O lançamento do filme “Bohemian Rhapsody“, que conta a história do Queen e, principalmente, do seu vocalista, o falecido Fred Mercury, me fez relembrar uma história antiga acontecida comigo. A história de um evento que mudou a minha vida toda…
Era o final dos anos 70 e eu tinha pouco mais de 12 anos. Morava em Avaré, uma pequena cidade que, na época, não tinha sequer uma emissora FM. Eu gostava de música. Muito. Começava a aprender a tocar violão e gostava de cantar – cheguei a ganhar um “concurso de calouros” no ginásio em que estudava, na Vila Martins.
Só tinha um problema: eu aprendera a gostar de música com o meu pai e, meio que por osmose, acabei herdando também o gosto musical dele que, apesar de relativamente diversificado, tinha um forte viés para músicas de fossa: serestas, valsas, sertanejo raiz (pouco), tangos, músicas regionais e, principalmente, samba canção. Ele tinha dezenas de LP’s e por hábito sentar na sala, após o jantar, ou aos finais de semana, para ouvi-los. Era um grande entusiasta de seus artistas e canções preferidos. As lembranças que tenho desse período são as do meu pai sentado em um sofá, completamente absorto ouvindo disco atrás de disco. Ou então dele me dizendo: “Preste atenção nessa letra, olha que poema!”
E foi assim que cresci ouvindo gente como Moacir Franco (“Suave é a noite, a noite é de nós dois…”), Gastão Fornenti (“Maringá, maringá / Depois que tu partiste / Tudo aqui ficou tão triste / Que eu garrei a ‘maginá’…”), Agnaldo Timóteo (“Se eu demoro mais aqui eu vou morrer / Isso é bom, mas eu não vivo sem você…”), Vicente Celestino (“Tornei-me um ébrio na bebida, busco esquecer / Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou…”), Carlos Galhardo (“Eu sonhei que tu estavas tão linda / Numa festa de raro esplendor…”).
E Nelson Gonçalves, muito Nelson Gonçalves.
Meu pai tinha inúmeros LP’s do intérprete de “A Volta do Boêmio”, a quem ele considerava (e considera até hoje) o maior cantor brasileiro de todos os tempos. Sua anedota preferida sobre seu ídolo era uma passagem, contada pelo próprio Nelson, em que o cantor teria ido aos Estados Unidos em 61 para se apresentar no Radio City Music Hall, em Nova York, e Frank Sinatra em pessoa teria declarado que nunca havia ouvido uma voz tão sensacional. Eu nem sabia quem era Frank Sinatra, mas ficava devidamente impressionado. E tome “Maria Betânia”, “Naquela Mesa”, “Fica comigo essa noite”, “A deusa da minha rua”, “Caminhemos”, etc.
Sim, as canções que meu pai ouvia eram um tanto quanto melancólicas (especulo se a preferência que ele demonstrava por aquelas canções tristes e sombrias já não seria o indício de que ele sofria de um mal que o aflige até hoje – a depressão. Ou, vai saber?, se a exposição contínua àquele tipo de música não foi a causadora da doença…). Mas eu não seria absolutamente honesto se não dissesse também que, no meio de tantas obras tristes e deprimentes, eu acabei exposto igualmente a algumas das maiores obras-primas da MPB. De cabeça, me ocorre, por exemplo, a difícil e nostálgica melodia de “Maria Bethânia“, de Capiba, na impressionante interpretação de Nelson Gonçalves. E a letra de “Chão de Estrelas“, interpretada por Silvio Caldas, que tinha versos como:
“Nossas roupas comuns dependuradas
Na corda qual bandeiras agitadas
Pareciam um estranho festival
Festa dos nossos trapos coloridos
A mostrar que nos morros mal vestidos
É sempre feriado nacional
A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua furando nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas nos astros distraída
(…)”
E quando eu estava aparentemente destinado a gostar desses estilos musicais pela vida afora, o acaso, como uma benção, interveio.
Um dia, eu estava em frente à casa de meus pais, na Rua Amaral Pacheco, quando passou uma moto voando. Depois de percorrer uns 30 metros, ela passou sobre um buraco o que fez com que ela desse um pinote. De onde eu estava, percebi quando um objeto pequeno que se encontrava na moto foi ao chão. O motoqueiro nem viu, e ele corria tanto que sequer me deu tempo de esboçar um aviso. Corri para o local e o que encontrei foi uma velha fita cassete (se não me engano, da Basf), sem nenhuma anotação indicando o seu conteúdo. Fui até a casa de meus pais e coloquei-a para tocar no novo “Três em Um” que meu pai havia adquirido recentemente.
E então minha vida se transformou. Não, não é um exagero dizer isso, e se você ainda está lendo esse textão vai entender por que.
A fita (pirata) era uma coletânea gravada por alguém de várias canções de pop rock. Esclareço desde já que, para mim, o pop rock se resumia a Elvis Presley, Carlos Gonzaga e a alguns trabalhos do Roberto Carlos na jovem guarda – artistas que constavam da discoteca de meu pai. Ainda não havia para mim Rita Lee. Nem Beatles, nem Led Zeppelin, nem Rolling Stones, Bowie ou The Jackson 5. E fita pirata trazia coisas muito diferentes do que eu conhecia. Faz muitos anos e eu não me lembro de quase nenhuma canção daquela fita, mas ficou em minha memória afetiva que tudo o que havia lá era fantástico e que tudo o que havia lá me levou a ampliar meus horizontes musicais.
Lembro-me com certeza apenas de três canções.
Havia um rock com uma pegada inocente, porém marcante, que, anos depois, descobri se tratar de uma canção dos Beach Boys, intitulada “Then I Kissed Her“. Havia também uma das canções mais bonitas compostas pela dupla Elton John e Bernie Taupin: “Skyline Pigeon“, oitava canção do álbum de estréia de Elton John, “Empty Sky”. A fita trazia uma versão ao vivo dessa canção, cuja gravação nunca mais encontrei, mesmo nos Deezers da vida. Ainda acho que essa canção tem uma das melodias mais bonitas do pop de todos os tempos.
E, principalmente, havia “Bohemian Rhapsody“, do Queen. Não consigo descrever em palavras qual foi a experiência de ouvir essa canção pela primeira vez. Um misto de surpresa e embasbacamento. Só me ocorria questionar como alguém conseguira construir artisticamente algo assim. Para quem se habituara às vozes graves de cantores como Francisco Alves e Nelson Gonçalves, era uma agradável surpresa ouvir toda a extensão vocal de Fred Mercury. Aliás, arranjos vocais eram raros no Brasil e “Bohemian Rhapsody” era inteiramente construída em cima deles. Outra coisa que me deixou assombrado nesta música foi a variedade de, digamos, ‘estilos musicais’ dentro de uma mesma canção: ela começa com um arranjo de vocais à capela, segue para uma balada baseada em uma linha de piano muito bonita, vai para um solo “matador” de Brian May, alcança o ápice com um arranjo vocal operístico seguido por um rock pesado baseado na guitarra de May e termina com, novamente, uma balada e os versos finais:
Nothing really matters
Anyone can see
Nothing really matters
Nothing really matters to me
Anyway the wind blows
Isso tudo era novidade total para mim. As músicas que eu ouvia tinham o esquema básico de introdução / parte principal / estribilho / repetição da parte principal /e fim. Aquilo era completamente diferente de tudo o que eu jamais ouvira. E os arranjos de guitarra? Para quem estava acostumado a arranjos com violão de sete cordas, bandolim e flauta, ouvir o trabalho de guitarras construído por Brian May e Fred Mercury era um verdadeiro soco no estômago: a sonoridade das guitarras, o solo impactante, as harmonizações das cordas com os vocais da banda, tudo era novo, surpreendente e arrebatador.
Nunca mais fui o mesmo depois daquela fita. Mudei de estilo musical, passei a querer tocar guitarra e me tornar músico. Em breve, eu já estava tocando guitarra e cantando em bailes em uma banda – o “Magia Tropical”. De lá, já no início dos anos 80, fui convidado para tocar em outra banda, maior e melhor estruturada, chamada “Merlin’s Message”, de Piraju. Onde conheci e vim a me casar com minha esposa. O resto é história.
Como eu disse, não há exagero nenhum em dizer que uma fita cassete pirata vagabunda, caída de uma moto, mudou a minha vida toda. E você? Qual foi a “fita cassete” que mudou seus rumos?
PS.: Essa postagem não existiria se Maria Silvia Cabrini não tivesse me enviado, dias atrás, um sensacional podcast do Café Brasil (http://www.portalcafebrasil.com.br/podcasts/455-bohemian-rhapsody-revisitada/), em que o narrador fazia uma análise bem bacana da “magnum opus” do Queen. O podcast começa com a descrição de uma experiência musical por um bando de garotos muito parecida com a que narrei acima, o que me inspirou a fazer essa postagem.
Escrevi também para que meu irmão Vladimir Santander pare de me encher o saco. A história é um clássico familiar, principalmente porque minha mudança de gosto musical realinhou automaticamente o gosto dos meus irmãos mais novos (com exceção de um, que adora música sertaneja… argh!), levando-os a também gostar das mesmas coisas que eu. O Vlade costuma dizer, com ironia, que não entende como eu consigo permanecer ateu diante de um fato como esse: “Nelsinho, você não vê que essa é a maior prova da existência de Deus??? Não quero assustar você, não, mas por ser tão ingrato acho que você vai passar uns 3 séculos no limbo depois que morrer. E como provavelmente serei eu a resgatar você, vou ser obrigado a dizer: #euavisei …”
Vai saber? Se já encontraram Deus em uma moita pegando fogo, em sonhos, em delírios, etc., por que Ele não haveria de aparecer também em uma velha fita cassete pirata para um adolescente perdido entre músicas de fossa e de cornos? E eu não consigo imaginar algo que se aproxime mais do divino do que a voz angelical de Fred Mercury. Amém?
(texto originalmente publicado na página pessoal que o autor do blog mantém no Facebook)
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