numa manhã de domingo
seu Neco matou a mulher
que — dizem — lhe punha chifres:
a gaiola rolou no chão.
(“Canivetada nas costas
pegou bem aqui, lá nela.
Não saiu um pingo de sangue,
foi hemorragia interna”)
A morte se alastrou por toda a rua,
misturou-se às árvores da quinta,
penetrou na cozinha de nossa casa
ganhou o cheiro da carne que assava na panela
e ficou brilhando nos talheres
dispostos sobre a toalha
na mesa do almoço.
Salve a mulher de amarelo
Põe a de verde no chinelo
Mas a mulher de estampado
Deixa o homem amarrado
Mas essa é a história de pássaros
já de há muito urmanizados
pois a história dos pássaros
pássaros
só os guerreiros conhecem
só eles a entendem quando o vento
(numa lembrança)
sopra-a nas árvores de São Luís.
Não seria correto dizer
que a vida de Newton Ferreira
escorria ou se gastava
entre cofos de camarões, sacas de arroz
e paneiros de farinha-d’água
naquela sua quitanda
na esquina da Rua dos Afogados
com a Rua da Alegria.
Não seria correto porque
se alguém chegasse lá
por volta das 3 da tarde (hora
de pouco movimento) — ele meio debruçado
no balcão lendo X-9 —
veria que tudo estava parado
na mesma imobilidade branca
do fubá dentro do depósito
das prateleiras cheias de latas e garrafas
e do balcão com a balança Filizola
tudo
sobre o chão de mosaico verde e branco
como uma plataforma da tarde.
Parado e ao mesmo tempo inserido
num amplo sistema
que envolvia os armazéns
da Praia Grande, a Estrada de Ferro São Luís-Teresina,
fazendas em Coroatá, Codó, plantações de arroz
e fumo, homens que punham camarões para secar
ao sol em Guimarães. E as próprias famílias
da rua
que se sentariam mais tarde à mesa do jantar.
Por isso mesmo
ele podia mergulhar naquele mundo de gangsters americanos
sem ansiedade.
É verdade, porém, que uma esquina mais acima
(às suas costas)
na Avenida Silva Maia
a tarde passava ruidosamente
farfalhando nos oitizeiros como o vento por um relógio de folhas.
É que a tarde tem muitas velocidades
sendo mais lenta
por exemplo
no esgarçar de um touro de nuvem
que ela agora arrasta iluminada
na direção do Desterro
por cima da capital
(como uma aranha, poderia dizer?
que ata e puxa a presa para devorá-la?
como um abutre invisível a destripá-la
num ballet
e muito acima do telhado da quitanda
em pleno ar?)
E em meio a um outro sistema
este
de ventos
que avançavam escuros das bandas do Apeadouro
ou das cabeceiras do Bacanga,
úmidos às vezes,
num estampido que faz sacudir os aviões.
Não,
não cabe falar de aranha
se penso na cidade se desdobrando em seus
telhados e torres de igrejas
sob um sol duro
as famílias debaixo das telhas, retratos de mortos
com o rosto exageradamente colorido
dentro de molduras pintadas de dourado,
cômodas
antigas, pequenas caixas com botões e novelos de linha,
parentes tuberculosos em quartos escuros, tossindo
baixo para que o vizinho não ouça, crianças
que mal começam a andar
agarrando-se às pernas de pais que nada podem,
debaixo daqueles telhados encardidos
de nossa pequena cidade
a qual
alguém que venha de avião dos EUA
Poderá ver
postada na desembocadura suja de dois rios
lá embaixo
e como se para sempre. Mas
e o quintal da Rua das Cajazeiras? O tanque
do Caga-Osso? a Fonte do Bispo? a quitanda
de Newton Ferreira?
Nada disso verá
de tão alto
aquele hipotético passageiro da Braniff.
Debruçado no balcão
Newton Ferreira lê
seu conto policial.
Nada sabe das conspirações
meteorológicas que se tramam
em altas esferas azuis acima do Atlântico.
Na quitanda
o tempo não flui
antes se amontoa
em barras de sabão Martins
mantas de carne-seca
toucinho mercadorias
todas com seus preços e
cheiros
ajustados ao varejo
(o olho sujo
do querosene
espiava na lata debaixo do balcão)
Mas nada disso se percebe
voando sobre a cidade a 900 quilômetros por hora.
Nem mesmo andando a pé
entre aquelas duas filas de porta-e-janela,
meias-moradas de sacadas de ferro e platibandas
manchadas de caruncho
(no vermelho
entardecer)
Nem mesmo que a quitanda
exista ainda e que já sejam oito horas da noite
e se veja
pela única folha da porta entreaberta a luz acesa
como antigamente
e haja homens conversando lá dentro
entre lambadas de cachaça
e seja o mesmo o balcão
e o cheiro das mercadorias
lá não encontrarás o Gonzaga, sargento músico do exército.
Já não se falará da guerra que a guerra acabou
faz muitos anos.
Descendo ou subindo a rua,
mesmo que vás a pé,
verás que as casas são praticamente as mesmas
mas nas janelas
surgem rostos desconhecidos
como num sonho mau.
Mudar de casa já era
um aprendizado da morte: aquele
meu quarto com sua úmida parede manchada
aquele quintal tomado de plantas verdes
sob a chuva
e a cozinha
e o fio da lâmpada coberto de moscas,
nossa casa
cheia de nossas vozes
tem agora outros moradores:
ainda estás vivo e vês, e vês
que não precisavas estar aqui para ver
As casas, as cidades,
são apenas lugares por onde
passando
passamos
(ora sentado ora deitado
ora comendo na mesa
bebendo água do pote
ora debruçado
no peitoril da janela, o frango
pingando ensopado debaixo
do jirau de plantas)
Nem a pé, nem andando de rastros,
nem colando o ouvido no chão
voltarás a ouvir nada do que ali se falou.
Do querosene, sim,
podes outra vez sentir o mesmo cheiro de trapo
e do sabão talvez
se é que a fábrica ainda não faliu.
Mas de Newton Ferreira, ex-
-center-forward da seleção maranhense,
que dez vezes faliu
e que era conhecido de todos na zona do comércio,
não há nenhum traço
naquele chão de mosaico verde e branco
(inutilmente o buscarás também
na sessão desta noite do poeira)
A cidade no entanto poderás vê-la do alto praticamente a mesma
com suas ruas e praças
por onde ele caminhava
Ah, minha cidade verde
minha úmida cidade
constantemente batida de muitos ventos
rumojerando teus dias à entrada do mar
minha cidade sonora
esferas de ventania
rolando loucas por cima dos mirantes
e dos campos de futebol
verdes verdes verdes verdes
ah sombra rumorejante
que arrasto por outras ruas
Desce profundo o relâmpago
de tuas águas em meu corpo,
desce tão fundo e tão amplo
e eu me pareço tão pouco
pra tantas mortes e vidas
que se desdobram
no escuro das claridades,
na minha nuca,
no meu cotovelo, na minha arcada dentária
no túmulo da minha boca
palco de ressurreições
inesperadas
(minha cidade
canora)
de trevas que já não sei
se são tuas se são minhas
mas nalgum ponto do corpo (do teu? do meu
corpo?)
lampeja
o jasmim
ainda que sujo da pouca alegria reinante
naquela rua vazia
cheia de sombras e folhas
Desabam as águas servidas
me arrastam por teus esgotos
de paletó e gravata
Me levanto em teus espelhos
me vejo em rostos antigos
te vejo em meus tantos rostos
tidos perdidos partidos
refletido
irrefletido
e as margaridas vermelhas
que sobre o tanque pendiam:
desce profundo
o relâmpago de tuas águas numa
vertigem de vozes brancas ecos de leite
de cuspo morno no membro
o corpo que busca o corpo
No capinzal escondido
naquele capim que era abrigo e afeto
feito cavalo sentindo
o cheiro da terra o cheiro
verde do mato o travo do cheiro novo
do mato novo da vida
viva das coisas
verdes vivendo
longe daquela mobília onde só vive o passado
longe do mundo da morte da doença da vergonha
da traição das cobranças à porta,
ali
bebendo a saúde da terra e das plantas,
buscando
em mim mesmo a fonte de uma alegria
ainda que suja e secreta
o cuspo morno a delícia
do próprio corpo no corpo
e num movimento terrestre
no meio do capim,
celeste o bicho que enfim alça voo
e tomba
Ah, minha cidade suja
de muita dor em voz baixa
de vergonhas que a família abafa
em suas gavetas mais fundas
de vestidos desbotados
de camisas mal cerzidas
de tanta gente humilhada
comendo pouco
mas ainda assim bordando de flores
suas toalhas de mesa
suas toalhas de centro
de mesa com jarros
— na tarde
durante a tarde
durante a vida —
cheios de flores
de papel crepom
já empoeiradas
minha cidade doída
Me reflito em tuas águas
recolhidas:
no copo
d’água
no pote d’água
na tina d’água
no banho nu no banheiro
vestido com as roupas
de tuas águas
que logo me despem e descem
diligentes para o ralo
como se de antemão soubessem
para onde ir
Para onde
foram essas águas
de tantos banhos de tarde?
Rolamos com aquelas tardes
no ralo do esgoto
e rolo eu
agora
no abismo dos cheiros
que se desatam na minha
carne na tua, cidade
que me envenenas de ti,
que me arrastas pela treva
me atordoas de jasmim
que de saliva me molhas me atochas
num cu
rijo me fazes
delirar me sujas
de merda e explodo o meu sonho
em merda.
Sobre os jardins da cidade
urino pus. Me extravio
na Rua da Estrela, escorrego
no Beco do Precipício.
Me lavo no Ribeirão.
Mijo na Fonte do Bispo.
Na Rua do Sol me cego,
na Rua da Paz me revolto
na do Comércio me nego
mas na das Hortas floresço;
na dos Prazeres soluço
na da Palma me conheço
na do Alecrim me perfumo
na da Saúde adoeço
na do Desterro me encontro
na da Alegria me perco
Na Rua do Carmo berro
na Rua Direita erro
e na da Aurora adormeço
Acordo na zona. O dia ladra, navega
enfunado e azul
Voo
com as toalhas brancas
Vou pousar no sorriso de Isabel
Tropeço num preconceito caio das nuvens
descubro Marília
me aconchego em suas pétalas como a pomba
do Divino entre rosas na bandeja
Mas vem junho e me apunhala
vem julho me dilacera
setembro expõe meus despojos
pelos postes da cidade
(me recomponho mais tarde,
costuro as partes, mas os intestinos
nunca mais funcionarão direito)
Prego a subversão da ordem
poética, me pagam. Prego
a subversão da ordem política,
me enforcam junto ao campo de tênis dos ingleses
na Avenida Beira-Mar
(e os canários,
nem-seu-souza: improvisam
em sua flauta de prata)
Vendo o que tenho e mudo
para a capital do país.
(Se tivesse me casado com Maria de Lourdes,
meus filhos seriam dourados uns, outros
morenos de olhos verdes
e eu terminaria deputado e membro
da Academia Maranhense de Letras;
se tivesse me casado com Marília,
teria me suicidado na discoteca da Rádio Timbira)
Mas na cidade havia
muita luz,
a vida
fazia rodar o século nas nuvens
sobre nossa varanda
por cima de mim e das galinhas no quintal
por cima
do depósito onde mofavam
paneiros de farinha
atrás da quitanda,
e era pouco
viver, mesmo
no salão de bilhar, mesmo
no bar do Castro, na pensão
da Maroca nas noites de sábado, era pouco
banhar-se e descer a pé
para a cidade de tarde
(sob o rumor das árvores)
ali
no norte do Brasil
vestido de brim.
E por ser pouco
era muito,
que pouco muito era o verde
fogo da grama, o musgo do muro, o galo
que vai morrer,
a louça na cristaleira,
o doce na compoteira, a falta
de afeto, a busca
do amor nas coisas.
Não nas pessoas:
nas coisas, na muda carne
das coisas, na cona da flor, no oculto
falar das águas sozinhas:
que a vida
passava por sobre nós,
de avião.
Não tem a mesma velocidade o domingo
que a sexta-feira com sua azáfama de compras
fazendo aumentar o tráfego e o consumo
de caldo de cana gelado,
nem tem
a mesma velocidade
a açucena e a maré
com seu exército de borbulhas e ardentes caravelas
a penetrar soturnamente o rio
noutra lentidão que a do crepúsculo
o qual, no alto,
com sua grande engrenagem escangalhada
moía a luz.
Outra velocidade
tem Bizuza sentada no chão do quarto
a dobrar os lençóis lavados e passados
a ferro, arrumando-os na gaveta da cômoda, como
se a vida fosse eterna.
E era
naquele seu universo de almoços e temperos
de folhas de louro e de pimenta-do-reino
mastruz para tosse braba,
universo
de panelas e canseiras entre as paredes da cozinha
dentro de um surrado vestido de chita,
enfim,
onde batia o seu pequenino coração.
E se não era
eterna a vida, dentro e fora do armário,
o certo é que
tendo cada coisa uma velocidade
(a do melado
escura, clara
a da água
a derramar-se)
cada coisa se afastava
desigualmente
de sua possível eternidade.
Ou
se se quer
desigualmente
a tecia
na sua própria carne escura ou clara
num transcorrer mais profundo que o da semana.
Por isso não é certo dizer
que é no domingo que melhor se vê
a cidade
— as fachadas de azulejo, a Rua do Sol vazia
as janelas trancadas no silêncio —
quando ela
parada
parece flutuar.
E que melhor se vê uma cidade
quando — como Alcântara —
todos os habitantes se foram
e nada resta deles (sequer
um espelho de aparador num daqueles
aposentos sem teto) — se não
entre as ruínas
a persistente certeza de que
naquele chão
onde agora crescem carrapichos
eles efetivamente dançaram
(e quase se ouvem vozes
e gargalhadas
que se acendem e apagam nas dobras da brisa)
Mas
se é espantoso pensar
como tanta coisa sumiu, tantos
guarda-roupas e camas e mucamas
tantas e tantas saias, anáguas,
sapatos dos mais variados modelos
arrastados pelo ar junto com as nuvens,
a isso
responde a manhã
que
com suas muitas e azuis velocidades
segue em frente
alegre e sem memória
É impossível dizer
em quantas velocidades diferentes
se move uma cidade
a cada instante
(sem falar nos mortos
que voam para trás)
ou mesmo uma casa
onde a velocidade da cozinha
não é igual à da sala (aparentemente imóvel
nos seus jarros e bibelôs de porcelana)
nem à do quintal
escancarado às ventanias da época
e que dizer das ruas
de tráfego intenso e da circulação do dinheiro
e das mercadorias
desigual segundo o bairro e a classe, e da
rotação do capital
mais lenta nos legumes
mais rápida no setor industrial, e
da rotação do sono
sob a pele,
do sonho
nos cabelos?
e as tantas situações da água nas vasilhas
(pronta a fugir)
a rotação
da mão que busca entre os pentelhos
o sonho molhado os muitos lábios
do corpo
que ao afago se abre em rosa, a mão
que ali se detém a sujar-se
de cheiros de mulher,
e a rotação
dos cheiros outros
que na quinta se fabricam
junto com a resina das árvores e o canto
dos passarinhos?
Que dizer da circulação
da luz solar
arrastando-se no pó debaixo do guarda-roupa
entre sapatos?
e da circulação
dos gatos pela casa
dos pombos pela brisa?
e cada um desses fatos numa velocidade própria
sem falar na própria velocidade
que em cada coisa há
como os muitos
sistemas de açúcar e álcool numa pera,
girando
todos em diferentes ritmos
(que quase
se podem ouvir)
e compondo a velocidade geral
que a pera é
do mesmo modo que todas essas velocidades mencionadas
compõem
(nosso rosto refletido na água do tanque)
o dia
que passa
— ou passou —
na cidade de São Luís.
E do mesmo modo
que há muitas velocidades num
só dia
e nesse mesmo dia muitos dias
assim
não se pode também dizer que o dia
tem um único centro
(feito um caroço
ou um sol)
porque na verdade um dia
tem inumeráveis centros
como, por exemplo, o pote de água
na sala de jantar
ou na cozinha
em torno do qual
desordenadamente giram os membros da família.
E se nesse caso
é a sede a força de gravitação
outras funções metabólicas
outros centros geram
como a sentina
a cama
ou a mesa de jantar
(sob uma luz encardida numa
porta-e-janela da Rua da Alegria
na época da guerra)
sem falar nos centros cívicos, nos centros
espíritas, no Centro Cultural
Gonçalves Dias ou nos mercados de peixe,
colégios, igrejas e prostíbulos,
outros tantos centros do sistema
em que o dia se move
(sempre em velocidades diferentes)
sem sair do lugar.
Porque
quando todos esses sóis se apagam
resta a cidade vazia
(como Alcântara)
no mesmo lugar.
Porque
diferentemente do sistema solar
a esses sistemas
não os sustém o sol e sim
os corpos
que em torno dele giram:
não os sustém a mesa
mas a fome
não os sustém a cama
e sim o sono
não os sustém o banco
e sim o trabalho não pago
E essa é a razão por que
quando as pessoas se vão
(como em Alcântara)
apagam-se os sóis (os
potes, os fogões)
que delas recebiam o calor
essa é a razão
por que em São Luís
donde as pessoas não se foram
ainda neste momento a cidade se move
em seus muitos sistemas
e velocidades
pois quando um pote se quebra
outro pote se faz
outra cama se faz
outra jarra se faz
outro homem
se faz
para que não se extinga
o fogo
na cozinha da casa
O que eles falavam na cozinha
ou no alpendre do sobrado
(na Rua do Sol)
saía pelas janelas
se ouvia nos quartos de baixo
na casa vizinha, nos fundos da Movelaria
(e vá alguém saber
quanta coisa se fala numa cidade
quantas vozes
resvalam por esse intrincado labirinto
de paredes e quartos e saguões,
de banheiros, de pátios, de quintais
vozes
entre muros e plantas,
risos
que duram um segundo e se apagam)
E são coisas vivas as palavras
e vibram da alegria do corpo que as gritou
têm mesmo o seu perfume, o gosto
da carne
que nunca se entrega realmente
nem na cama
senão a si mesma
à sua própria vertigem
ou assim
falando
ou rindo
no ambiente familiar
enquanto como um rato
tu podes ouvir e ver
de teu buraco
como essas vozes batem nas paredes do pátio vazio
na armação de ferro onde seca uma parreira
entre arames
de tarde
numa pequena cidade latino-americana.
E nelas há
uma iluminação mortal
que é da boca
em qualquer tempo
mas que ali
na nossa casa
entre móveis baratos
e nenhuma dignidade especial
minava a própria existência.
Ríamos, é certo,
em torno da mesa de aniversário coberta de pastilhas
de hortelã enroladas em papel de seda colorido,
ríamos, sim,
mas
era como se nenhum afeto valesse
como se não tivesse sentido rir
numa cidade tão pequena.
O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade
mas variados são os modos
como uma coisa
está em outra coisa:
o homem, por exemplo, não está na cidade
como uma árvore está
em qualquer outra
nem como uma árvore
está em qualquer uma de suas folhas
(mesmo rolando longe dela)
O homem não está na cidade
como uma árvore está num livro
quando um vento ali a folheia
a cidade está no homem
mas não da mesma maneira
que um pássaro está numa árvore
não da mesma maneira que um pássaro
(a imagem dele)
está/va na água
e nem da mesma maneira
que o susto do pássaro
está no pássaro que eu escrevo
a cidade está no homem
quase como a árvore voa
no pássaro que a deixa
cada coisa está em outra
de sua própria maneira
e de maneira distinta
de como está em si mesma
a cidade não está no homem
do mesmo modo que em suas
quitandas praças e ruas
Buenos Aires, maio-outubro, 1975.