Juan Luis Panero – Epitáfio diante de um Espelho

Dura há de ser a vida para ti,
que tuas crenças sacrificastes a uma estranha honradez,
para ti, cuja única certeza é tua memória
e, portanto, teu sepulcro mais infausto.
Dura há de ser a vida, quando os anos passarem
e por fim destruírem a ilusória pátria da tua adolescência,
quando vires, como hoje, este fantasma
que tempos atrás te consolou com sua beleza.
Quando o amor, como um vestido esfarrapado,
não pode proteger tua tristeza
e um motivo de zombaria, piedade ou assombro,
para os olhos mais puros, apenas seja.
Duro há de ser para o teu corpo ver morrer o desejo,
a juventude, tudo o que foste,
e buscar sem paixão o teu repouso
na surda ternura do que é frágil,
na cinza destruição que outrora amaste.
“É a lei da vida”, dizem velhos estéreis,
“e nada além de Deus pode mudá-la”, repetem,
à luz da noite, lentas sombras inúteis.
Dura há de ser a vida, tu que amaste o mundo,
que com um olhar ou uma suave carícia sonhaste em possuí-lo,
quando a absurda farsa que tão bem conheces
já não estiver adornada com o efêmero e o belo.
Dura há de ser a vida até o instante
em que velares tua memória neste espelho:
teus frios lábios já não terão refúgio
e em tuas mãos vazias abraçarás a morte.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO (com ligeiras correções na tradução): poema publicado no blog originalmente em 23/02/2018

Juan Luis Panero – Epitafio Frente a un Espejo

Dura ha de ser la vida para ti,
que a una extraña honradez sacrificaste tus creencias,
para ti, cuya única certidumbre es tu recuerdo
y por ello, tu más aciaga tumba.
Dura ha de ser la vida, cuando los años pasen
y destruyan al fin la ilusa patria de tu adolescencia,
cuando veas, igual que hoy, este fantasma
que tiempo atrás te consoló con su belleza.
Cuando el amor como un vestido ajado
no pueda proteger tu tristeza
y motivo de burla, de piedad o de asombro,
a los ojos más puros sólo sea.
Duro ha de ser para tu cuerpo ver morir el deseo,
la juventud, todo aquello que fuiste,
y buscar sin pasión tu reposo
en la sorda ternura de lo débil,
en la gris destrucción que alguna vez amaste.
«Es la ley de la vida», dicen viejos estériles,
«y nada sino Dios puede cambiarlo», repiten,
a la luz de la noche, lentas sombras inútiles.
Dura ha de ser la vida, tú que amaste el mundo,
que con una mirada o una suave caricia soñaste poseerlo,
cuando la absurda farsa que tú tanto conoces
no esté más adornada con lo efímero y bello.
Dura ha de ser la vida hasta el instante
en que veles tu memoria en este espejo:
tus labios fríos no tendrán ya refugio
y en tus manos vacías abrazarás la muerte.

Giacomo Leopardi – A Noite do Dia de Festa

Noite sem vento, doce, clara. A lua
Flutua sobre tetos e pomares,
Serena, revelando ao longe, os montes.
As ruas e caminhos silenciam,
Minha amada. Pelos balcões, são raros
Os lampiões, um sono suave invade
Os aposentos, você dorme, nada
Perturba o seu repouso, muito menos
A chaga que me abriu dentro do peito!
Mas você dorme, e ao céu de aspecto ameno
– E à antiga natureza onipotente
Que me volta à aflição – dirijo os olhos.
“Para você, nem mesmo uma esperança;
Para os seus olhos, só um brilho: lágrimas”,
Ela me disse. Mas que dia magnífico!
Dormem danças e jogos, mas, em sonho,
Talvez para você desfilem todos
De quem gostou ou aos quais agradou
(Menos eu, que nesse rol não compareço).
Mas se calculo os dias que me restam,
Vejo-me aos gritos, a rolar na terra:
Que vida horrível numa vida jovem!
Vai pela rua o canto solitário
De quem já trabalhou, passou na tasca,
E volta tarde para a casa pobre.
Vai-me apertando, amargo, o coração,
Se penso em como tudo passa e passa,
Quase sem deixar rastro. Já se foi
O dia de festa, e agora chega o dia
Normal, e tudo se escoa no tempo,
Todos os atos humanos. E o estrondo
Dos antigos, as vozes dos heróis
De ontem, onde estão? e o grande império,
E as armas e o fragor que faz tremer
Os caminhos da terra e do oceano?
Tudo é paz e silêncio. O mundo
Tudo aquieta. Já não se pensa em nada.
Quando criança, vinha a espera ansiosa
Do dia de festa, que findava logo.
Sofrendo, comprimia o travesseiro,
Ao ouvir pela noite aquele canto
Que ia morrendo aos poucos, lentamente,
Morrendo e me apertando o coração.

Trad.: Décio Pignatari

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 11/11/2017

La Sera Del Dì Di Festa

Dolce e chiara è la notte e senza vento,
E queta sovra i tetti e in mezzo agli orti
Posa la luna, e di lontan rivela
Serena ogni montagna. O donna mia,
Già tace ogni sentiero, e pei balconi
Rara traluce la notturna lampa:
Tu dormi, che t’accolse agevol sonno
Nelle tue chete stanze; e non ti morde
Cura nessuna; e già non sai nè pensi
Quanta piaga m’apristi in mezzo al petto.
Tu dormi: io questo ciel, che sì benigno
Appare in vista, a salutar m’affaccio,
E l’antica natura onnipossente,
Che mi fece all’affanno. A te la speme
Nego, mi disse, anche la speme; e d’altro
Non brillin gli occhi tuoi se non di pianto.
Questo dì fu solenne: or da’ trastulli
Prendi riposo; e forse ti rimembra
In sogno a quanti oggi piacesti, e quanti
Piacquero a te: non io, non già, ch’io speri,
Al pensier ti ricorro. Intanto io chieggo
Quanto a viver mi resti, e qui per terra
Mi getto, e grido, e fremo. Oh giorni orrendi
In così verde etate! Ahi, per la via
Odo non lunge il solitario canto
Dell’artigian, che riede a tarda notte,
Dopo i sollazzi, al suo povero ostello;
E fieramente mi si stringe il core,
A pensar come tutto al mondo passa,
E quasi orma non lascia. Ecco è fuggito
Il dì festivo, ed al festivo il giorno
Volgar succede, e se ne porta il tempo
Ogni umano accidente. Or dov’è il suono
Di que’ popoli antichi? or dov’è il grido
De’ nostri avi famosi, e il grande impero
Di quella Roma, e l’armi, e il fragorio
Che n’andò per la terra e l’oceano?
Tutto è pace e silenzio, e tutto posa
Il mondo, e più di lor non si ragiona.
Nella mia prima età, quando s’aspetta
Bramosamente il dì festivo, or poscia
Ch’egli era spento, io doloroso, in veglia,
Premea le piume; ed alla tarda notte
Un canto che s’udia per li sentieri
Lontanando morire a poco a poco,
Già similmente mi stringeva il core.

Manuel Bandeira – Profundamente

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

*

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Luis Alberto de Cuenca – Quando Penso nos Velhos Amigos

Quando penso nos velhos amigos que saíram
de minha vida, unindo-se a más mulheres
que alimentam seu medo e os enchem de filhos
para tê-los por perto, controlados e inermes.

Quando penso nos velhos amigos que se foram
para o país da morte, sem passagem de volta,
só porque procuraram o deleite nos corpos
e o olvido nas drogas que abrandam a tristeza.

Quando penso nos velhos amigos que, no fundo
das águas da memória, me ofertaram um dia
a estranha sensação de não me sentir só
e a cumplicidade de um sorriso sincero…

Trad.: Nelson Santander
 

Luis Alberto de Cuenca – Cuando pienso en los viejos amigos

Cuando pienso en los viejos amigos que se han ido
de mi vida, pactando con terribles mujeres
que alimentan su miedo y los cubren de hijos
para tenerlos cerca, controlados e inermes.

Cuando pienso en los viejos amigos que se fueron
al país de la muerte, sin billete de vuelta,
sólo porque buscaron el placer en los cuerpos
y el olvido en las drogas que alivian la tristeza.

Cuando pienso en los viejos amigos que, en el fondo
del mar de la memoria, me ofrecieron un día
la extraña sensación de no sentirme solo
y la complicidad de una franca sonrisa…

Giacomo Leopardi – A Noite do Dia de Festa

Noite sem vento, doce, clara. A lua
Flutua sobre tetos e pomares,
Serena, revelando ao longe, os montes.
As ruas e caminhos silenciam,
Minha amada. Pelos balcões, são raros
Os lampiões, um sono suave invade
Os aposentos, você dorme, nada
Perturba o seu repouso, muito menos
A chaga que me abriu dentro do peito!
Mas você dorme, e ao céu de aspecto ameno
– E à antiga natureza onipotente
Que me volta à aflição – dirijo os olhos.
“Para você, nem mesmo uma esperança;
Para os seus olhos, só um brilho: lágrimas”,
Ela me disse. Mas que dia magnífico!
Dormem danças e jogos, mas, em sonho,
Talvez para você desfilem todos
De quem gostou ou aos quais agradou
(Menos eu, que nesse rol não compareço).
Mas se calculo os dias que me restam,
Vejo-me aos gritos, a rolar na terra:
Que vida horrível numa vida jovem!
Vai pela rua o canto solitário
De quem já trabalhou, passou na tasca,
E volta tarde para a casa pobre.
Vai-me apertando, amargo, o coração,
Se penso em como tudo passa e passa,
Quase sem deixar rastro. Já se foi
O dia de festa, e agora chega o dia
Normal, e tudo se escoa no tempo,
Todos os atos humanos. E o estrondo
Dos antigos, as vozes dos heróis
De ontem, onde estão? e o grande império,
E as armas e o fragor que faz tremer
Os caminhos da terra e do oceano?
Tudo é paz e silêncio. O mundo
Tudo aquieta. Já não se pensa em nada.
Quando criança, vinha a espera ansiosa
Do dia de festa, que findava logo.
Sofrendo, comprimia o travesseiro,
Ao ouvir pela noite aquele canto
Que ia morrendo aos poucos, lentamente,
Morrendo e me apertando o coração.

Trad.: Décio Pignatari

Ferreira Gullar – Os Mortos

os mortos vêem o mundo

pelos olhos dos vivos

eventualmente ouvem,

com nossos ouvidos,

certas sinfonias
algum bater de portas,
ventanias

 

   Ausentes
   de corpo e alma

misturam o seu ao nosso riso

   se de fato
   quando vivos
   acharam a mesma graça

Susan Sontag – De “Sobre Fotografia”

“Todas as fotos são memento mori. Tirar uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa). Precisamente por cortar uma fatia deste momento e congelá-lo, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo (…). A fotografia é simultaneamente uma pseudo-presença e um sinal de ausência.” Susan Sontag, em […]