Rui Pires Cabral – Recomeço

O primeiro cigarro do dia é na varanda
quando faz sol: misteriosamente o terraço
do vizinho continua a concentrar a tristeza
do bairro inteiro. Mal acordado, juntas as linhas
que te permitem perceber quem és, onde estás,
o que terás de fazer a seguir. E a angústia
que te abraça é a memória mais antiga
que possuis, vem das casas de Bragança
e Moncorvo, já a conhecias antes de lhe seres
formalmente apresentado. Tu nunca quiseste
pertencer. Só à ponta da navalha. Só no fundo
do beco, encurralado. Meu Deus, que vocação
para o desassossego. Mas será um sinal de resistência
ou uma espécie de defeito anímico? Tanto faz
vamos, põe a cafeteira ao lume. E recomeça.

Rui Pires Cabral – Welcome Break

Estações de serviço
como ilhas de vidro
no mar alto dos campos.
O acaso governa
as estradas e os viajantes
que se cruzam despidos
da teia do seu passado.
Atravesso há horas
um país chuvoso:
anoiteceu
e não se vê ninguém
nas aldeias. Contra
o seu escuro mistério,
estas casas são reais?
Nelas nasceu gente
que depois quis partir
para dizer, como eu,
não sou daqui, sou
da hora que passa?

Rui Pires Cabral – Morada

Nós vivemos na cidade quase sempre perdidos
nas nossas pequenas razões. Estas ruas
ainda prometem mais do que podem cumprir?
A breve epifania do amor ou simplesmente
um cúmplice que nos diga, à mesa de um café,
que não faz mal, que pouco importam
as perdas e danos que sofremos.

De qualquer modo o mundo continua.

Entre o medo e a esperança
procuramos a nossa incerta morada
e enquanto isso envelhecemos mais um dia,
colhidos pelo tempo em plena queda. Nas praças,
nos quintais, a noite aparece depois do jantar
cheia de boas promessas, mas já vem condenada
ao tropel dos crentes, ao cego movimentos da manhã.

Rui Pires Cabral – Nunca se Sabe

Papéis velhos com poemas: são o joio
das gavetas. Relê-los causa aversão
e uma espécie de tristeza arrependida –
são tão nossos como as más recordações
e ainda vemos a circunstância precisa,
a causa, a ferida, por detrás de cada um.

Mas na altura havia esperança: é isso
que representam. Não pelas coisas que
dizem – é só descrença e fastio – mas
pela simples razão de termos querido
guardá-los. Com um pouco mais de alento,
de inspiração e trabalho, ainda se endireita
isto. Ou seja, os versos. E até a vida.

Rui Pires Cabral – «He loved beauty that looked kind of destroyed»

Gostava dessa espécie de beleza
que podemos surpreender a cada passo,
desvelada pelo acaso numa esquina
de arrabalde; a beleza de uma casa devoluta
que foi toda a infância de alguém,
com visitas ao domingo e tardes no quintal
depois da escola; a beleza crepuscular
de alguns rostos num retrato de família
a preto e branco, ou a de certos hotéis
que conheceram há muito os seus dias de fulgor
e foram perdendo estrelas; a beleza condenada
que nos toma de repente, como um verso
ou o desejo, como um copo que se parte
e dispersa no soalho a frágil luz de um instante.
Gostava de tudo isso que o deixava muito a sós
consigo mesmo, essa espécie de beleza arruinada
onde a vida encontra o espelho mais fiel.

Rui Pires Cabral – “Are Others Happier?”

para a Helena Gaspar

Quando se sentam a ler
nos grandes átrios da noite
entre mil luzes, jogos de água,
escadas que rolam ainda
sob cúpulas de betão –
são mais felizes?

Quando saem do trabalho
acossados pelo vento
de meados de Fevereiro
e é sempre segunda-feira
nas paragens do eléctrico –
são mais felizes?

Quando se cruzam connosco
no remanso dos jardins
e encontram outro caminho
de mistério, de desejo
na nossa imaginação –
são mais felizes?

Quando os vemos mais
pequenos, muito ao longe,
nas esplanadas sobre o mar
e por momentos nos lembram
que tudo se há-de perder –
são mais felizes?

Rui Pires Cabral – Cartas

Escreves-me cartas, sou o destinatário
da tua solidão. E sempre compreendo
tudo, mesmo o que não dizes, o que tinge
as entrelinhas de um branco desespero

que é tanto teu como meu: não tens
quem te salve, envelheceste, trataste mal
de um jardim que não chegou a vingar.
Se nos cruzássemos nas ruas desta cidade

entre desconhecidos de toda a sorte, talvez
nos sentássemos a falar da nossa vida, isto é,
de como vamos ficando cada vez mais órfãos
de nós próprios. Ou, pensando bem, talvez não.