Retrospectiva 2023

E assim, mais um ano se foi. Veloz como um pássaro em voo, impulsionado pela velocidade dos eventos climáticos extremos. Mais um ano marcado pelo terror, destruição e pelas indignidades das guerras e massacres (e nisso a humanidade nunca falha: todo ano, a guerra – esse servidor público do extermínio – bate o ponto em 1º de janeiro e, sem tirar férias ou abonar faltas, segue trabalhando incessantemente). Ano das migrações climáticas e daquelas causadas pelas guerras civis, conflitos armados e pobreza extrema. Ano em que a concentração de riqueza nas mãos de poucos aumentou vertiginosamente, levando ao empobrecimento de nações inteiras.

Foi também o ano em que perdemos Botero, De Masi, Tonny Bennett, Zé Celso, Astrud Gilberto, Rita Lee, Boris Fausto, Juca Chaves, o cartunista Paulo Caruso, Gina Lollobrigida, e, mais perto do universo desta página, a grande Louise Glück.

Em meio a tanta desolação, um alívio: 2023 foi também o ano em que o Brasil se livrou de uma grande catástrofe, para dizer o mínimo. As sombras do recrudescimento do fascismo – que tem varrido o mundo nesses tempos incertos – ainda pairam sobre nós, é verdade, mas, por enquanto, estamos livres delas.

Não, não me permito crer em grandes mudanças para melhor a curto ou médio prazo. Quisera ter o otimismo da sempre perspicaz Dorianne Laux que um dia escreveu:

Se estamos fraturados,
assim o estamos
como estrelas
feitas para brilhar
em todas as direções,
por qualquer dimensão,
bilhões de anos
desde então.

Não lamentarei
o humano, ainda não.
Há algo mais
por vir, nossos corações
são como uma mina de ouro
inexplorada,
um mar desconhecido.

Nada se foi para sempre.
Se viemos do pó
e ao pó voltaremos,
então podemos descobrir o
caminho para qualquer coisa.

Ainda não se sabe
do que somos capazes,
por isso, agora mesmo, eu nos elogio
antecipadamente.

Dorianne Laux – De qualquer forma

Não é o meu caso. Mas, se é assim, sempre podemos nos abrigar no agora, no hoje, que, fundamentalmente, é tudo o que temos de concreto.

Portanto, carpe diem!

Vivamos o efêmero hoje, da melhor maneira possível, que do futuro nada sabemos.

A seguir, apresento a tradicional retrospectiva dos poemas e textos que, a meu critério, foram os mais significativos publicados na página ao longo de 2023. Espero que desfrutem desta seleção.

Desejo a todos um feliz 2024!

1. Juan Vicente Piqueras - Como Estás

Morri na última terça-feira e ninguém notou.

O mundo permaneceu o mesmo, mudando e imutável.
Não houve furacão, anúncio, tempestade
ou nuvens por entre as quais surgisse
aquele raio de luz que aparecia
nas capas dos catecismos. (...)
2. Don Peterson - Compaixão

Ela podia ter meses de sua vida canina,
mas para ser o quê? Ela estava leve como um ninho,
o dia todo sob suas longas orelhas
ouvindo em seu próprio peito um rádio em desalinho. (...)
3. Matthew Olzmann – Carta à pessoa que gravou suas iniciais no mais antigo pinheiro de folha longa da América do Norte

Diga-me como é viver sem
curiosidade, sem sentir admiração. Navegar
em águas cristalinas, desviando os olhos
dos recifes de algas que ondulam
abaixo de você, ignorando o cintilar
das escamas de sereias no nevoeiro,
olhando para o mundo e sentindo
apenas tédio. (...)
4. Judith Hemschemeyer - Naquele Verão

Naquele verão
depois que você se enforcou
sem perguntar
a ninguém que o amava
se eles podiam suportar

dei por mim arrastando mangueiras (...)
5. Dan Albergotti – Coisas para fazer no ventre da baleia

Meça as paredes. Conte as costelas. Registre os longos dias.
Olhe para o céu azul por entre os esguichos. Faça pequenas fogueiras
com os cascos partidos dos barcos de pesca. Pratique sinais de fumaça.
Ligue para os velhos amigos e escute os ecos de vozes distantes. (...)
6. Ursula K. Le Guin – Parentesco

Ardendo muito lentamente, a grande árvore da floresta
se ergue da sutil cavidade de neve
derretida ao seu redor pelo brando e duradouro
calor de seu ser e de sua vontade de ser
raiz, tronco, ramo, folha, (...)
7. Ruth Lepson – No dia da audiência do nosso divórcio

você me convidou para almoçar em uma cantina.
Nunca tínhamos sido tão gentis um com o outro.
Quando você disse que eu ainda era uma desleixada, nós rimos.
Depois do almoço, ficamos no estacionamento. (...)
8. Linda Pastan – A filha

Gostaria de ter tido outra chance
com o meu pai, desempenhado
um papel diferente
no drama da minha infância. (...)
9. Czesław Miłosz – Café

Daqueles que se encontravam à mesa do café
onde, no meio-dia de inverno, um jardim de gelo reluzia nas vidraças,
só eu sobrevivi.
Eu poderia entrar ali se quisesse
e, tamborilando meus dedos em um frio vazio,
convocar as sombras. (...)
10. Mary Oliver – Garças

Onde o caminho
se encerrava,
por entre folhas matizadas,
galhos caídos,
através de nodosas salsaparrilhas,
eu continuei. Por fim,
não pude
salvar meus braços
dos espinhos; (...)
11. Czesław Miłosz – Uma vida afortunada

Sua velhice coincidiu com os anos de colheita abundante.
Não houve terremotos, secas ou inundações.
Dir-se-ia que a mudança das estações ganhava em regularidade,
As estrelas se fortaleciam e o sol aumentava seu poder.
Mesmo em províncias remotas nenhuma guerra foi travada. (...)
12. Adam Zagajewski – Um breve poema

Eu ouvia cânticos gregorianos
num carro em alta velocidade
em uma rodovia na França.
As árvores passavam velozes. As vozes dos monges
entoavam preces a um deus invisível
(ao amanhecer de uma capela tremendo de frio). (...)
13. Thom Gunn – Natureza morta

Não esquecerei tão cedo
A pele amarelo-acinzentada
À qual o rosto se havia fixado:
Pálpebras apertadas: nada dele,
Nenhum tremor interior,
Brincava na superfície.
Ele ainda respirava, e contudo
Esta era uma obscura habilidade. (...)
14. David Wagoner – Perdido

Permanece imóvel. As árvores à frente e os arbustos ao teu lado
Não estão perdidos. Onde quer que estejas é chamado de Aqui,
E deves tratá-lo como um poderoso estranho,
Pedir permissão para conhece-lo e ser conhecido. (...)
15. Brad Aaron Modlin – O que você perdeu no dia em que não foi à aula

A Sra. Nelson explicou como ficar imóvel e ouvir
o vento, como encontrar sentido em encher o tanque,

como descascar batatas pode ser uma forma de oração. Ela respondeu
a perguntas sobre como não se sentir perdido no escuro. (...)
16. Danusha Laméris – Nada quer sofrer

Nada quer sofrer. Nem o vento
que arranha contra a encosta. Nem o penhasco

sendo devorado, lentamente, pelo mar. A terra não quer
sofrer o pisoteio bruto de quem a ignora.

As árvores não querem sofrer o machado, nem ver
suas irmãs derrubadas pela podridão, pelo mofo e oxidação de suas raízes. (...)
17. Eugenio Montale – O lago de Annecy

Não sei por que minhas memórias te relacionam
ao lago de Annecy
que visitei alguns anos antes de tua morte.
Mas na época eu não pensava em ti, era jovem
e julgava ser o senhor do meu destino. (...)
18. Alex Dimitrov – Os anos

Todas as festas que você frequentou
observando o salão
de uma sacada
onde alguém se juntou a você
para fumar e depois voltou. (...)
19. Rosanna Warren – Lago

Você estava com água até as coxas e a luz verde refletia
nas cavidades dos seus quadris e no estômago, que é onde a chama piloto
ardia nas antigas estátuas de Dionísio,
e por um momento, enquanto você caminhava mais em direção ao fundo, parecia que
aquela água poderia lavar o peso
de suas próprias estações e de doenças que não eram as suas: (...)
20. Paulo Henriques Britto – de “Oito sonetos entrópicos”

Deixar de ser é coisa natural,
como é natural ser. Pensando bem
(ou só pensando, seja bem ou mal),
o que haverá de natural, porém,
em ser o que se é, e não ser, apenas? (...)
21. Peter Sirr – Uma cartilha saxônica

Penso então em Borges ficando cego,
e no que ele disse sobre a alma.
Ele tentava entender por que
um homem que perde o mundo
busca espadas e monstros
e saxões com vozes rudes no Salão de Hidromel. (...)
22. Ted Kooser – Fazenda Abandonada

Ele era um homem grande, diz o tamanho
dos seus sapatos sobre uma pilha de pratos quebrados junto à casa;
um homem alto também, diz o comprimento da cama
no quarto do andar de cima; e um homem bom e temente a Deus,
diz a Bíblia com a contracapa arruinada
no chão abaixo da janela, empoeirada de sol;
mas não um fazendeiro, dizem os campos
cobertos por pedregulhos e o celeiro com goteiras. (...)
23. Charlotte Mew – Quartos

Lembro-me de quartos que tiveram relação
Com o constante esgotamento do coração.
O quarto em Paris, o quarto em Genebra,
O quarto pequeno e úmido com cheiro de algas
E aquele som da maré, enlouquecedor e perenal —
Quartos onde as coisas morriam — para o bem ou para o mal. (...)
24. Ada Limón – A rebitadora

O que eu não disse
quando ela me perguntou
por que eu sabia tanto
sobre morrer foi que,
para mim, aquilo era uma tarefa.
Quando papai ligou para dizer
que tínhamos um mês, eu fiz uma lista. (...)
25. Jack Gilbert – Poemas e Elegias para Michiko Nogami

As traduções que fiz da série de poemas e elegias que Jack Gilbert escreveu em homenagem à sua falecida esposa, Michiko Nogami. Uma nota introdutória sobre o poeta, sua esposa e os poemas/elegias acompanha o primeiro poema da série - "I - Noites e manhãs sem fim"
26. Zbigniew Herbert – Uma vida

Eu era um rapaz sossegado, um tanto sonolento e — surpreendentemente —
ao contrário dos meus colegas — que ansiavam por aventuras —
não nutria grandes expectativas — não costumava olhar pela janela
Na escola, era mais diligente do que competente — dócil e estável (...)
27. Gwen Harwood – No parque

Ela se senta no parque. São antiquados os seus trajes.
Duas crianças choram e brigam, puxam-lhe o babado.
Uma outra traça padrões ao acaso no gramado
Alguém que há muito tempo ela amou passa – tarde (...)
28. W. S. Merwin – Para o aniversário da minha morte

Todo ano, sem perceber, passo pelo dia
Em que as últimas chamas acenarão para mim
E o silêncio colocar-se-á a caminho
Infatigável viajante
Como os feixes de uma estrela sem luz (...)
29. Hayden Carruth – Ensaio

(...) Eles estão partindo – seus pelos e seus olhos selvagens,
suas vozes. Cervos saltam e saltam na frente
de estridentes snowmobiles até saltarem para
fora da existência. Falcões circulam uma ou duas vezes
acima de seus ninhos destruídos e depois sobem
até as estrelas. (...)
30. Ada Limón – O real motivo

Eu não tenho nenhuma tatuagem, elas não fazem parte da minha história, e sim da história
de minha mãe. Certa vez, caminhando pela Bedford Avenue quando tinha vinte e poucos anos,

liguei para ela como costumava fazer, como faço. E disse-lhe que queria uma
tatuagem na nuca. Algo discreto, mas permanente,

e como ela é uma artista, eu queria que ela fizesse a arte, um símbolo —
um peixe com o qual eu sonhava todas as noites. (...)
31. Patrizia Cavalli – Agora que

Agora que o tempo parece ser todo meu
e ninguém me chama para almoçar ou jantar,
agora que posso ficar observando
como uma nuvem desbota e se desfaz,
como um gato atravessa o telhado
no imenso luxo de uma aventura, (...)
32. Yusef Komunyakaa – Ode à Larva

Irmã da mosca-varejeira
& da divindade, você faz mágica
Nos campos de batalha,
Em pedaços de carne suína estragada

& em lugares sujos. Sim, você
Chega à raiz de todas as coisas.
Você é sólida & matemática. (...)
33. Filodemo de Gádara – Estação da Rosa Silvestre

É a estação da rosa silvestre e da hortelã, Sosylos,
a estação do grão-de-bico e dos primeiros cortes dos brotos,
dos lambaris e dos queijos salgados, da alface-crespa
em cujas novas folhas a luz transfunde
um brilho quase esquecido. Ainda assim,
reparaste como neste ano algo mudou? (...)
34. James Tate – A promoção

Eu já fui um cachorro em minha vida passada, um cachorro
muito bom, e, por isso, fui promovido a ser humano.
Eu gostava de ser um cachorro. Trabalhava para um fazendeiro pobre,
protegendo e pastoreando suas ovelhas. Lobos e coiotes
tentavam passar por mim todas as noites, mas eu
nunca perdia uma ovelha. (...)
35. Thom Gunn – O atiçador

Quarenta e oito anos atrás —
Já se passaram mesmo quarenta e oito anos
Desde então?— eles forçaram a porta
Que ela havia barricado
Com o peso de uma escrivaninha inteira
Para que ninguém descobrisse, como eles descobriram,
o que ela havia bloqueado. (...)
36. David Wagoner – O silêncio das estrelas

Certa noite, no deserto de Kalahari, quando
Laurens van der Post1 disse aos bosquímanos
Que não conseguia ouvir as estrelas
Cantando, eles não acreditaram. Eles o olharam,
Meio sorridentes. Examinaram seu rosto
Para ver se ele não estava brincando
Ou enganando-os. (...)
37. Hala Alyan – Spoiler

(...) A água devora seu trabalho como uma revoada de pássaros selvagens. Há destroços.
Um farrapo de algas marinhas e sangue onde você arranhou seu braço
tentando resistir à correnteza. Pode demorar muito tempo para acontecer,
mas um dia enfim você deslizará novamente os dedos pela areia, colherá um punhado dela
e espalhará sobre um novo chão. (...)
38. Galway Kinnell – Shelley

Quando eu tinha vinte anos, o único espírito
verdadeiramente livre de quem tinha ouvido falar era Shelley,
Shelley, que escreveu tratados defendendo
o ateísmo, o amor livre, a emancipação
feminina, a abolição da riqueza e das classes sociais,
e poemas sobre a felicidade do amor romântico, (...)
39. Li-Young Lee – Comendo sozinho

Colhi as últimas cebolas frescas do ano.
O jardim está limpo agora. O solo está frio,
gasto e pardacento. O que resta do dia
arde nos bordos, nas bordas dos meus
olhos. Eu me viro, um cardeal desaparece.
Junto à porta da adega, lavo as cebolas,
depois bebo da gelada torneira de metal. (...)
40. Sharon Olds – Minha mão

Quando olho para a minha mão, e para o dorso do meu pulso,
brilhando com o petrolato que
esfreguei em suas fissuras — óleo mineral,
ceresina, lanolina, pantenol, glicerina,
bisabolol, vejo as rugas
finas, muitas formando losangos,
algumas delas longas cicatrizes vacilantes —
isso me parece comovente e afortunado. (...)
41. Lucille Clifton – Dois poemas

adão pensando

ela
roubou meu osso
não é de admirar
que eu anseie cavar de volta
para dentro desesperado
para reconectar costela e argila
e ser inteiro outra vez (...)
42. Philip Schultz – Fracasso

Para pagar o funeral do meu pai,
pedi dinheiro emprestado a pessoas
a quem ele já devia dinheiro.
Um deles o chamou de zé-ninguém.
Não, eu disse, ele era um fracassado.
Ninguém se lembra o nome
de um zé-ninguém, é por isso que
eles são chamados de zés-ninguém. (...)
43. Otto D’Sola – Plenitude

Da formiga à estrela mais alta, fomos capazes de tecer uma longa história que nunca acabará;
da rocha aos pinhais,
dos pântanos ao berço de um tênue vento recém-nascido, fomos capazes de dar ao solo duro e seco a alegria de contemplar uma estrela e uma flor aberta. (...)
44. Ann Fischer-Wirth – Milagre de um coração sagrado e três folhas de faia, cada uma machada de verde e carmesim

Agora, as traças comeram seu triste dicionário.
Uma vez, você esteve atrás do balcão,

laços em seus cabelos, medindo e cortando tecidos
para as damas rechonchudas. E agora uma pilha de Kleenex

sobe pelo seu cotovelo enquanto você lida com sua rinite.
Você se tornou uma caixa de sobras, cabelos ralos

e sem viço, unhas azuis de cianose. (...)
45. Stanley Kunitz – Cometa de Halley

A srta. Murphy, da primeira série,
escreveu o nome dele no quadro negro
com giz e nos contou que ele
viajava rugindo pelas trajetórias de tempestades
da Via Láctea a uma velocidade aterrorizante,
e que se ele desviasse do seu curso
e colidisse com a terra
não haveria aula no dia seguinte. (...)
46. Matthew Rohrer – Não há absolutamente nada mais solitário

Não há absolutamente nada mais solitário
do que o pequeno Mars Rover,
sempre em funcionamento, escavando
rochas, tão longe da Bond street
sob a chuva suave. (...)
47. Ada Limón – Notas sobre o Subterrâneo

Colossal caverna, diga-me, úmido calcário, rocha de arenito,
asa de morcego, cego e translúcido camarão-das-cavernas,

esta queda livre para além do desconhecido,
como se guardam segredos por tanto tempo? (...)
48. Diane Seuss – [Todas as coisas agora me lembram]

Todas as coisas agora me lembram de como o amor costumava ser. Taboas dilatadas em lugares
solitários. Condicionador viscoso em meus cabelos. Sólidos livros. Suas variegadas lombadas. (...)
49. James Tate – A volta para casa

Eu disse ao médico que nunca mais o veria. “Não, acho
que não”, ele disse. Saí pela porta me sentindo realmente bem.
Claro, eu sabia que ia morrer, mas ainda assim o dia parecia claro
para mim. Caminhei até o lago. Patos circulavam ao redor por ali. (...)
50. A. E. Stallings – Lógica de conto de fadas

Os contos de fadas estão repletos de tarefas irreais:
Juntar os pelos do queixo de uma cabra que os homens devora,
Ou cruzar um lago sulfúrico em uma danificada igara,
Escolher o príncipe de uma fila de máscaras iguais, (...)
51. Dennis Trudell – Conto de Feriado

Uma mulher nunca contou ao marido
ou a qualquer pessoa sobre o bilhete de amor
que recebera há trinta anos. Não havia
assinatura, e depois de tentar adivinhar inúmeras
vezes quem na cidade o enviara, ela
há muito aceitara que nunca o saberia. (...)
52. Jeffrey McDaniel – O mundo silencioso

Na tentativa de fazer as pessoas olharem
mais nos olhos umas das outras,
e também para apaziguar os mudos,
o governo decidiu atribuir
a cada pessoa exatamente cento
e sessenta e sete palavras por dia. (...)
53. Emily Bryant Voigt – A cúspide

Tão poucos pássaros — os que passam o inverno
e os gansos migrando pelos campos vazios,
atravessando as hastes retorcidas de milho cortado:
ao nosso redor, tudo o que é verde é suprimido,
e na melancólica floresta, as árvores nuas,
despidas de folhas ou quase sem elas,
formam uma morada sombria entre nuvens baixas
que têm o aspecto de neve obstinada. (...)
54. Sharon Olds – Destino

Finalmente desisti e me tornei meu pai,
sua face oleosa e abatida, brilhando para
qualquer pessoa que eu olhasse, seus olhos castanhos-lodo
em meu rosto, cintilando como chão molhado em que
as coisas que amamos caíram,
e se perderam para sempre. (...)
55. Lisel Mueller – Isso é o que você fará

O que você fez quando a geleira
cobriu sua boca com gelo
     quando suas escamas se desprenderam
e foram deixadas no chão para se deteriorar
     quando você parou de trilhar as águas
e começou a respirar o ar? (...)
56. Bob Hicok – Alzheimer

As cadeiras se movem sozinhas, assim como os livros.
Os netos vêm visitá-la, são
jovens e sem nomes, peças ausentes nos quebra-cabeças
de seus rostos. Ela é como um peixe

no oceano profundo, seu corpo é feito de luz. (...)
57. Ada Limón - Em um poste de luz, há muito tempo

Não sei por onde começar
na lista
de todas as coisas que estão desaparecendo: peixes, pássaros, árvores,
flores, abelhas,
e também idiomas. Dizem que, se as taxas históricas forem
calculadas,
um idioma morrerá a cada quatro meses. (...)
58. Jaime Manrique – O céu sobre a casa de minha mãe

É uma noite de julho
perfumada com gardênias.
Brilham a lua e as estrelas
sem revelar a essência da noite.
Ao longo do crepúsculo
— com suas gradações cada vez mais intensas de ônix,
e o resplendor dourado das estrelas e das sombras —
minha mãe arrumou a casa, o jardim, a cozinha. (...)
59. Philip Larkin – A casa está tão triste

A casa está tão triste. Ficou como foi deixada,
Moldada para o conforto dos últimos saintes
Querendo reconquista-los. Ao invés, despojada
De alguém para agradar, ela definha assim, carente
De um coração para esquecer que foi roubada (...)
60. Eavan Boland – Atlântida – Um soneto perdido

Como diabos aconteceu, eu costumava me perguntar,
de uma cidade inteira – arcos, pilares, colunatas,
isso sem falar nos veículos e animais – ter-se,
um belo dia, afundado? (...)

Clique aqui e aqui e veja também as Retrospectivas dos anos de 2021 e 2022.

Larry Levis – Na cidade das luzes

A última coisa que meu pai fez por mim
Foi traçar um caminho: ele morreu, & assim
Tornou a morte possível. Se ele conseguiu, eu
Também, um dia, terei essa honra. Certa vez,

À noite, caminhei pelas ruas iluminadas
De Nova York, do Gramercy Park Hotel,
Subindo a Lexington & naquela hora, sozinho,
Eu parei de ouvir o tráfego, as vozes, a agitação

Do vento de primavera alçando um jornal alto,
Sobre as luzes. As ruas molhadas,
E brilhantes. Sem sons. Certa vez,

Quando vi meu filho nascer, pensei
Como esse mundo deve soar alto para ele, como algo final.

Naquela noite, por respeito a alguém ausente,
Deixei de escutá-lo.

Por respeito a alguém ausente,
Devo dizer

Que essa não é toda a história.
O fato é que ainda estava apaixonado.
Meu pai tinha morrido, & eu ainda estava apaixonado. Sei
Que é de mau gosto dizer dessa forma. Diga-me,
Como você diria?

A história é: querendo ficar sozinho & desejando
A solidão tranquila dos viajantes,

Me despedi em um aeroporto & voei para o oeste.
Aconteceu de outro modo.
E onde a segurei perto de mim,
Minha pele ficou em carne viva, & esfolada.

Ao descer, olhei para a luz cobrindo os campos
De pálidas videiras, & pequenas cidades, cada uma
Com uma torre de água; depois as sobras das asas;
Depois, nada.

Meu único conselho é não ir embora.
Ou vá. A maioria

De minhas decisões foi errada.

Quando acordo, jogo água fria
Em meu rosto. Fecho meus olhos.

Um corpo deseja ser abraçado, & abraçado, & o que
Você pode fazer sobre isso?

Porque há rostos que talvez nunca mais veja,
Há duas coisas que quero lembrar
Sobre a luz, & o que ela faz conosco:

Seus olhos verdes brilhantes em um aeroporto — como eles se dilataram
Como se incrédulos;
E meu pai abrindo o portão: uma cidade iluminada &

Silente.

Trad.: Nelson Santander

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In the City of Light

The last thing my father did for me
Was map a way: he died, & so
Made death possible. If he could do it, I
Will also, someday, be so honored. Once,

At night, I walked through the lit streets
Of New York, from the Gramercy Park Hotel
Up Lexington & at that hour, alone,
I stopped hearing traffic, voices, the racket

Of spring wind lifting a newspaper high
Above the lights. The streets wet,
And shining. No sounds. Once,

When I saw my son be born, I thought
How loud this world must be to him, how final.

That night, out of respect for someone missing,
I stopped listening to it.

Out of respect for someone missing,
I have to say

This isn’t the whole story.
The fact is, I was still in love.
My father died, & I was still in love. I know
It’s in bad taste to say it quite this way. Tell me,
How would you say it?

The story goes: wanting to be alone & wanting
The easy loneliness of travelers,

I said good-bye in an airport & flew west.
It happened otherwise.
And where I’d held her close to me,
My skin felt raw, & flayed.

Descending, I looked down at light lacquering fields
Of pale vines, & small towns, each
With a water tower; then the shadows of wings;
Then nothing.

My only advice is not to go away.
Or, go away. Most

Of my decisions have been wrong.

When I wake, I lift cold water
To my face. I close my eyes.

A body wishes to be held, & held, & what
Can you do about that?

Because there are faces I might never see again,
There are two things I want to remember
About light, & what it does to us.

Her bright, green eyes at an airport—how they widened
As if in disbelief;
And my father opening the gate: a lit, & silent

City.

Juan Luis Panero – Mensagem de Antonio a Cleópatra

Mensagem de Antonio a Cleópatra

I

Elogiem outros
tua beleza adormecida,
a suavidade de tua pele em repouso,
a medida perfeição de teus membros.
Eu não vim por isso,
vim somente para te penetrar
pela frente e por trás
como um punhal que atravessa
a água límpida
e afunda e se perde
no poço sombrio.

Mensagem de Cleópatra a Antonio

II

Não louves minha beleza,
outros já o fizeram.
Penetra-me pela frente e por trás,
faz-me sentir a vida na cintura
e que, enlaçados, teu corpo e o meu
possam deter a fúria cruel do tempo.
Mas, se chegar um dia em que o tempo nos alcance,
não te lamentes, estúpido beberrão,
e lança-te corajosamente – Kaváfis já o escreveu –
nesse poço sombrio.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO, com alterações na tradução: poema publicado na página originalmente em 20/01/2019

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Mensaje de Antonio a Cleopatra

I

Alaben otros
tu dormida belleza,
la suavidad de tu piel en reposo,
la medida perfección de tus miembros.
yo no he venido a eso,
he venido tan solo a penetrarte
por el pecho y por la espalda,
como un puñal atraviesa
el agua transparente
y se hunde y se pierde
en el pozo sombrío.

Mensaje de Cleopatra a Antonio

II

No alabes mi belleza,
otros ya lo han hecho.
penétrame por el pecho y la espalda,
hazme sentir la vida en la cintura
y que, enlazados, tu cuerpo y el mío
puedan detener la furia atroz del tiempo.
pero, si llega un día en que el tiempo nos alcance,
no te lamentes, estúpido borracho,
y cae con valor – Cavafis ya lo ha escrito-
a ese pozo sombrío.

Jack Gilbert — Os grandes incêndios

O amor transcende todas as coisas.
Desejo e excitação são insignificantes perante ele.
Não é o corpo que encontra o amor.
É o corpo que nos conduz até ele.
O que não é amor o provoca.
O que não é amor o sacia.
O amor se apropria de tudo que conhecemos.
As paixões chamadas de amor
também transformam tudo em novidade
no começo. A paixão é, sem dúvida, o caminho,
mas não nos conduz ao amor.
Ela abre o castelo de nosso espírito
para que possamos encontrar o amor,
um mistério ali oculto.
O amor é um dos muitos grandes incêndios.
A paixão é um incêndio feito de muitas lenhas,
cada uma com seu odor especial
para que possamos conhecer as muitas formas
que não são amor. A paixão é o papel
e os galhos que acendem as chamas
mas não podem sustenta-las. O desejo perece
porque tenta ser amor.
O amor é consumido pelo apetite.
O amor não dura, mas é diferente
das paixões efêmeras.
O amor perdura ao não durar.
Isaias disse que cada homem caminha em seu próprio fogo
por seus pecados. O amor nos permite caminhar
na doce melodia de nosso coração particular.

Trad.: Nelson Santander

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The Great Fires

Love is apart from all things.
Desire and excitement are nothing beside it.
It is not the body that finds love.
What leads us there is the body.
What is not love provokes it.
What is not love quenches it.
Love lays hold of everything we know.
The passions which are called love
also change everything to a newness
at first. Passion is clearly the path
but does not bring us to love.
It opens the castle of our spirit
so that we might find the love which is
a mystery hidden there.
Love is one of many great fires.
Passion is a fire made of many woods,
each of which gives off its special odor
so we can know the many kinds
that are not love. Passion is the paper
and twigs that kindle the flames
but cannot sustain them. Desire perishes
because it tries to be love.
Love is eaten away by appetite.
Love does not last, but it is different
from the passions that do not last.
Love lasts by not lasting.
Isaiah said each man walks in his own fire
for his sins. Love allows us to walk
in the sweet music of our particular heart.

José Asunción Silva – Obra Humana

No interior da floresta intocada
em que, uma noite, no início de maio,
tocou a velha ramagem folhada
da pálida lua o primeiro raio,

poucos meses depois a luz de gás
da aurora na estação iluminou
o curso da locomotiva audaz
que por trilhos duríssimos cruzou.

E onde fora certa vez um abrigo,
porto seguro de um alado enxame,
atravessou o espaço um escondido
telegrama de amor num fio de arame.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 19/01/2019

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José Asunción Silva – Obra humana

En lo profundo de la selva añosa
donde una noche, al comenzar de mayo,
tocó en la vieja enredadera hojosa
de la pálida luna el primer rayo,

pocos meses después la luz de aurora
del gas en la estación iluminaba
el paso de la audaz locomotora
que en el carril durísimo cruzaba.

Y en donde fuera en otro tiempo el nido,
albergue muelle del alado enjambre,
pasó por el espacio un escondido
telegrama de amor, por el alambre.

Galway Kinnell – Dia 26 de dezembro

Uma terça-feira, dia de Tiw*,
deus da guerra, desponta na escuridão.
O curto feriado em que conversamos perto do fogo,
flutuamos em raquetes de neves por entre os
antigos bordos autopodados,
visitamos, fomos visitados, demos
um pluviômetro, ganhamos meias vermelhas,
observamos os pintassilgos quase cobertos
de neve bicando pequenos fragmentos
de sementes de girassol que os chapins
seguram com suas garras em um galho
e despedaçam, espalhando detritos
como açougueiros desleixados, acabou.
Começa a vida irregular. Ligações telefônicas,
pesquisas no Google, cartas evasivas,
arranjos complicados, faxes,
dúvidas, conversações,
e-mails, beijos dados solenemente.

Trad.: Nelson Santander

* N. do T.: Tiw, também conhecido como Tyr, era o deus nórdico da guerra, da justiça e da ordem

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The 26th of December

A Tuesday, day of Tiw,
god of war, dawns in darkness.
The short holiday day of talking by the fire,
floating on snowshoes among
ancient self-pollarded maples,
visiting, being visited, giving
a rain gauge, receiving red socks,
watching snow buntings nearly over
their heads in snow stab at spirtled bits
of sunflower seeds the chickadees
hold with their feet to a bough
and hack apart, scattering debris
like sloppy butchers, is over.
Irregular life begins. Telephone calls,
Google searches, evasive letters,
complicated arrangements, faxes,
second thoughts, consultations,
e-mails, solemnly given kisses.

Manuel Bandeira – Versos de Natal

Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página anteriormente em 10/04/2016

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Luci Shaw – A canção de Maria

O rústico tecido azul e a curva do meu peito
mantém aquecida esta pequena estrela nua e quente
que caiu em meus braços (Descanse…
você que teve que vir de tão
distante). Agora a proximidade satisfaz
docemente o corpo de Deus. Tranquilo repousa
aquele cuja força fez jorrar
um universo. Ele dorme,
aquele cujas pálpebras nunca antes se fecharam.
Sua respiração (tão leve que mal parece
uma respiração) uma vez agitou as profundezas escuras
para fazer brotar um mundo.
Encantado com o arrulho das pombas e o sussurro da palha,
ele sonha,
sem ouvir a música de suas outras esferas.
Respiração, boca, ouvidos, olhos
ele se restringiu
aquele que transbordou todos os céus,
todos os anos.
Mais velho que a eternidade, agora ele
é novo. Agora um nativo da terra como eu, pregado
ao meu pobre planeta, preso para que eu possa ser livre,
cego em meu ventre para eu saber que minha escuridão terminou,
trazido a este nascimento
para que eu seja uma recém-nascida,
e para que ele me veja curada
eu devo vê-lo dilacerado.

Trad.: Nelson Santander

Mary’s Song

Blue homespun and the bend of my breast
keep warm this small hot naked star
fallen to my arms. (Rest…
you who have had so far
to come.) Now nearness satisfies
the body of God sweetly. Quiet he lies
whose vigor hurled
a universe. He sleeps
whose eyelids have not closed before.
His breath (so slight it seems
no breath at all) once ruffled the dark deeps
to sprout a world.
Charmed by dove’s voices, the whisper of straw,
he dreams,
hearing no music from his other spheres.
Breath, mouth, ears, eyes
he is curtailed
who overflowed all skies,
all years.
Older than eternity, now he
is new. Now native to earth as I am, nailed
to my poor planet, caught that I might be free,
blind in my womb to know my darkness ended,
brought to this birth
for me to be new-born,
and for him to see me mended
I must see him torn.

João Miguel Fernandes Jorge – Presépio Animado da Ribeira Grande

Ainda todos se lembram do dezembro de 96.
Era dia de natal. Na estrada que leva ao norte
da ilha, sob grande tempestade, trôpego, na
berma, um gato de pelagem branca. Parecia

ferido. Fêmea branca, a que chamariam persa
de pelo curto, tinha uma chaga na orelha
alastrava pelo crânio e pela face e
olho. Massa disforme de carne e sangue,

pancada de carro ou parede de muro desabado
a ferida. Animal muito manso, delicado e
tímido, deixou que me aproximasse
lhe pegasse e a trouxesse para dentro do

meu carro. Tremia de frio e também de medo e
dor. Enxuguei-a com um pedaço de
flanela, dei por mim chamando-lhe
Princesa: era muito nova, pequena,

de um branco que resistia ao lixo da terra
da quase sarjeta de onde a tirei; olhos
claros, amendoados. A mais
delicada e triste das gatas com a horrível

ferida a alastrar, implacável. Uma
gangrena que exalava cheiro pestilento
– a princesa branca apodrecia no dia
de natal. Havia uma caixa de cartão

no banco traseiro, coloquei-a dentro e
descobri a casa do veterinário. Era uma pasta
de sangue, carne e urina tão assustada
estava. O médico agarrou-a – eles já

cheiraram muita pestilência, os veterinários –
fez-lhe festas. Era muito meiga. Não
pude olhar enquanto a matava; meteu o
corpo branco, ainda quente, na caixa de

cartão. Levei-a, morta, e com aquele cheiro;
já quase noite. Enterrei-a num pequeno
jardim, bem perto do presépio animado da Ribeira
Grande, que nesse fim de dia de natal ainda

visitei. As lágrimas de nada servem, nem
por uma gata branca a que chamei Princesa,
durante uma escassa hora, a debater-se
com a morte. O sangue, a urina

o cheiro da gangrena. Este é o inferno
dos mortais, a sua beleza e fragilidade. A
morte é uma coisa e a vida, a mesma
coisa. A face da morte é o reflexo da

vida quando se debruça sobre a superfície
da ilha. Luze em todos os natais, suave,
esbatida de traços – palavra de traição
que rodeia o medo, o abandono.

Republicação: poema publicado no blog originalmente em 15/05/2018

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Carlos Drummond de Andrade – Aniversário

Os cinco anos de tua morte
esculpiram já uma criança.
Moldada em éter, de tal sorte,
ela é fulva e no dia avança.

Este menino malasártico,
Macunaíma de novo porte,
escreve cartas no ar fantástico
para compensar tua morte.

Com todos os dentes, feliz,
lá de um mundo sem sul nem norte,
de teu inesgotável país,
ris. Alegria ou puro esporte?

Ris, irmão, assim cristalino
(Mozart aberto em pianoforte)
o redondo, claro, apolíneo
riso de quem conhece a morte.

Não adianta, vê, te prantearmos…
Tudo sabes, sem que isso importe
em cinismo, pena, sarcasmo.
E, deserto, ficas mais forte.

Giras na Ursa Maior, acaso,
solitário, em meio à coorte,
sem, nas pupilas, flor ou vaso.
Mas o jardim é teu, da morte.

Se de nosso nada possuímos
salvo o apaixonado transporte
— vida é paixão —, contigo rimos,
expectantes, em frente à Porta!