Eduardo Affonso – Labereda temporã

É possível voltar a se apaixonar com meio século de vida? Acreditar em amor eterno depois de amores eternos terem durado tão pouco? Em amor sem traição depois de ter traído tanto?

E por que querer de novo a ansiedade diante do telefone que não toca, da carta que não chega, da campainha que não soa? Agora, bem sei, seria diferente — não há mais cartas, quem chama é o porteiro, pelo interfone. Mas abriríamos quantas vezes a caixa de entrada dos e-mails, verificaríamos de quantos em quantos segundos se a mensagem foi visualizada?

Drummond derrapou na curva dos 50; Borges, na dos 75; Niemeyer, perto dos 100. Eram gênios, e aos gênios são concedidos dons inacessíveis aos mortais. Como o de transformar sílaba e concreto em poesia — logo, também, resignação em esperança.

Para a maioria de nós, entretanto, a paixão não sobrevive ao advento do juízo, dos cabelos brancos, do direito de estacionar nas melhores vagas e de furar a fila nos bancos. É que, assim como os ossos se tornam menos densos, o coração enrijece. Se enche de sangue mais vagarosamente. Não consegue acelerar nas subidas íngremes que a geografia do desejo nos reserva.
Já teremos, nessa idade, descoberto que há a paixão e a paixão. São, ambas, substantivos femininos, mas tão diferentes entre si quanto duas mulheres podem ser. Uma é “sentimento, entusiasmo, predileção ou amor tão intensos que se sobrepõem à lucidez e ofuscam a razão”. É a paixão de Riobaldo, de Anna Karenina, de Florentino Ariza. A outra, “sofrimento, martírio”, como a paixão de Cristo.

Vivenciamos as duas, misturadas, impelidos pelos hormônios, pelo relógio biológico, pela urgência de “Sentir tudo de todas as maneiras, / Viver tudo de todos os lados, / Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, / Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos / Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.” Fernando Pessoa pode ter sido contido e prosaico nos seus parcos amores, mas Álvaro de Campos sabia o que era estar apaixonado.
A paixão é mais fácil quando a carne é firme e, paradoxalmente, fraca. Quando os olhos enxergam melhor e veem menos. Quando a memória é perfeita e, ainda assim, se esquece tudo com maior facilidade.

Aprendemos a distinguir a paixão adolescente — essa vocação para idealizar, essa aventura de estar à deriva — do amor maduro, cheio de compreensão pelos defeitos do outro, ancorado do porto seguro do companheirismo. Cada um viria a seu tempo, cada um teria sua ocasião — como o tempo de plantar, o tempo de colher.
Mas e quando os batimentos cardíacos aceleram e não há cloridrato de propafenona ou chá de casca de limão que deem jeito? Quando a ansiedade não baixa nem com o combo de maracujina, Netflix e diazepam? A única coisa a fazer é aparar a barba, cortar o cabelo e tocar um tango argentino.

Peguei aqui: https://lulacerda.ig.com.br/opiniao-por-eduardo-affonso-labareda-tempora/?fbclid=IwAR2w9537UhgIsu9RByq0GOUDxQ923J-eH0QO1mAaTI_7KW980yrBDSF2RjQ

Gonçalo M. Tavares – Do “Diário da Peste”, 27/04/2020

Passados sete anos, duas semanas ou dois meses.
Sairá à rua uma nova espécie humana.
Cheia de vontade de construção; cheia de vontade de destruição.
Humanos 2.0.
Dois médicos beijam-se em Madrid com a máscara posta.
Os amantes, quadro de René Magritte: uma mulher e um homem beijam-se com um pano na cabeça.
A mãe de Magritte suicidou-se quando ele era adolescente.
Foi recolhida do rio com uma camisa à volta da cabeça.
Magritte estava lá, diz-se.
A camisa à volta da cabeça para ficar anónima.
Ou foi ela própria que a pôs – ou alguém para evitar que o filho a visse.
O café feito com o ritual de sempre.
Esqueço-me do final de um longo café como se até o final de uma bebida fosse terrível.
Medo do apocalipse que entra no mais mínimo dos actos.
Evitar o final das coisas.
Não bebo o final do café; falo com um amigo em Nápoles.
Ele diz-me: não bebas o final do café.
Régina, a mãe, matou-se no rio Sambre.
É difícil ter a certeza se seria uma camisa ou o vestido.
Boris Johnson regressa ao escritório na 2ª feira e na Air France dizem que a normalidade vai demorar dois anos a voltar.
Doentes com cancro adiam consultas.
Imagino que alguém interrompe a emissão da Bolsa para rezar o Pai Nosso.
Um hacker crente; exige seis Pais-Nossos e três Ave-Marias do apresentador para libertar a emissão.
O hacker está fora do século.
Não tem os mesmos deuses. Nada de dinheiro.
Exige orações.
Um historiador, Friedrich von Raumer, maravilhado com Paris do início século XX: “quem terá construído a primeira casa, quando ruirá a última”?
Talvez não exista primeira nem última.
Imagino o hacker a interromper a emissão.
A mãe pesa mais do que a força que a água faz.
Uma frase também repetida em tom de oração.
O rio faz tudo o que pode para que alguém não se afogue nele.
Mas não consegue.
O filme do coreano Lee Chang-Dong, “Poesia”.
A avó que está a ficar com Alzheimer quer escrever um poema.
Aprender poesia antes de perder a memória.
Perder memória por outro caminho.
“Para onde estás a olhar?
Para a árvore.”
O que vais fazer hoje?
Olhar para a árvore.
Tarde ocupada, olhar para: buganvília, limoeiro ou laranjeira de laranjas intragáveis.
Na cabeça, o quadro de Magritte.
Guimarães Rosa: “Medo, não, mas perdi a vontade de ter coragem”.
É um escritor russo que conta a história.
Alguém leva uma pedra para espancar o mar porque a filha se afogou ali.
É difícil uma pedra espancar o mar, mas os pais conseguem coisas que os outros humanos não.
Não terminar o dia com uma pedra.
Abro ao acaso Folhas do Jardim de Morya, o oráculo que escolhi.
Mas o sino convocará cada caminhante perdido dentro da floresta.
Gosto do começo: Mas.
Mas o sino convocará cada caminhante perdido dentro da floresta.
Quando de novo sairmos à rua que um sino qualquer exista.
Um sino para cada caminhante.

“Diário da Peste”, 27/04/2020 – Gonçalo M. Tavares

Aqui: https://expresso.pt/opiniao/2020-04-27-Diario-da-Peste.-Saira-a-rua-uma-nova-especie-humana

Rodrigo da Silva – Chegará um dia em que o seu coração parará de bater

Chegará um dia em que o seu coração parará de bater. A sua pupila dilatará. A sua pele ficará pálida e a sua temperatura corporal esfriará. Você ficará inteiramente esquálido; e então roxo. O seu sangue se tornará mais ácido com o acúmulo de dióxido de carbono. E as suas células começarão a se dividir, esvaziando as enzimas dos tecidos. O cálcio endurecerá os seus músculos. E o seu corpo passará a exalar um odor acre, fruto de uma mistura química constituída por mais de quatrocentos compostos orgânicos.

Tudo o que constitui a sua existência entrará em colapso – o que significa dizer que a sua linha do tempo chegará ao derradeiro ponto final. A partir destes preciosos segundos você não deixará mais qualquer rastro nesta bola azul gigante perdida no espaço. Não haverá mais nenhum som. Nem qualquer imagem. Nem tato. Nem cheiro. Restará apenas o inadiável: carne em processo de decomposição, um fenômeno da natureza conhecido como morte, óbito, falecimento, perecimento, fim.

E não se engane, o mundo permanecerá no mesmo lugar. As partidas de futebol não farão um minuto de silêncio em homenagem à sua história. Nas ruas os carros continuarão buzinando aleatoriamente, e nas emissoras de TV os apresentadores de telejornal prosseguirão dando notícias que você jamais ouvirá. Nas esquinas os pedestres insistirão em atravessar as ruas como se você nunca tivesse existido.

No seu círculo social, a implacável indiferença tomará conta do tempo. Os seus amigos permanecerão dedicando vastas horas ao consumo dos milhões de vídeos de gatinhos disponíveis na internet. E nas redes sociais os seus inimigos pleitearão longas batalhas retóricas sobre política com pessoas que eles nunca viram. Os seus entes mais próximos padecerão de sofrimento nas primeiras semanas, mas paulatinamente voltarão a executar os processos naturais da vida, adaptando-se à sua ausência.

Tudo permanecerá intocado: as baladas, os bares, os programas de auditório, o carnaval, os shows de humor, os barulhos ensurdecedores dos carros rebaixados. Virá a primavera, o verão, o outono, o inverno. E então tudo se repetirá num novo ciclo. Você deixará de ser carne para virar memória. E o tempo não falhará em transformar sua existência numa vaga lembrança, um túmulo abandonado no meio de um cemitério, uma refeição ordinária numa quarta-feira entediante para uma porção de bactérias e insetos.

Dentro da gente habita uma bomba relógio invisível. Ninguém sabe exatamente o prazo dela, mas o artefato abstrato atravancado é religiosamente pontual. Cada instante da vida é uma escolha sobre como gastar o tempo que o tempo tem. Mesmo a decisão que levou à leitura deste texto até aqui. Pode parecer clichê de empreendedor de palco, melodrama de parachoque de caminhão, mas você é literalmente a única pessoa no mundo capaz de administrar cada minuto que resta entre o término desta frase e o seu túmulo.

Nesse caminho, tentarão até prometer vagas soluções, parceladas em doze vezes sem juros. Mas acredite: não há outro indivíduo neste planeta apto a salvá-lo da apatia e da improdutividade. Nem quem tenha a capacidade de libertá-lo dos relacionamentos tóxicos, dos subempregos e dos vampiros emocionais. Há um monte de gente bacana lá fora esperando encontrar gente bacana. E há um monte de babaca tentando sugar cada gota da sua energia. Há um monte de coisas grandes prontas para serem conquistadas. E há o tempo perdido. É você quem determina o que fazer com o que resta desse relógio.

Chegará um dia em que o seu coração parará de bater.

Mas não hoje. Não agora.

Nelson Santander – Impermanência

Se existe algo mais fascinante do que locais abandonados eu desconheço. Toda vez que, em viagem, me deparo com uma casa desabitada há muito tempo, uma estação de trem em desuso ou o esqueleto do que um dia foi uma fábrica, acabo perdendo (ganhando) um tempo admirando o local, tentando adivinhar quem nele pisou, morou ou trabalhou, por quanto tempo esse local perdurou, que dramas humanos nele se desenrolaram.

Tudo nesses sítios em decomposição é desconcertante e belo.

As imagens que ilustram essa postagem* demonstram o que quero dizer. A devastação preside, mas não é difícil, com um pouco de imaginação, encontrar detalhes que surpreendem pela beleza, pelo inusitado, pelo poético.

Um velho piano que um dia encantou o mundo com acordes de Chopin, Beethoven, Mozart e que já não emite mais um único som há décadas; a igreja decrépita da qual nem Deus mais se lembra; uma estátua decapitada que jamais será uma Vênus de Milo; a piscina seca que hoje não serve de abrigo nem mesmo para rãs; um bar no qual apenas velhos fantasmas trocam amenidades e bebem seus uísques cowboy sem nunca ficarem de porre; o cinema que outrora exibiu a queda do império romano, longa jornada noite adentro e nunca fomos tão felizes e que agora assiste impassível o próprio the end; trilhos retos e escadas espiraladas que não levam a lugar nenhum; construções sendo devoradas pela vegetação que escala as paredes como labaredas verdes; a cama de casal que testemunhou um amor que era indomável como o fogo tornar-se fumaça e gelo e cinzas enfim (o que não tem fim sempre acaba assim, diria Humerto Gessinger).

Mas para muito além disso tudo, esses lugares nos fazem lembrar principalmente de que madeira, ferro, pano, papel, pedra, gente, tudo, absolutamente tudo se transforma, e encontra a decadência e se converte em pó e acaba. Que só uma coisa permanece: a impermanência. Que tudo o que começa não se presta para existir, mas para terminar.

Bom final de semana a todos! Ou algo parecido.

(postado originalmente na página pessoal do autor no Facebook)

* As imagens foram retiradas da internet.

Nelson Santander – Clint Eastwood

Com a derrocada de Woody Allen (meu cineasta favorito), abatido pelo #metoo, e com o avanço das séries televisivas alavancado pela Netflix, a era dos grandes diretores de Hollywood parece estar chegando ao fim.

Aqueles diretores com voz e estilo próprios, um modo particular de contar uma história e a preferência pela abordagem dos grande temas em suas obras são hoje artigos raros no ramo cinematográfico.

Quem sobrou? Quem, dos realizadores em atividade, pode ser comparado a gente como Alfred Hitchcock, Stanley Kubrick, Billy Wilder, John Ford, Sérgio Leone, Ingmar Bergman? Um Quentin Tarantino (que já anunciou que só fará mais dois filmes e depois se aposentará). Um Martin Scorsese (vivendo também o seu ocaso). Os irmãos Cohen talvez.

E quem mais? Cuarón, Almodóvar, Aronofsky, Wes Anderson, Paul Thomas Anderson, Cristopher Nolan e David Fincher são ótimos diretores. Mas só isso. Falta-lhes aquela fagulha inexplicável que diferencia os competentes dos gênios, os diluidores dos mestres e esses dos inventores (para usar a famosa classificação de escritores – que também pode ser aplicada aos diretores de cinema – sugerida por Ezra Pound).

Mas aí eu me lembro desse senhor que há décadas entrega a seu público, ano após ano, obras consistentes, muitas vezes monumentais e, acima de tudo, profundamente humanas. Dos diretores ainda em atividade, Clint Eastwood é o mais legítimo herdeiro dos grandes realizadores hollywoodianos do passado – em especial de Sergio Leone, que foi quem o lançou para o estrelato como ator e a quem ele buscava emular em seu início de carreira como cineasta (vide “O Estranho Sem Nome”).

Mas Clint Eastwood foi muito além de Sergio Leone. É verdade que sua obra prima – o faroeste “Os Imperdoáveis” – dialoga com os grandes westerns do diretor italiano. No entanto, a temática de Eastwood é bem mais diversificada. O próprio “Os Imperdoáveis” já procurava se diferenciar da obra de Sergio Leone, pois enquanto o cineasta italiano tinha óbvias predileções por grandes planos, tramas intrincadas e em emprestar um tom operístico aos seus grandes filmes (dos quais “Era uma vez no Oeste” é o exemplo mais bem acabado), em “Os Imperdoáveis”, Clint Eastwood opta pelos closes nos rostos dos atores (o que aumenta a dramaticidade da cena), por roteiros simples e objetivos e por se preocupar muito mais com a psicologia e motivação de suas personagens.

Mas o diretor americano não se limitou à realização do melhor faroeste dos últimos tempos e continuou a produzir filmes que ora surpreendiam pela delicadeza do trabalho – como o belíssimo “As Pontes de Madison” –, ora nos nocauteavam ante a abordagem crua de certos temas – como a análise das consequências do abuso sexual de menores, em “Sobre Meninos e Lobos”, e a questão da eutanásia, em “Menina de Ouro”.

Além de tudo isso, Clint Eastwood provou também que a velhice nem sempre é sinônimo de apatia criativa. Grande parte de seus melhores filmes foram realizados depois que o diretor já havia completado 70 anos de idade (ele é de 1930). Estão nesse rol: “Cowboys do Espaço” (2000), “Sobre Meninos e Lobos” (2003), “Menina de Ouro” (2004), “Gran Torino” e “A Troca” (2008) e “Sniper Americano” (2014).

E ele não para: acaba de lançar “A Mula” e “15h17: Trem para Paris”. Aos 89 anos de idade (!)

Enquanto esse Cavaleiro Solitário continuar fazendo seu trabalho, Hollywood estará redimida.

Mas e depois que ele e os outros se forem?

(Comentário publicado originalmente no Facebook: https://www.facebook.com/singularitate/posts/2009523002690187?__tn__=K-R)

Nelson Santander – Cinema Paradiso e a visita cruel do tempo

Há 30 anos, de forma despretensiosa, o diretor italiano Giuseppe Tornatore presenteava o mundo com aquele que, com o tempo, se tornaria um dos filmes mais queridos da história do cinema: “Cinema Paradiso”.

O vídeo que ilustra este texto é o da famosa cena do mosaico de beijos, aquela que encerra o filme. Sempre me questionei por que este trecho em particular me comovia tanto, em um filme repleto de passagens inesquecíveis: a cena em que Totó recebe um beijo inesperado de Elena, após ficar dias parado na frente da casa em que ela morava para provar que a amava; o trecho da demolição do cinema; o excerto em que Alfredo – o simpático projecionista da cidade – projeta o filme na parede da praça; a cena do funeral de Alfredo.

Todos esses fragmentos – verdadeiros minicontos – são dotados de elevada voltagem emotiva. Mas não se comparam à cena final na qual Totó, já um adulto de cabelos brancos e cineasta de sucesso, assiste à projeção de um filme que recebera das mãos de sua mãe, a pedido do recém-falecido Alfredo. A película, na verdade, se tratava de uma colagem de várias cenas de beijos e de algumas cenas eróticas e de nudez que o pároco de sua cidade natal costumava extirpar das películas antes da exibição dos filmes no cinema em que Totó, quando criança, trabalhava como assistente de Alfredo.

Mas por que essa passagem me comove tanto? Seria o contexto e o momento em que o trecho é inserido (logo após a passagem que mostra a demolição do cinema)? Ou o delicado tema musical composto por Ennio Morricone que acompanha o desenrolar da cena?

Não. Ou melhor, não só isso. Esses elementos conjugados são, de fato, cruciais para criar em “Cinema Paradiso” um ambiente emotivo que atinge o seu clímax na fatídica cena dos beijos. Mas, embora embevecido pelos trechos anteriores do filme e hipnotizado pela melodia inspirada de Morricone, o que mais me comove na cena é antes o vislumbre que ela nos dá de nossa própria efemeridade. Esteticamente, amor romântico e beleza física são o oposto de estar doente, o contrário da decrepitude, a antítese de morrer. Não consigo pensar em nada que represente mais o estar vivo do que as cenas que aparecem na tela: mulheres sensuais e beijos eróticos, arrebatadores, delicados, violentos, apaixonados, singelos, ou seja, todas os tipos de beijos que o amor romântico criou para se expressar. E trocados por casais formados por atores que quando filmaram tais cenas – nos anos 20, 30, 40 e 50 – se achavam no auge de sua juventude e beleza física.

Mas a sensação de transitoriedade que transborda na célebre passagem se acentua ainda mais quando nos lembramos do fato de que os atores que aparecem naquelas cenas estão todos mortos – Silvana Mangano, Vittorio Gassman, Cary Grant, Rosalind Russell, Jane Russell, Doris Duranti, Georgia Hale, Charlie Chaplin, Olivia de Havilland, Errol Flynn, Rudolph Valentino, Vilma Banky, James Stewart, Donna Reed, Vittorio de Sica, Yvonne Sanson, Anna Magnani, Marcello Mastroianni, Maria Schell, Jean Gabin, June Astor, Gary Cooper, Clark Gable, Joan Crawford, Greta Garbo, John Barrymore, Spencer Tracy, Ingrid Bergman, Gina Lollobrigida. Todos mortos – alguns há mais de 90 anos. Atores e atrizes que conheceram a fama e a fortuna, eram os mais desejados de sua época, e cuja beleza e juventude, hoje, não passam de poeira.

As lágrimas que um arrebatado Totó deixa cair ao assistir o filme são minhas também. Totó chora a saudade de tudo o que viveu e daquilo que perdeu. A mim me emociona testemunhar, impotente, na película que comove o cineasta, a inexorável marcha do tempo.

PS.: um internauta me avisa que Olivia de Havilland não está morta, tem 102 anos e mora atualmente em Paris. Quando escrevi esse texto, eu podia jurar que havia lido em algum lugar a notícia de que ela falecera há alguns anos atrás. Fica aí uma lição: depois dos 50, jamais confie em sua memória, já que o tempo – a matéria principal do meu texto – também faz estragos nesse campo. De toda forma, a ideia geral que eu quis passar permanece intacta – a decrepitude e a senilidade são as características principais da velhice profunda, e só com muita boa vontade dá para dizer que está vivendo quem chegou tão longe na corrida da existência.

Nelson Santander – Bohemian Rhapsody

O lançamento do filme “Bohemian Rhapsody“, que conta a história do Queen e, principalmente, do seu vocalista, o falecido Fred Mercury, me fez relembrar uma história antiga acontecida comigo. A história de um evento que mudou a minha vida toda…

Era o final dos anos 70 e eu tinha pouco mais de 12 anos. Morava em Avaré, uma pequena cidade que, na época, não tinha sequer uma emissora FM. Eu gostava de música. Muito. Começava a aprender a tocar violão e gostava de cantar – cheguei a ganhar um “concurso de calouros” no ginásio em que estudava, na Vila Martins.

Só tinha um problema: eu aprendera a gostar de música com o meu pai e, meio que por osmose, acabei herdando também o gosto musical dele que, apesar de relativamente diversificado, tinha um forte viés para músicas de fossa: serestas, valsas, sertanejo raiz (pouco), tangos, músicas regionais e, principalmente, samba canção. Ele tinha dezenas de LP’s e por hábito sentar na sala, após o jantar, ou aos finais de semana, para ouvi-los. Era um grande entusiasta de seus artistas e canções preferidos. As lembranças que tenho desse período são as do meu pai sentado em um sofá, completamente absorto ouvindo disco atrás de disco. Ou então dele me dizendo: “Preste atenção nessa letra, olha que poema!”

E foi assim que cresci ouvindo gente como Moacir Franco (“Suave é a noite, a noite é de nós dois…”), Gastão Fornenti (“Maringá, maringá / Depois que tu partiste / Tudo aqui ficou tão triste / Que eu garrei a ‘maginá’…”), Agnaldo Timóteo (“Se eu demoro mais aqui eu vou morrer / Isso é bom, mas eu não vivo sem você…”), Vicente Celestino (“Tornei-me um ébrio na bebida, busco esquecer / Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou…”), Carlos Galhardo (“Eu sonhei que tu estavas tão linda / Numa festa de raro esplendor…”).

E Nelson Gonçalves, muito Nelson Gonçalves. 

Meu pai tinha inúmeros LP’s do intérprete de “A Volta do Boêmio”, a quem ele considerava (e considera até hoje) o maior cantor brasileiro de todos os tempos. Sua anedota preferida sobre seu ídolo era uma passagem, contada pelo próprio Nelson, em que o cantor teria ido aos Estados Unidos em 61 para se apresentar no Radio City Music Hall, em Nova York, e Frank Sinatra em pessoa teria declarado que nunca havia ouvido uma voz tão sensacional. Eu nem sabia quem era Frank Sinatra, mas ficava devidamente impressionado. E tome “Maria Betânia”, “Naquela Mesa”, “Fica comigo essa noite”, “A deusa da minha rua”, “Caminhemos”, etc.

Sim, as canções que meu pai ouvia eram um tanto quanto melancólicas (especulo se a preferência que ele demonstrava por aquelas canções tristes e sombrias já não seria o indício de que ele sofria de um mal que o aflige até hoje – a depressão. Ou, vai saber?, se a exposição contínua àquele tipo de música não foi a causadora da doença…). Mas eu não seria absolutamente honesto se não dissesse também que, no meio de tantas obras tristes e deprimentes, eu acabei exposto igualmente a algumas das maiores obras-primas da MPB. De cabeça, me ocorre, por exemplo, a difícil e nostálgica melodia de “Maria Bethânia“, de Capiba, na impressionante interpretação de Nelson Gonçalves. E a letra de “Chão de Estrelas“, interpretada por Silvio Caldas, que tinha versos como: 

“Nossas roupas comuns dependuradas
Na corda qual bandeiras agitadas
Pareciam um estranho festival
Festa dos nossos trapos coloridos
A mostrar que nos morros mal vestidos
É sempre feriado nacional

A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua furando nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas nos astros distraída
(…)”

E quando eu estava aparentemente destinado a gostar desses estilos musicais pela vida afora, o acaso, como uma benção, interveio. 

Um dia, eu estava em frente à casa de meus pais, na Rua Amaral Pacheco, quando passou uma moto voando. Depois de percorrer uns 30 metros, ela passou sobre um buraco o que fez com que ela desse um pinote. De onde eu estava, percebi quando um objeto pequeno que se encontrava na moto foi ao chão. O motoqueiro nem viu, e ele corria tanto que sequer me deu tempo de esboçar um aviso. Corri para o local e o que encontrei foi uma velha fita cassete (se não me engano, da Basf), sem nenhuma anotação indicando o seu conteúdo. Fui até a casa de meus pais e coloquei-a para tocar no novo “Três em Um” que meu pai havia adquirido recentemente.

E então minha vida se transformou. Não, não é um exagero dizer isso, e se você ainda está lendo esse textão vai entender por que.

A fita (pirata) era uma coletânea gravada por alguém de várias canções de pop rock. Esclareço desde já que, para mim, o pop rock se resumia a Elvis Presley, Carlos Gonzaga e a alguns trabalhos do Roberto Carlos na jovem guarda – artistas que constavam da discoteca de meu pai. Ainda não havia para mim Rita Lee. Nem Beatles, nem Led Zeppelin, nem Rolling Stones, Bowie ou The Jackson 5. E fita pirata trazia coisas muito diferentes do que eu conhecia. Faz muitos anos e eu não me lembro de quase nenhuma canção daquela fita, mas ficou em minha memória afetiva que tudo o que havia lá era fantástico e que tudo o que havia lá me levou a ampliar meus horizontes musicais.

Lembro-me com certeza apenas de três canções. 

Havia um rock com uma pegada inocente, porém marcante, que, anos depois, descobri se tratar de uma canção dos Beach Boys, intitulada “Then I Kissed Her“. Havia também uma das canções mais bonitas compostas pela dupla Elton John e Bernie Taupin: “Skyline Pigeon“, oitava canção do álbum de estréia de Elton John, “Empty Sky”. A fita trazia uma versão ao vivo dessa canção, cuja gravação nunca mais encontrei, mesmo nos Deezers da vida. Ainda acho que essa canção tem uma das melodias mais bonitas do pop de todos os tempos.

E, principalmente, havia “Bohemian Rhapsody“, do Queen.  Não consigo descrever em palavras qual foi a experiência de ouvir essa canção pela primeira vez. Um misto de surpresa e embasbacamento. Só me ocorria questionar como alguém conseguira construir artisticamente algo assim. Para quem se habituara às vozes graves de cantores como Francisco Alves e Nelson Gonçalves, era uma agradável surpresa ouvir toda a extensão vocal de Fred Mercury. Aliás, arranjos vocais eram raros no Brasil e “Bohemian Rhapsody” era inteiramente construída em cima deles. Outra coisa que me deixou assombrado nesta música foi a variedade de, digamos, ‘estilos musicais’ dentro de uma mesma canção: ela começa com um arranjo de vocais à capela, segue para uma balada baseada em uma linha de piano muito bonita, vai para um solo “matador” de Brian May, alcança o ápice com um arranjo vocal operístico seguido por um rock pesado baseado na guitarra de May e termina com, novamente, uma balada e os versos finais: 

Nothing really matters
Anyone can see
Nothing really matters
Nothing really matters to me

Anyway the wind blows

Isso tudo era novidade total para mim. As músicas que eu ouvia tinham o esquema básico de introdução / parte principal / estribilho / repetição da parte principal /e fim. Aquilo era completamente diferente de tudo o que eu jamais ouvira. E os arranjos de guitarra? Para quem estava acostumado a arranjos com violão de sete cordas, bandolim e flauta, ouvir o trabalho de guitarras construído por Brian May e Fred Mercury era um verdadeiro soco no estômago: a sonoridade das guitarras, o solo impactante, as harmonizações das cordas com os vocais da banda, tudo era novo, surpreendente e arrebatador.

Nunca mais fui o mesmo depois daquela fita. Mudei de estilo musical, passei a querer tocar guitarra e me tornar músico. Em breve, eu já estava tocando guitarra e cantando em bailes em uma banda – o “Magia Tropical”. De lá, já no início dos anos 80, fui convidado para tocar em outra banda, maior e melhor estruturada, chamada “Merlin’s Message”, de Piraju. Onde conheci e vim a me casar com minha esposa. O resto é história. 

Como eu disse, não há exagero nenhum em dizer que uma fita cassete pirata vagabunda, caída de uma moto, mudou a minha vida toda. E você? Qual foi a “fita cassete” que mudou seus rumos?

 

PS.: Essa postagem não existiria se Maria Silvia Cabrini não tivesse me enviado, dias atrás, um sensacional podcast do Café Brasil (http://www.portalcafebrasil.com.br/podcasts/455-bohemian-rhapsody-revisitada/), em que o narrador fazia uma análise bem bacana da “magnum opus” do Queen. O podcast começa com a descrição de uma experiência musical por um bando de garotos muito parecida com a que narrei acima, o que me inspirou a fazer essa postagem. 

Escrevi também para que meu irmão Vladimir Santander pare de me encher o saco. A história é um clássico familiar, principalmente porque minha mudança de gosto musical realinhou automaticamente o gosto dos meus irmãos mais novos (com exceção de um, que adora música sertaneja… argh!), levando-os a também gostar das mesmas coisas que eu. O Vlade costuma dizer, com ironia, que não entende como eu consigo permanecer ateu diante de um fato como esse: “Nelsinho, você não vê que essa é a maior prova da existência de Deus??? Não quero assustar você, não, mas por ser tão ingrato acho que você vai passar uns 3 séculos no limbo depois que morrer. E como provavelmente serei eu a resgatar você, vou ser obrigado a dizer: #euavisei …” 

Vai saber? Se já encontraram Deus em uma moita pegando fogo, em sonhos, em delírios, etc., por que Ele não haveria de aparecer também em uma velha fita cassete pirata para um adolescente perdido entre músicas de fossa e de cornos? E eu não consigo imaginar algo que se aproxime mais do divino do que a voz angelical de Fred Mercury. Amém?

(texto originalmente publicado na página pessoal que o autor do blog mantém no Facebook)

Nelson Santander – Philip Roth

Morreu Philip Roth, meu último grande herói literário. Sua vasta bibliografia explora uma gama enorme de temas, mas a faceta que mais me impressionou foi a que ele abordou em seus últimos livros: a questão da velhice. A leitura de “Homem Comum” – principal obra de Roth sobre o tema – há cerca de 8 anos, quando ainda me considerava jovem demais para pensar nesse assunto, foi um choque, seja pela maneira crua e realista com que ele abordava o tema, seja por me despertar para o fato de que em breve eu mesmo estaria mergulhado nesse universo que não tem nada de ficcional. Uma coisa é certa: sua morte, aos 85, põe fim ao fardo que ele considerava esta fase da vida. Que ele consiga, ao menos, descansar em paz.

“(…) Durante algumas horas depois dos três telefonemas seguidos — e depois da banalidade e inutilidade previsíveis daquela tentativa de levantar ânimos, de fazer reviver o velho esprit de corps relembrando episódios das vidas de seus colegas, tentando encontrar coisas para dizer que pudessem animar os desesperançados e fazê-los recuar da beira do abismo —, o que ele queria fazer era não apenas ligar para sua filha, que encontrou no hospital com Phoebe, mas também reanimar a si próprio telefonando para seus pais e conversando com eles. No entanto, o que ele aprendera não era nada em comparação com a desgraça inevitável que é o final da vida. Se fosse tomar conhecimento do sofrimento mortal de cada homem e mulher que conhecera durante todos os seus anos de vida profissional, da história dolorosa de arrependimento, perda e estoicismo de cada um, de medo, pânico, isolamento e terror, se soubesse que cada coisa que lhes pertencera do modo mais visceral lhes fora arrancada e como estavam sistematicamente sendo destruídos, teria de ficar ao telefone o dia todo, e mais a noite toda, fazendo pelo menos mais umas cem ligações. A velhice não é uma batalha; a velhice é um massacre.(…)” (trecho de “Homem Comum”, Companhia das Letras, Trad. Paulo Henriques Britto, p. 74)

Paulo Mendes Campos – O Amor Acaba

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

Nelson Santander – Que a Terra lhe seja Leve

Quando tive contato pela primeira vez com o trabalho de Belchior não foi em razão da qualidade intrínseca de suas composições. Corriam os anos 80, e, como músico amador que era, eu estava mais ligado no trabalho realizado pela geração pop daquela época – Legião, Titãs, Paralamas, Ira!, etc. Da MPB, apreciava quase que somente Caetano e Chico.

Foi então que deparei com uma fita cassete gravada de um álbum do Belchior. Pertencia ao amigo Arlindo Mellão, fã do cearense e de gente como Sá & Guarabyra, 14 Bis e Geraldo Azevedo.

O álbum, até hoje relativamente raro, chamava-se “Um Show: 10 Anos de Sucesso”, e continha nove das principais canções que ele havia composto até então em seus poucos mais de 10 anos de carreira, em arranjos nos quais se destacavam os teclados de Raposo e a guitarra de Sérgio Zurawski – bem ao estilo dos anos 80 – que modernizavam as canções dando-lhes nova roupagem (até hoje acho aqueles arranjos os melhores de todas as versões que ele fez para cada uma daquelas músicas).

Trazia canções como “Paralelas” (sucesso na voz de Vanusa, com o poderoso refrão: “No Corcovado, quem abre os braços sou eu / Copacabana, esta semana, o mar sou eu / Como é perversa a juventude do meu coração / Que só entende o que é cruel, o que é paixão”), “Comentário a respeito de John” (“Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho / Deixem que eu decido a minha vida. / Não preciso que me digam, de que lado nasce o sol / Porque bate lá o meu coração”), “Velha Roupa Colorida”, “Como Nossos Pais” (clássico absoluto na voz de Elis), “A Palo Seco” (“Se você vier me perguntar por onde andei / No tempo em que você sonhava / De olhos abertos lhe direi: / Amigo, eu me desesperava…”), “Galos, Noites e Quintais” e o seu maior sucesso (junto com “Apenas um Rapaz Latino Americano”): “Medo de Avião”.

Na época, eu tinha apenas 18 anos. E estava apaixonado por aquela que viria a se tornar minha esposa. Precisava desesperadamente de uma desculpa para encontrar o objeto de meus desejos e pareceu uma boa ideia ir até a casa do Mellão à noite para pedir-lhe a fita de empréstimo. Na volta, eu poderia encontrar com ela – o que acabou acontecendo.

No dia seguinte, coloquei a fita para ouvir. E foi uma revelação. Belas melodias e letras absurdamente boas que eram uma mistura de poesia, erudição e ironia. Belchior sabia compor. E como. A maioria das canções acima mencionadas são clássicos absolutos da MPB e não envelheceram nada desde que foram escritas.

A descrição acre que ele faz da juventude de sua época, em “Como Nossos Pais”, poderia ser aplicada aos jovens de hoje em dia, sem mexer em nenhuma linha da canção. “Velha Roupa Colorida” ainda é uma das melhores canções já escritas sobre a passagem do tempo:

(…) Como Poe, poeta louco americano, eu pergunto ao passarinho:
“Assum Preto, ‘passo’ preto, black bird, o que se faz?”
E raven, never, raven, never, never, never, never, never, raven,
Pássaro Preto, assum preto, black bird me responde:
“Tudo já ficou atrás”
E never, never, never, never, never, never, raven
Pássaro Preto, assum preto, black bird me responde:
“O passado nunca mais…”

À época, todavia, a música que mais me impressionou não foi nenhuma dessas. Eu tinha apenas 18 anos e estava apaixonado pela primeira vez na vida. Não por outra razão, a canção que mais me marcou daquela fita foi uma verdadeira ode ao amor erótico chamada “Divina Comédia Humana”:

“(…) Aí um analista amigo meu
Me disse que desse jeito
Não vou viver satisfeito
Porque o amor é uma coisa mais profunda que um transa sensual

Deixando a profundidade de lado
Eu quero é ficar colado à pele dela noite e dia
Fazendo tudo de novo e dizendo sim! à paixão, morando na filosofia

Quero gozar no seu céu,
Pode ser no seu inferno
Viver a divina comédia humana
Onde nada é eterno (…)”

A capacidade de traduzir em melodias e letras sentimentos complexos (ou nem tanto) era a marca de Belchior. Amor, sexo, paixão, tempo, medo. Morte. Todos esses temas foram trabalhados com maestria pelo artista. Esse último e mais assustador, enfim, o alcançou e o derrotou no dia de ontem.

Fica um buraco enorme na música brasileira, até porque o mercado da música não tem conseguido repor compositores com a mesma qualidade de um Belchior, de um Chico ou de um Caetano. Cada vez que morre um gênio desses, ficamos mais órfãos de artistas com a capacidade que eles têm de ler e reinterpretar nosso tempo através de seus trabalhos.

Mas para mim não é nem isso o que mais incomoda. Como tudo na vida, o que mais nos afeta é aquilo que nos diz mais de perto. Minha dor é perceber que, com a morte de Belchior, se vai também – simbolicamente enterrado com o artista – um pedaço de minha vida. Aquele pedaço mais febril, intenso, irracional e louco a que chamamos juventude.

Diante desta perda, desesperadamente eu grito em português, recorrendo aos conselhos do compositor, que me responde – não sem uma pitada de ironia – via “Pequeno Perfil de um Cidadão Comum”:

– Que a terra lhe seja leve…