Ivan Junqueira – Vésperas

A tarde descortina
uma paisagem híspida:
no galho seco, o ninho
é uma inútil relíquia
que a luz do sol calcina
até a estrita cinza.
Gota a gota, o alambique
das horas se esvazia,
e dilui-se a vertigem
do álcool que lhe mordia
as veias retorcidas.
Êxtase da agonia
no crepúsculo a pino.
Sob o céu que definha,
alguém lê, num papiro,
o que afligiu o espírito
de Plotino e Agostinho,
e relembra a lascívia
do fogo que engoliu
Cartago e Alexandria.

Louise Glück – Vésperas (10)

Fim de agosto. Calor
como em uma estufa sobre a
horta de John. E algumas coisas
tem a coragem de despertar,
cachos de tomates, talhões
de lírios tardios – otimismo
das grandes hastes – ouro
e prata imperiais: mas por que
começar qualquer coisa
tão perto do fim?
Tomates que nunca amadurecerão, lírios
que o inverno matará, que não
retornarão na primavera. Ou
você acha que
eu passo tempo demais
pensando no futuro, como
uma velha vestindo
suéteres no verão;
você está dizendo que eu posso
florescer, sem nenhuma esperança
de perdurar? Despontar de vermelhas faces, glória
de gargantas abertas, brancas,
manchadas de carmesim.

Trad.: Nelson Santander

Vespers (10)

End of August. Heat
like a tent over
John’s garden. And some things
have the nerve to be getting started,
clusters of tomatoes, stands
of late lilies — optimism
of the great stalks — imperial
gold and silver: but why
start anything
so close to the end?
Tomatoes that will never ripen, lilies
winter will kill, that won’t
come back in spring. Or
are you thinking
I spend too much time
looking ahead, like
an old woman wearing
sweaters in summer;
are you saying I can
flourish, having
no hope
of enduring? Blaze of the red cheek, glory
of the open throat, white,
spotted with crimson.

Louise Glück – Vésperas (9)

Sua voz se foi agora; eu mal consigo ouvi-lo.
Sua voz estrelada é apenas sombra agora
e a terra está escura novamente
com suas grandes reviravoltas.

E de dia a grama fica parda em alguns lugares
sob as sombras dos carvalhos.
Agora, em toda parte eu sou assunto para o silêncio,

portanto, está claro que não tenho acesso a você;
Eu não existo para você, você rabiscou
um traço sobre o meu nome.

Com que desprezo você nos aprisiona
para crermos que somente a perda pode imprimir
seu poder sobre nós,

as primeiras chuvas de outono agitando os lírios brancos –

Quando você parte, você parte absolutamente,
deduzindo a vida visível de todas as coisas,

Mas não toda vida,
para que não nos desviemos de você.

Trad.: Nelson Santander

Vespers

Your voice is gone now; I hardly hear you.
Your starry voice all shadow now
and the earth dark again
with your great changes of heart.

And by day the grass going brown in places
under the broad shadows of the maple trees.
Now, everywhere I am talked to by silence

so it is clear I have no access to you;
I do not exist for you, you have drawn
a line through my name.

In what contempt do you hold us
to believe only loss can impress
your power on us,

the first rain of autumn shaking the white lilies –

When you go, you go absolutely,
deducting visible life from all things

but not all life,
lest we turn from you.

Louise Glück – Vésperas (7)

Eu sei o que você planejou, o que pretendia fazer quando me ensinou
a amar o mundo, tornando impossível
afastar-me completamente, fechar-me completamente outra vez –
está em toda parte; quando eu fecho meus olhos,
o canto dos pássaros, o aroma de lilás do início da primavera, o aroma de verão das rosas:
você quer apartar de mim, cada flor, cada conexão com a terra –
e porque você me magoou, e porque você me quer
desolada ao final, a menos que você me queira tão carente de esperança
eu me recusaria a enxergar que no fim
nada me restou, e acreditaria, ao invés disso,
que ao final apenas você foi deixado para mim.

Trad.: Nelson Santander

Vespers

I know what you planned, what you meant to do, teaching me
to love the world, making it impossible
to turn away completely, to shut it out completely ever again —
it is everywhere; when I close my eyes,
birdsong, scent of lilac in early spring, scent of summer roses:
you mean to take it away, each flower, each connection with earth —
why would you wound me, why would you want me
desolate in the end, unless you wanted me so starved for hope
I would refuse to see that finally
nothing was left to me, and would believe instead
in the end you were left to me.

Louise Glück – Vésperas (6)

Você pensou que nós não soubéssemos. Mas nós sabíamos,
as crianças sabem essas coisas. Não nos dê as costas agora –
     nós habitávamos
uma mentira para apaziguá-lo. Eu me lembro
da luz do sol do início da primavera, os taludes
reticulados por vincas roxas. Eu me lembro
de me deitar em um campo, roçando o corpo do meu irmão.
Não nos dê as costas agora; nós rejeitamos
as memórias para consola-lo. Nós o imitamos, recitando
os termos de nossa punição. Eu me lembro
de alguns deles, não de todos: o logro
começa com o esquecimento. Eu me lembro de pequenas coisas, flores
crescendo sob o espinheiro branco, os sinos
da scilla selvagem. Não de tudo, mas o suficiente
para saber que você existe. Quem mais teria motivos para criar
desconfianças entre um irmão e uma irmã além daquele
que lucrou, a quem nos voltamos em solidão? Quem mais
invejaria tanto o vínculo que tínhamos na época
a ponto de dizer-nos que não era a terra
mas o céu que estávamos perdendo?

Trad.: Nelson Santander

Vespers

You thought we didn’t know. But we knew once,
children know these things. Don’t turn away now —
     we inhabited
a lie to appease you. I remember
sunlight of early spring, embankments
netted with dark vinca. I remember
lying in a field, touching my brother’s body.
Don’t turn away now; we denied
memory to console you. We mimicked you, reciting
the terms of our punishment. I remember
some of it, not all of it: deceit
begins as forgetting. I remember small things, flowers
growing under the hawthorn tree, bells
of the wild scilla. Not all, but enough
to know you exist: who else had reason to create
mistrust between a brother and sister but the one
who profited, to whom we turned in solitude? Who else
would so envy the bond we had then
as to tell us it was not earth
but heaven we were losing?

Louise Glück – Vésperas (5)

Assim como você apareceu para Moisés, porque
eu preciso de você, você aparece para mim,
raramente, porém. Eu vivo essencialmente
nas trevas. Você talvez esteja me treinando para ser
mais responsivo ao menor brilho. Ou, como os poetas,
será você estimulado pelo desespero, o sofrimento
o leva a revelar sua natureza? Esta tarde,
no mundo material para o qual você normalmente
contribui com seu silêncio, subi
a pequena colina acima dos mirtilos selvagens, metafisicamente
descendo, como em todas as minhas caminhadas: terei ido fundo o suficiente
para que você tenha piedade de mim, do mesmo jeito como você às vezes se apieda
de outros que sofrem, favorecendo aqueles
com dons teológicos? Como você previu,
não olhei para cima. Então você veio até mim:
aos meus pés, não as céreas
folhas do mirtilo selvagem, mas o seu eu flamejante, uma pastagem
inteira em chamas, e além, o sol, nem se pondo, nem nascendo –
Eu não era uma criança; eu podia tirar proveito das ilusões.

Trad.: Nelson Santander

Vespers

Even as you appeared to Moses, because
I need you, you appear to me, not
often, however. I live essentially
in darkness. You are perhaps training me to be
responsive to the slightest brightening. Or, like the poets,
are you stimulated by despair, does grief
move you to reveal your nature? This afternoon,
in the physical world to which you commonly
contribute your silence, I climbed
the small hill above the wild blueberries, metaphysically
descending, as on all my walks: did I go deep enough
for you to pity me, as you have sometimes pitied
others who suffer, favoring those
with theological gifts? As you anticipated,
I did not look up. So you came down to me:
at my feet, not the wax
leaves of the wild blueberry but your fiery self, a whole
pasture of fire, and beyond, the red sun neither falling nor rising—
I was not a child; I could take advantage of illusions.

Louise Glück – Vésperas (4)

Eu não pergunto mais onde você está.
Você está no jardim; você está onde John está,
no terreiro, absorto, segurando sua espátula verde.
É assim que ele jardina: quinze minutos de intenso esforço,
quinze minutos de estática contemplação. Às vezes
eu trabalho ao lado dele, em tarefas de apoio,
capinando, esfolhando as alfaces; às vezes eu o observo
do alpendre próximo ao jardim de cima até o crepúsculo fazer
lâmpadas dos primeiros lírios: em todo esse tempo,
a paz nunca o abandona. Mas corre através de mim,
não como o sustento que mantém as flores,
mas como a luz brilhante através da árvore nua.

Trad.: Nelson Santander

Vespers

I don’t wonder where you are anymore.
You’re in the garden; you’re where John is,
in the dirt, abstracted, holding his green trowel.
This is how he gardens: fifteen minutes of intense effort,
fifteen minutes of estatic contemplation. Sometimes
I work beside him, doing the shade chores,
weeding, thinning the lettuces; sometimes I watch
from the porch near the upper garden until twilight makes
lamps of the first lilies: all this time,
peace never leaves him. But it rushes through me,
not as sustenance the flower holds,
but like the bright light through the bare tree.

Louise Glück – Vésperas (3)

Além de mim, muito provavelmente
você ama ainda mais os animais do campo; até
possivelmente o próprio campo, pontilhado em agosto
de chicórias-bravas e ásteres.
Eu sei. Eu me comparei
àquelas flores, à sua gama de sentimentos
muito menores e sem problemas; também à ovelha branca,
na verdade, cinza: eu sou particularmente
apta a louva-lo. Então por que
você me atormenta? Eu estudei as piloselas,
os ranúnculos protegidos das manadas
por serem tóxicos. A dor
é o seu presente para fazer-me
consciente de minha necessidade por você, como se
eu precisasse de você para idolatra-lo,
ou você me abandonou
em favor do campo, as estoicas ovelhas ficando
prateadas no crepúsculo; as ondas de ásteres e chicórias bravas brilhando
em azul claro e azul intenso, por saber
como o traje dele é.

Trad.: Nelson Santander

Vespers

More than you love me, very possibly
you love the beasts of the field, even,
possibly, the field itself, in August dotted
with wild chicory and aster:
I know. I have compared myself
to those flowers, their range of feeling
so much smaller and without issue; also to white sheep,
actually gray: I am uniquely
suited to praise you. Then why
torment me? I study the hawkweed,
the buttercup protected from the grazing herd
by being poisonous: is pain
your gift to make me
conscious in my need of you, as though
I must need you to worship you,
or have you abandoned me
in favor of the field, the stoic lambs turning
silver in twilight; waves of wild aster and chicory shining
pale blue and deep blue, since you already know
how like your raiment it is.

Louise Glück – Vésperas (2)

Em sua prolongada ausência, você me permite
usar a terra, antecipando
algum retorno do investimento. Eu devo reportar
que falhei em minha missão, principalmente
em relação à plantação de tomates.
Acho que eu não devo ser encorajada a cultivar
tomates. Ou, se for, você deve reter
as fortes chuvas, as gélidas noites que são
tão comuns por aqui, enquanto em outras regiões faz
doze semanas de verão. Tudo isso
pertence a você: por outro lado,
eu plantei as sementes, assisti os primeiros brotos
como asas rasgando o solo, e foi meu coração
que se partiu com a praga, as manchas negras se multiplicando
tão rapidamente na plantação. Eu duvido
que você tenha um coração, na acepção em que usamos
este termo. Você que não discrimina
entre os mortos e os vivos, que são, em consequência,
imunes aos presságios, talvez você não saiba
o quanto de terror temos que suportar, as folhas oxidadas,
as folhas vermelhas do carvalho caindo
mesmo em agosto, na escuridão matinal: eu sou responsável
por essas videiras.

Trad.: Nelson Santander

Vespers

In your extended absence, you permit me
use of earth, anticipating
some return on investment. I must report
failure in my assignment, principally
regarding the tomato plants.
I think I should not be encouraged to grow
tomatoes. Or, if I am, you should withhold
the heavy rains, the cold nights that come
so often here, while other regions get
twelve weeks of summer. All this
belongs to you: on the other hand,
I planted the seeds, I watched the first shoots
like wings tearing the soil, and it was my heart
broken by the blight, the black spot so quickly
multiplying in the rows. I doubt
you have a heart, in our understanding of
that term. You who do not discriminate
between the dead and the living, who are, in consequence,
immune to foreshadowing, you may not know
how much terror we bear, the spotted leaf,
the red leaves of the maple falling
even in August, in early darkness: I am responsible
for these vines.

Louise Glück – Vésperas (1)

Uma vez acreditei em você; plantei uma figueira.
Aqui, em Vermont, uma terra
que não conhece o verão. Era um teste: se a árvore sobrevivesse,
significaria que você existe.

Segundo essa lógica, você não existe. Ou existe
exclusivamente em climas mais quentes,
na fervorosa Sicília, no México e na Califórnia,
onde crescem o inimaginável
damasco e o vulnerável pêssego. Talvez
vejam sua face na Sicília; aqui, nós mal conseguimos enxergar
a barra da sua túnica. Terei que me disciplinar
para dividir com John e Noah a colheita de tomate.

Se houver justiça em outro mundo, aqueles
como eu, cuja natureza os força
a uma vida de abstinência, deveriam ficar
com a maior parte de tudo, com todos
os objetos de desejo, a cobiça
como um louvor a você. E ninguém louva
mais intensamente do que eu, que tem o
desejo mais dolorosamente controlado, o mais digno de
sentar à sua mão direita, se ela existir, partilhando
do perecível, do imortal figo,
que não conhece outras terras.

Trad.: Nelson Santander

Vespers

Once I believed in you; I planted a fig tree.
Here, in Vermont, country
of no summer. It was a test: if the tree lived,
it would mean you existed.

By this logic, you do not exist. Or you exist
exclusively in warmer climates,
in fervent Sicily and Mexico and California,
where are grown the unimaginable
apricot and fragile peach. Perhaps
they see your face in Sicily; here we barely see
the hem of your garment. I have to discipline myself
to share with John and Noah the tomato crop.

If there is justice in some other world, those
like myself, whom nature forces
into lives of abstinence, should get
the lion’s share of all things, all
objects of hunger, greed being
praise of you. And no one praises
more intensely than I, with more
painfully checked desire, or more deserves
to sit at your right hand, if it exists, partaking
of the perishable, the immortal fig,
which does not travel.