Luis Alberto de Cuenca – O véu protetor

Amanheceu e nós estávamos dentro
da vil realidade, o que não pode
ser bom. Melhor seria que passassem
logo as horas inúteis em que o dia
proscreve a aventura com as normas
do tédio laboral, e que voltassem
a noite e as suas estrelas a envolver-nos
no seu véu fantástico e a dar-nos
a inútil sensação de estarmos vivos.

Trad.: Miguel Filipe Mochila

Luis Alberto de Cuenca – A casa da minha infância

Fui feliz naquela casa repleta de flores
e de livros proibidos. A casa em que tu eras
Ginevra nos nossos jogos, e eu era o rei Artur
(não havia Lancelote para arruinar tudo).
A casa onde foste donzela das minhas ânsias,
senhora dos meus suspiros, muralha em meu peito,
cofre do meu tesouro, brinde dos meus soldados.
A casa que tinha uma arca misteriosa
que guardava o segredo da sabedoria
e do amor eterno, e a droga da fé,
a taça do esquecimento, o cálice da coragem.
A casa onde, à tarde, com sonhos partilhados,
enquanto a roupa dourava ao sol lá na varanda,
te nomeei soberana de um reino em que a noite
não existia e a morte não ditava as leis.

Trad.: Miguel Filipe Mochila

La casa de mi infancia

Fui feliz en aquella casa llena de flores
y de libros prohibidos. La casa en que tú eras
Ginebra en nuestros juegos, y yo era el rey Arturo
(no había un Lanzarote que echara a perder todo).
La casa donde fuiste doncella de mis ansias,
dueña de mis suspiros, muralla de mi pecho,
cofre de mi tesoro, brindis de mis soldados.
La casa que tenía un arcón misterioso
que guardaba el secreto de la sabiduría
y del amor eterno, la droga de la fe,
la copa del olvido y el cáliz del coraje.
La casa en que una tarde de sueños compartidos,
mientras se soleaba la ropa en la terraza,
te nombré soberana de un reino en que la noche
no existía y la muerte no dictaba sus leyes.

Miquel Martí i Pol – No ano que vem

No ano que vem já ninguém reparará em nós.
Agora somos recém-chegados e fitam-nos com desprezo
até mesmo os que andam por cá há quarenta anos
e já nada os muda.
Temos um ar aturdido e tenaz
que faz rir as mulheres
e quase nem nos atrevemos a mexer a cabeça
por temor a perder o equilíbrio.

Daqui a um ano, porém, já teremos mudado de pele,
envergaremos a roupa com mais desenvoltura,
perseguiremos as raparigas
e teremos aprendido a dizer palavras duras
sem que sintamos as pernas a tremer.
Chegará então o momento de esperar os outros,
os recém-chegados do turno de entrar no jogo
e faremos parte, já para sempre, do bando que odiávamos,
será o momento de ensaiar formas novas
de ganhar o fôlego de uma gargalhada
de estúpida cumplicidade
ou talvez uma ruidosa blasfémia de surpresa.

E envelheceremos depressa,
pois nada cansa tanto quanto conquistar
em só um ano tudo aquilo que almejávamos.

Trad.: Miguel Filipe Mochila

 

Miquel Martí i Pol – El año que viene ya nadie se fijará en nosotros…

El año que viene ya nadie se fijará en nosotros.
Ahora somos recién llegados y nos miran con desprecio
hasta los que llevan aquí cuarenta años
y nada les altera.
Tenemos un aire aturdido y tenaz
que hace reír a las mujeres
y apenas si nos atrevemos a girar la cabeza
por temor a perder el equilibrio.

De aquí en un año, sin embargo, habremos mudado la piel,
llevaremos la ropa con más desenvoltura,
perseguiremos a las chicas
y tendremos que decir palabras duras
sin sentir que nos tiemblan las piernas.
Será entonces el momento de esperar a los otros,
a los recién llegados con turno de entrar en el juego
formando parte ya para siempre del bando que odiábamos
el momento de intentar formas nuevas
de ganarse el halago con una risotada
en estúpida complicidad,
o tal vez una ruidosa blasfemia de sorpresa.

Y envejeceremos deprisa,
porque nada cansa tanto como lograr
en un solo año todo lo que anhelábamos.