Sophia de Mello Breyner Andresen – Traduzido de Kleist

Dizem que no outro mundo o sol é mais brilhante
E brilha sobre campos mais floridos
Mas os olhos que vêem essas maravilhas
São olhos apodrecidos

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 17/02/2016

Ferreira Gullar – Voltas Para Casa

Nuno Júdice – Amor

Um poema, dizes, em que
o amor se exprima, tudo
resumindo em palavras.

Mas o que fica
nas palavras
daquilo que se viveu?

Um pó de sílabas,
o ritmo pobre da
gramática, rimas sem nexo…

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Arnaldo Antunes – Eu apresento a página branca

Eu apresento a página branca

Contra:

Burocratas travestidos de poetas
Sem-graças travestidos de sérios
Anões travestidos de crianças
Complacentes travestidos de justos
Jingles travestidos de rock
Estórias travestidas de cinema
Chatos travestidos de coitados
Passivos travestidos de pacatos
Medo travestido de senso
Censores travestidos de sensores
Palavras travestidas de sentido
Palavras caladas travestidas de silêncio
Obscuros travestidos de complexos
Bois travestidos de touros
Fraquezas travestidas de virtudes
Bagaços travestidos de polpa
Bagos travestidos de cérebros
Celas travestidas de lares
Paisanas travestidos de drogados
Lobos travestidos de cordeiros
Pedantes travestidos de cultos
Egos travestidos de eros
Lerdos travestidos de zen
Burrice travestida de citações
água travestida de chuva
aquário travestido de tevê
água travestida de vinho
água solta apagando o afago do fogo
água mole sem pedra dura
água parada onde estagnam os impulsos
água que turva as lentes e enferruja as lâminas
água morna do bom gosto, do bom senso e das boas intenções
insípida, amorfa, inodora, incolor
água que o comerciante esperto coloca na garrafa para diluir o whisky
água onde não há seca
água onde não há sede
água em abundância
água em excesso
água em palavras.

Eu apresento a página branca.

A árvore sem sementes.

O vidro sem nada na frente.

Contra a água.

Vinicius de Moraes – Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma…
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 14/08/2020

Carlos Drummond de Andrade – Mãos dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 12/08/2020

Miguel Torga – Rogo

Não, não rezes por mim.
Nenhum deus me perdoa a humanidade.
Vim sem vontade
E vou desesperado.
Mas assinei a vida que vivi.
Doeu-me o que sofri.
Fui sempre o senhorio do meu fado.

Por isso, quero a morte que mereço.
A morte natural,
Solitária e maldita
De quem não acredita
Em nenhuma oração
De salvação.
De quem sabe que nunca ressuscita.

Coimbra, 16 de Abril de 1979

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 09/08/2020

Paulo Henriques Britto – de “Vers de circonstance”

I. Imunidade de Rebanho

A estupidez é sua própria recompensa.
Graças a ela, o mundo faz sentido,
um só, que é fácil de identificar.
E só o fácil satisfaz a quem não pensa.

Pensar é coisa trabalhosa. A ignorância
é o sumo bem dos cidadãos de bem,
é a verdadeira marca dos eleitos.
Ter sucesso é não ter que saber. Saber cansa,

e o objetivo central de qualquer existência
só pode ser não se cansar. Olhai
as vacas do campo: não lhes faz falta a ciência,

pastam em plena bem-aventurança,
sem que nenhuma antevisão do matadouro
perturbe a santa paz da ruminança.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 10/07/2020

Maria do Rosário Pedreira – [Quem se afasta do mundo deixa a quem fica]

                                                          para José Luís Peixoto

Quem se afasta do mundo deixa a quem fica
um rasto de perguntas. Mas eu vi a morte dançar
tantas vezes no lago dos teus olhos que não pergunto
pelos teus passos à lama dos caminhos nem
pelos teus sonhos ao côncavo da cama. Quando

partiste, a solidão ficou nas coisas todas – no prato
que ia por vício para a mesa mas voltava vazio;
nas roupas escuras; nas sardinheiras secas; na dor
embrutecida do cão cego a ganir toda a noite à porta
do teu quarto; na casa fria; no livro aberto

ao meio no tapete (e que ninguém lerá, porque divide
a tua vida entre o que foi e o que podia ter sido se deus
fosse mais deus do que diziam); e ainda neste rosto
que me deste – e que é o teu no meu envelhecido.

A tua morte foi como um espelho partido contra o verão;
e nenhum vento que atravessasse o mundo varreria
de mim os seus estilhaços. Por isso, perguntar não mais
seria do que tecer uma armadilha para as memórias

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David Mourão-Ferreira – Soneto do cativo

Se é sem dúvida Amor esta explosão
De tantas sensações contraditórias;
A sórdida mistura das memórias,
Tão longe da verdade e da invenção;

O espelho deformante; a profusão
De frases insensatas, incensórias;
A cúmplice partilha nas histórias
Do que os outros dirão ou não dirão;

Se é sem dúvida Amor a cobardia
De buscar nos lençóis a mais sombria
Razão de encantamento e de desprezo;

Não há dúvida, Amor, que te não fujo
E que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
Tenho vivido eternamente preso!

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 04/07/2020