Retrospectiva 2023

E assim, mais um ano se foi. Veloz como um pássaro em voo, impulsionado pela velocidade dos eventos climáticos extremos. Mais um ano marcado pelo terror, destruição e pelas indignidades das guerras e massacres (e nisso a humanidade nunca falha: todo ano, a guerra – esse servidor público do extermínio – bate o ponto em 1º de janeiro e, sem tirar férias ou abonar faltas, segue trabalhando incessantemente). Ano das migrações climáticas e daquelas causadas pelas guerras civis, conflitos armados e pobreza extrema. Ano em que a concentração de riqueza nas mãos de poucos aumentou vertiginosamente, levando ao empobrecimento de nações inteiras.

Foi também o ano em que perdemos Botero, De Masi, Tonny Bennett, Zé Celso, Astrud Gilberto, Rita Lee, Boris Fausto, Juca Chaves, o cartunista Paulo Caruso, Gina Lollobrigida, e, mais perto do universo desta página, a grande Louise Glück.

Em meio a tanta desolação, um alívio: 2023 foi também o ano em que o Brasil se livrou de uma grande catástrofe, para dizer o mínimo. As sombras do recrudescimento do fascismo – que tem varrido o mundo nesses tempos incertos – ainda pairam sobre nós, é verdade, mas, por enquanto, estamos livres delas.

Não, não me permito crer em grandes mudanças para melhor a curto ou médio prazo. Quisera ter o otimismo da sempre perspicaz Dorianne Laux que um dia escreveu:

Se estamos fraturados,
assim o estamos
como estrelas
feitas para brilhar
em todas as direções,
por qualquer dimensão,
bilhões de anos
desde então.

Não lamentarei
o humano, ainda não.
Há algo mais
por vir, nossos corações
são como uma mina de ouro
inexplorada,
um mar desconhecido.

Nada se foi para sempre.
Se viemos do pó
e ao pó voltaremos,
então podemos descobrir o
caminho para qualquer coisa.

Ainda não se sabe
do que somos capazes,
por isso, agora mesmo, eu nos elogio
antecipadamente.

Dorianne Laux – De qualquer forma

Não é o meu caso. Mas, se é assim, sempre podemos nos abrigar no agora, no hoje, que, fundamentalmente, é tudo o que temos de concreto.

Portanto, carpe diem!

Vivamos o efêmero hoje, da melhor maneira possível, que do futuro nada sabemos.

A seguir, apresento a tradicional retrospectiva dos poemas e textos que, a meu critério, foram os mais significativos publicados na página ao longo de 2023. Espero que desfrutem desta seleção.

Desejo a todos um feliz 2024!

1. Juan Vicente Piqueras - Como Estás

Morri na última terça-feira e ninguém notou.

O mundo permaneceu o mesmo, mudando e imutável.
Não houve furacão, anúncio, tempestade
ou nuvens por entre as quais surgisse
aquele raio de luz que aparecia
nas capas dos catecismos. (...)
2. Don Peterson - Compaixão

Ela podia ter meses de sua vida canina,
mas para ser o quê? Ela estava leve como um ninho,
o dia todo sob suas longas orelhas
ouvindo em seu próprio peito um rádio em desalinho. (...)
3. Matthew Olzmann – Carta à pessoa que gravou suas iniciais no mais antigo pinheiro de folha longa da América do Norte

Diga-me como é viver sem
curiosidade, sem sentir admiração. Navegar
em águas cristalinas, desviando os olhos
dos recifes de algas que ondulam
abaixo de você, ignorando o cintilar
das escamas de sereias no nevoeiro,
olhando para o mundo e sentindo
apenas tédio. (...)
4. Judith Hemschemeyer - Naquele Verão

Naquele verão
depois que você se enforcou
sem perguntar
a ninguém que o amava
se eles podiam suportar

dei por mim arrastando mangueiras (...)
5. Dan Albergotti – Coisas para fazer no ventre da baleia

Meça as paredes. Conte as costelas. Registre os longos dias.
Olhe para o céu azul por entre os esguichos. Faça pequenas fogueiras
com os cascos partidos dos barcos de pesca. Pratique sinais de fumaça.
Ligue para os velhos amigos e escute os ecos de vozes distantes. (...)
6. Ursula K. Le Guin – Parentesco

Ardendo muito lentamente, a grande árvore da floresta
se ergue da sutil cavidade de neve
derretida ao seu redor pelo brando e duradouro
calor de seu ser e de sua vontade de ser
raiz, tronco, ramo, folha, (...)
7. Ruth Lepson – No dia da audiência do nosso divórcio

você me convidou para almoçar em uma cantina.
Nunca tínhamos sido tão gentis um com o outro.
Quando você disse que eu ainda era uma desleixada, nós rimos.
Depois do almoço, ficamos no estacionamento. (...)
8. Linda Pastan – A filha

Gostaria de ter tido outra chance
com o meu pai, desempenhado
um papel diferente
no drama da minha infância. (...)
9. Czesław Miłosz – Café

Daqueles que se encontravam à mesa do café
onde, no meio-dia de inverno, um jardim de gelo reluzia nas vidraças,
só eu sobrevivi.
Eu poderia entrar ali se quisesse
e, tamborilando meus dedos em um frio vazio,
convocar as sombras. (...)
10. Mary Oliver – Garças

Onde o caminho
se encerrava,
por entre folhas matizadas,
galhos caídos,
através de nodosas salsaparrilhas,
eu continuei. Por fim,
não pude
salvar meus braços
dos espinhos; (...)
11. Czesław Miłosz – Uma vida afortunada

Sua velhice coincidiu com os anos de colheita abundante.
Não houve terremotos, secas ou inundações.
Dir-se-ia que a mudança das estações ganhava em regularidade,
As estrelas se fortaleciam e o sol aumentava seu poder.
Mesmo em províncias remotas nenhuma guerra foi travada. (...)
12. Adam Zagajewski – Um breve poema

Eu ouvia cânticos gregorianos
num carro em alta velocidade
em uma rodovia na França.
As árvores passavam velozes. As vozes dos monges
entoavam preces a um deus invisível
(ao amanhecer de uma capela tremendo de frio). (...)
13. Thom Gunn – Natureza morta

Não esquecerei tão cedo
A pele amarelo-acinzentada
À qual o rosto se havia fixado:
Pálpebras apertadas: nada dele,
Nenhum tremor interior,
Brincava na superfície.
Ele ainda respirava, e contudo
Esta era uma obscura habilidade. (...)
14. David Wagoner – Perdido

Permanece imóvel. As árvores à frente e os arbustos ao teu lado
Não estão perdidos. Onde quer que estejas é chamado de Aqui,
E deves tratá-lo como um poderoso estranho,
Pedir permissão para conhece-lo e ser conhecido. (...)
15. Brad Aaron Modlin – O que você perdeu no dia em que não foi à aula

A Sra. Nelson explicou como ficar imóvel e ouvir
o vento, como encontrar sentido em encher o tanque,

como descascar batatas pode ser uma forma de oração. Ela respondeu
a perguntas sobre como não se sentir perdido no escuro. (...)
16. Danusha Laméris – Nada quer sofrer

Nada quer sofrer. Nem o vento
que arranha contra a encosta. Nem o penhasco

sendo devorado, lentamente, pelo mar. A terra não quer
sofrer o pisoteio bruto de quem a ignora.

As árvores não querem sofrer o machado, nem ver
suas irmãs derrubadas pela podridão, pelo mofo e oxidação de suas raízes. (...)
17. Eugenio Montale – O lago de Annecy

Não sei por que minhas memórias te relacionam
ao lago de Annecy
que visitei alguns anos antes de tua morte.
Mas na época eu não pensava em ti, era jovem
e julgava ser o senhor do meu destino. (...)
18. Alex Dimitrov – Os anos

Todas as festas que você frequentou
observando o salão
de uma sacada
onde alguém se juntou a você
para fumar e depois voltou. (...)
19. Rosanna Warren – Lago

Você estava com água até as coxas e a luz verde refletia
nas cavidades dos seus quadris e no estômago, que é onde a chama piloto
ardia nas antigas estátuas de Dionísio,
e por um momento, enquanto você caminhava mais em direção ao fundo, parecia que
aquela água poderia lavar o peso
de suas próprias estações e de doenças que não eram as suas: (...)
20. Paulo Henriques Britto – de “Oito sonetos entrópicos”

Deixar de ser é coisa natural,
como é natural ser. Pensando bem
(ou só pensando, seja bem ou mal),
o que haverá de natural, porém,
em ser o que se é, e não ser, apenas? (...)
21. Peter Sirr – Uma cartilha saxônica

Penso então em Borges ficando cego,
e no que ele disse sobre a alma.
Ele tentava entender por que
um homem que perde o mundo
busca espadas e monstros
e saxões com vozes rudes no Salão de Hidromel. (...)
22. Ted Kooser – Fazenda Abandonada

Ele era um homem grande, diz o tamanho
dos seus sapatos sobre uma pilha de pratos quebrados junto à casa;
um homem alto também, diz o comprimento da cama
no quarto do andar de cima; e um homem bom e temente a Deus,
diz a Bíblia com a contracapa arruinada
no chão abaixo da janela, empoeirada de sol;
mas não um fazendeiro, dizem os campos
cobertos por pedregulhos e o celeiro com goteiras. (...)
23. Charlotte Mew – Quartos

Lembro-me de quartos que tiveram relação
Com o constante esgotamento do coração.
O quarto em Paris, o quarto em Genebra,
O quarto pequeno e úmido com cheiro de algas
E aquele som da maré, enlouquecedor e perenal —
Quartos onde as coisas morriam — para o bem ou para o mal. (...)
24. Ada Limón – A rebitadora

O que eu não disse
quando ela me perguntou
por que eu sabia tanto
sobre morrer foi que,
para mim, aquilo era uma tarefa.
Quando papai ligou para dizer
que tínhamos um mês, eu fiz uma lista. (...)
25. Jack Gilbert – Poemas e Elegias para Michiko Nogami

As traduções que fiz da série de poemas e elegias que Jack Gilbert escreveu em homenagem à sua falecida esposa, Michiko Nogami. Uma nota introdutória sobre o poeta, sua esposa e os poemas/elegias acompanha o primeiro poema da série - "I - Noites e manhãs sem fim"
26. Zbigniew Herbert – Uma vida

Eu era um rapaz sossegado, um tanto sonolento e — surpreendentemente —
ao contrário dos meus colegas — que ansiavam por aventuras —
não nutria grandes expectativas — não costumava olhar pela janela
Na escola, era mais diligente do que competente — dócil e estável (...)
27. Gwen Harwood – No parque

Ela se senta no parque. São antiquados os seus trajes.
Duas crianças choram e brigam, puxam-lhe o babado.
Uma outra traça padrões ao acaso no gramado
Alguém que há muito tempo ela amou passa – tarde (...)
28. W. S. Merwin – Para o aniversário da minha morte

Todo ano, sem perceber, passo pelo dia
Em que as últimas chamas acenarão para mim
E o silêncio colocar-se-á a caminho
Infatigável viajante
Como os feixes de uma estrela sem luz (...)
29. Hayden Carruth – Ensaio

(...) Eles estão partindo – seus pelos e seus olhos selvagens,
suas vozes. Cervos saltam e saltam na frente
de estridentes snowmobiles até saltarem para
fora da existência. Falcões circulam uma ou duas vezes
acima de seus ninhos destruídos e depois sobem
até as estrelas. (...)
30. Ada Limón – O real motivo

Eu não tenho nenhuma tatuagem, elas não fazem parte da minha história, e sim da história
de minha mãe. Certa vez, caminhando pela Bedford Avenue quando tinha vinte e poucos anos,

liguei para ela como costumava fazer, como faço. E disse-lhe que queria uma
tatuagem na nuca. Algo discreto, mas permanente,

e como ela é uma artista, eu queria que ela fizesse a arte, um símbolo —
um peixe com o qual eu sonhava todas as noites. (...)
31. Patrizia Cavalli – Agora que

Agora que o tempo parece ser todo meu
e ninguém me chama para almoçar ou jantar,
agora que posso ficar observando
como uma nuvem desbota e se desfaz,
como um gato atravessa o telhado
no imenso luxo de uma aventura, (...)
32. Yusef Komunyakaa – Ode à Larva

Irmã da mosca-varejeira
& da divindade, você faz mágica
Nos campos de batalha,
Em pedaços de carne suína estragada

& em lugares sujos. Sim, você
Chega à raiz de todas as coisas.
Você é sólida & matemática. (...)
33. Filodemo de Gádara – Estação da Rosa Silvestre

É a estação da rosa silvestre e da hortelã, Sosylos,
a estação do grão-de-bico e dos primeiros cortes dos brotos,
dos lambaris e dos queijos salgados, da alface-crespa
em cujas novas folhas a luz transfunde
um brilho quase esquecido. Ainda assim,
reparaste como neste ano algo mudou? (...)
34. James Tate – A promoção

Eu já fui um cachorro em minha vida passada, um cachorro
muito bom, e, por isso, fui promovido a ser humano.
Eu gostava de ser um cachorro. Trabalhava para um fazendeiro pobre,
protegendo e pastoreando suas ovelhas. Lobos e coiotes
tentavam passar por mim todas as noites, mas eu
nunca perdia uma ovelha. (...)
35. Thom Gunn – O atiçador

Quarenta e oito anos atrás —
Já se passaram mesmo quarenta e oito anos
Desde então?— eles forçaram a porta
Que ela havia barricado
Com o peso de uma escrivaninha inteira
Para que ninguém descobrisse, como eles descobriram,
o que ela havia bloqueado. (...)
36. David Wagoner – O silêncio das estrelas

Certa noite, no deserto de Kalahari, quando
Laurens van der Post1 disse aos bosquímanos
Que não conseguia ouvir as estrelas
Cantando, eles não acreditaram. Eles o olharam,
Meio sorridentes. Examinaram seu rosto
Para ver se ele não estava brincando
Ou enganando-os. (...)
37. Hala Alyan – Spoiler

(...) A água devora seu trabalho como uma revoada de pássaros selvagens. Há destroços.
Um farrapo de algas marinhas e sangue onde você arranhou seu braço
tentando resistir à correnteza. Pode demorar muito tempo para acontecer,
mas um dia enfim você deslizará novamente os dedos pela areia, colherá um punhado dela
e espalhará sobre um novo chão. (...)
38. Galway Kinnell – Shelley

Quando eu tinha vinte anos, o único espírito
verdadeiramente livre de quem tinha ouvido falar era Shelley,
Shelley, que escreveu tratados defendendo
o ateísmo, o amor livre, a emancipação
feminina, a abolição da riqueza e das classes sociais,
e poemas sobre a felicidade do amor romântico, (...)
39. Li-Young Lee – Comendo sozinho

Colhi as últimas cebolas frescas do ano.
O jardim está limpo agora. O solo está frio,
gasto e pardacento. O que resta do dia
arde nos bordos, nas bordas dos meus
olhos. Eu me viro, um cardeal desaparece.
Junto à porta da adega, lavo as cebolas,
depois bebo da gelada torneira de metal. (...)
40. Sharon Olds – Minha mão

Quando olho para a minha mão, e para o dorso do meu pulso,
brilhando com o petrolato que
esfreguei em suas fissuras — óleo mineral,
ceresina, lanolina, pantenol, glicerina,
bisabolol, vejo as rugas
finas, muitas formando losangos,
algumas delas longas cicatrizes vacilantes —
isso me parece comovente e afortunado. (...)
41. Lucille Clifton – Dois poemas

adão pensando

ela
roubou meu osso
não é de admirar
que eu anseie cavar de volta
para dentro desesperado
para reconectar costela e argila
e ser inteiro outra vez (...)
42. Philip Schultz – Fracasso

Para pagar o funeral do meu pai,
pedi dinheiro emprestado a pessoas
a quem ele já devia dinheiro.
Um deles o chamou de zé-ninguém.
Não, eu disse, ele era um fracassado.
Ninguém se lembra o nome
de um zé-ninguém, é por isso que
eles são chamados de zés-ninguém. (...)
43. Otto D’Sola – Plenitude

Da formiga à estrela mais alta, fomos capazes de tecer uma longa história que nunca acabará;
da rocha aos pinhais,
dos pântanos ao berço de um tênue vento recém-nascido, fomos capazes de dar ao solo duro e seco a alegria de contemplar uma estrela e uma flor aberta. (...)
44. Ann Fischer-Wirth – Milagre de um coração sagrado e três folhas de faia, cada uma machada de verde e carmesim

Agora, as traças comeram seu triste dicionário.
Uma vez, você esteve atrás do balcão,

laços em seus cabelos, medindo e cortando tecidos
para as damas rechonchudas. E agora uma pilha de Kleenex

sobe pelo seu cotovelo enquanto você lida com sua rinite.
Você se tornou uma caixa de sobras, cabelos ralos

e sem viço, unhas azuis de cianose. (...)
45. Stanley Kunitz – Cometa de Halley

A srta. Murphy, da primeira série,
escreveu o nome dele no quadro negro
com giz e nos contou que ele
viajava rugindo pelas trajetórias de tempestades
da Via Láctea a uma velocidade aterrorizante,
e que se ele desviasse do seu curso
e colidisse com a terra
não haveria aula no dia seguinte. (...)
46. Matthew Rohrer – Não há absolutamente nada mais solitário

Não há absolutamente nada mais solitário
do que o pequeno Mars Rover,
sempre em funcionamento, escavando
rochas, tão longe da Bond street
sob a chuva suave. (...)
47. Ada Limón – Notas sobre o Subterrâneo

Colossal caverna, diga-me, úmido calcário, rocha de arenito,
asa de morcego, cego e translúcido camarão-das-cavernas,

esta queda livre para além do desconhecido,
como se guardam segredos por tanto tempo? (...)
48. Diane Seuss – [Todas as coisas agora me lembram]

Todas as coisas agora me lembram de como o amor costumava ser. Taboas dilatadas em lugares
solitários. Condicionador viscoso em meus cabelos. Sólidos livros. Suas variegadas lombadas. (...)
49. James Tate – A volta para casa

Eu disse ao médico que nunca mais o veria. “Não, acho
que não”, ele disse. Saí pela porta me sentindo realmente bem.
Claro, eu sabia que ia morrer, mas ainda assim o dia parecia claro
para mim. Caminhei até o lago. Patos circulavam ao redor por ali. (...)
50. A. E. Stallings – Lógica de conto de fadas

Os contos de fadas estão repletos de tarefas irreais:
Juntar os pelos do queixo de uma cabra que os homens devora,
Ou cruzar um lago sulfúrico em uma danificada igara,
Escolher o príncipe de uma fila de máscaras iguais, (...)
51. Dennis Trudell – Conto de Feriado

Uma mulher nunca contou ao marido
ou a qualquer pessoa sobre o bilhete de amor
que recebera há trinta anos. Não havia
assinatura, e depois de tentar adivinhar inúmeras
vezes quem na cidade o enviara, ela
há muito aceitara que nunca o saberia. (...)
52. Jeffrey McDaniel – O mundo silencioso

Na tentativa de fazer as pessoas olharem
mais nos olhos umas das outras,
e também para apaziguar os mudos,
o governo decidiu atribuir
a cada pessoa exatamente cento
e sessenta e sete palavras por dia. (...)
53. Emily Bryant Voigt – A cúspide

Tão poucos pássaros — os que passam o inverno
e os gansos migrando pelos campos vazios,
atravessando as hastes retorcidas de milho cortado:
ao nosso redor, tudo o que é verde é suprimido,
e na melancólica floresta, as árvores nuas,
despidas de folhas ou quase sem elas,
formam uma morada sombria entre nuvens baixas
que têm o aspecto de neve obstinada. (...)
54. Sharon Olds – Destino

Finalmente desisti e me tornei meu pai,
sua face oleosa e abatida, brilhando para
qualquer pessoa que eu olhasse, seus olhos castanhos-lodo
em meu rosto, cintilando como chão molhado em que
as coisas que amamos caíram,
e se perderam para sempre. (...)
55. Lisel Mueller – Isso é o que você fará

O que você fez quando a geleira
cobriu sua boca com gelo
     quando suas escamas se desprenderam
e foram deixadas no chão para se deteriorar
     quando você parou de trilhar as águas
e começou a respirar o ar? (...)
56. Bob Hicok – Alzheimer

As cadeiras se movem sozinhas, assim como os livros.
Os netos vêm visitá-la, são
jovens e sem nomes, peças ausentes nos quebra-cabeças
de seus rostos. Ela é como um peixe

no oceano profundo, seu corpo é feito de luz. (...)
57. Ada Limón - Em um poste de luz, há muito tempo

Não sei por onde começar
na lista
de todas as coisas que estão desaparecendo: peixes, pássaros, árvores,
flores, abelhas,
e também idiomas. Dizem que, se as taxas históricas forem
calculadas,
um idioma morrerá a cada quatro meses. (...)
58. Jaime Manrique – O céu sobre a casa de minha mãe

É uma noite de julho
perfumada com gardênias.
Brilham a lua e as estrelas
sem revelar a essência da noite.
Ao longo do crepúsculo
— com suas gradações cada vez mais intensas de ônix,
e o resplendor dourado das estrelas e das sombras —
minha mãe arrumou a casa, o jardim, a cozinha. (...)
59. Philip Larkin – A casa está tão triste

A casa está tão triste. Ficou como foi deixada,
Moldada para o conforto dos últimos saintes
Querendo reconquista-los. Ao invés, despojada
De alguém para agradar, ela definha assim, carente
De um coração para esquecer que foi roubada (...)
60. Eavan Boland – Atlântida – Um soneto perdido

Como diabos aconteceu, eu costumava me perguntar,
de uma cidade inteira – arcos, pilares, colunatas,
isso sem falar nos veículos e animais – ter-se,
um belo dia, afundado? (...)

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