Louise Glück – Luz em retirada

Vocês eram como crianças pequenas,
sempre esperando por uma história.
E eu já havia passado por tudo aquilo muitas vezes;
eu estava cansado de contar histórias.
Então eu lhes dei papel e lápis.
Eu lhes dei canetas feitas de juncos que
eu mesmo havia reunido, à tarde, nos densos prados.
E lhes disse: escrevam sua própria história.

Depois de todos estes anos me ouvindo
eu pensei que vocês saberiam
o que era uma história.

Tudo o que vocês podiam fazer era chorar.
Vocês queriam que tudo fosse contado a vocês
e nada pensado por vocês mesmos.

Então percebi que vocês não conseguiam pensar
com real ousadia ou paixão;
Vocês ainda não tinham vivido suas próprias vidas,
suas próprias tragédias.
Então eu lhes dei vidas, eu dei a vocês tragédias,
porque aparentemente só as ferramentas não eram suficientes.

Vocês jamais saberão o quão profundamente
me agrada vê-los sentados aí,
como seres independentes,
vê-los sonhando diante da janela aberta,
segurando os lápis que eu lhes dei
até que a manhã de verão desapareça na escrita.

A criação trouxe a vocês
grande excitação, como eu sabia que traria,
como sempre acontece no início.
E estou livre para fazer o que quiser agora,
para cuidar de outras coisas, confiante
de que vocês não precisam mais de mim.

Trad.: Nelson Santander

Retreating light

You were like very young children,
always waiting for a story.
And I’d been through it all too many times;
I was tired of telling stories.
So I gave you the pencil and paper.
I gave you pens made of reeds
I had gathered myself, afternoons in the dense meadows.
I told you, write your own story.

After all those years of listening
I thought you’d know
what a story was.

All you could do was weep.
You wanted everything told to you
and nothing thought through yourselves.

Then I realized you couldn’t think
with any real boldness or passion;
you hadn’t had your own lives yet,
your own tragedies.
So I gave you lives, I gave you tragedies,
because apparently tools alone weren’t enough.

You will never know how deeply
it pleases me to see you sitting there
like independent beings,
to see you dreaming by the open window,
holding the pencils I gave you
until the summer morning disappears into writing.

Creation has brought you
great excitement, as I knew it would,
as it does in the beginning.
And I am free to do as I please now,
to attend to other things, in confidence
you have no need of me anymore.

Louise Glück – Presque Isle

Em cada vida, há um momento ou dois.
Em cada vida, um quarto em algum lugar, à beira-mar ou nas montanhas.

Sobre a mesa, um prato de damascos. Caroços em um cinzeiro branco.

Como todas as imagens, essas foram as condições de um pacto:
em seu rosto, o tremor da luz do sol,
meu dedo pressionando seus lábios.
As paredes branco-azuladas; a tinta da escrivaninha ligeiramente descascada.

Esse quarto ainda deve existir, no quarto andar,
com uma pequena varanda com vista para o oceano.
Um quarto quadrado e branco, o sobrelençol dobrado para trás na beirada da cama.
Ele não se dissolveu de volta ao nada, à realidade.
Pela janela aberta, o ar do mar, com seu cheiro de iodo.

De manhã cedo: um homem chamando um garotinho de volta da água.
Esse garotinho — ele teria vinte anos agora.
Ao redor do seu rosto, mechas de cabelo úmido, riscadas de ruivo.
Musselina, lampejo de prata. Pote pesado carregado de peônias brancas.

Trad.: Nelson Santander

Presque Isle

In every life, there’s a moment or two.
In every life, a room somewhere, by the sea or in the mountains.

On the table, a dish of apricots. Pits in a white ashtray.

Like all images, these were the conditions of a pact:
on your cheek, tremor of sunlight,
my finger pressing your lips.
The walls blue-white; paint from the low bureau flaking a little.

That room must still exist, on the fourth floor,
with a small balcony overlooking the ocean.
A square white room, the top sheet pulled back over the edge of the bed.
It hasn’t dissolved back into nothing, into reality.
Through the open window, sea air, smelling of iodine.

Early morning: a man calling a small boy back from the water.
That small boy — he would be twenty now.
Around your face, rushes of damp hair, streaked with auburn.
Muslin, flicker of silver. Heavy jar filled with white peonies.

Louise Glück – Ipomoea

Qual foi o meu crime em outra vida,
como nesta vida meu crime
é a dor, de modo que não me é
permitido ascender novamente,
nunca em nenhum sentido
me é permitido repetir minha vida,
ferida no espinheiro, toda
beleza terrena um castigo
tão meu quanto seu —
Fonte do meu sofrimento, por que
você tirou de mim
estas flores celestes, salvo
para me marcar como parte
do meu mestre: eu sou
da cor de seu manto, minha carne dá
forma à sua glória.

Trad.: Nelson Santander

Ipomoea

What was my crime in another life,
as in this life my crime
is sorrow, that I am not to be
permitted to ascend ever again,
never in any sense
permitted to repeat my life,
wound in the hawthorn, all
earthly beauty my punishment
as it is yours —
Source of my suffering, why
have you drawn from me
these flowers like the sky, except
to mark me as a part
of my master: I am
his cloak’s color, my flesh giveth
form to his glory.

Louise Glück – A rosa branca

É esta a terra? Então
eu não pertenço a este lugar.

Quem é você na janela acesa,
sombreado agora pelas folhas trêmulas
de uma viburnum lantana1?
Você pode sobreviver onde eu não durarei
além do primeiro verão?

Ao longo da noite, os ramos finos da árvore
movem-se e farfalham na janela iluminada.
Explique minha vida para mim, você que não faz sinal algum,

embora na noite eu clame por você:
eu não sou como você, eu só tenho
meu corpo como voz; eu não consigo
desaparecer no silêncio —

E na fria manhã
sobre a superfície escura da terra
ecos da minha voz pairam,
a brancura constantemente absorvida pela escuridão

como se você afinal estivesse fazendo um sinal
para me convencer de que você também não sobreviveria aqui

ou para me mostrar que você não é a luz que pedi,
mas a escuridão por trás dela.

Trad.: Nelson Santander

1- N. do T.: A virburnum lantana, cujo nome científico é Lantana camara, é uma planta arbustiva perene, com altura variando entre 0,30m e 2,00m.  No Brasil, é conhecida pelos nomes populares de lantana, cambá, cambá-de-cheiro e camará.

The white rose

This is the earth? Then
I don’t belong here.

Who are you in the lighted window,
shadowed now by the flickering leaves
of the wayfarer tree?
Can you survive where I won’t last
beyond the first summer?

All night the slender branches of the tree
shift and rustle at the bright window.
Explain my life to me, you who make no sign,

though I call out to you in the night:
I am not like you, I have only
my body for a voice; I can’t
disappear into silence —

And in the cold morning
over the dark surface of the earth
echoes of my voice drift,
whiteness steadily absorbed into darkness

as though you were making a sign after all
to convince me you too couldn’t survive here

or to show me you are not the light I called to
but the blackness behind it.

Louise Glück – Colheita

Entristece-me pensar em vocês no passado —

Olhe para vocês, agarrando-se cegamente à terra
como se fossem os vinhedos do paraíso
enquanto os campos ardem ao redor —

Ah, pequeninos, como são pouco sutis:
isso é ao mesmo tempo o dom e o tormento.

Se o que temem na morte
é uma punição além disso, não precisam
temer a morte:

quantas vezes devo destruir minha própria criação
para ensinar-lhes
que esta é a sua punição:

com um gesto, eu os estabeleci
no tempo e no paraíso.

Trad.: Nelson Santander

Harvest

It grieves me to think of you in the past —

Look at you, blindly clinging to earth
as though it were the vineyards of heaven
while the fields go up in flames around you —

Ah, little ones, how unsubtle you are:
it is at once the gift and the torment.

If what you fear in death
is punishment beyond this, you need not
fear death:

how many times must I destroy my own creation
to teach you
this is your punishment:

with one gesture I established you
in time and in paradise.

Louise Glück – Escuridão Inicial

Como podem afirmar
que a terra deveria me dar alegria? Cada coisa
nascida é meu fardo; não posso prosperar
com todos vocês.

E vocês gostariam de ditar para mim,
gostariam de me dizer
quem entre vocês é mais valioso,
quem mais se assemelha a mim.
E apresentam como exemplo
a vida pura, o desapego
que lutam para alcançar —

Como vocês podem me entender
quando vocês mesmos não se compreendem?
Sua memória não é
poderosa o suficiente, não
alcançará longe o bastante —
Nunca se esqueçam que vocês são meus filhos.
Vocês não sofrem por terem se tocado,
mas porque nasceram,
porque exigiram uma vida
separada de mim.

Trad.: Nelson Santander

Early darkness

How can you say
earth should give me joy? Each thing
born is my burden; I cannot succeed
with all of you.

And you would like to dictate to me,
you would like to tell me
who among you is most valuable,
who most resembles me.
And you hold up as an example
the pure life, the detachment
you struggle to achieve —

How can you understand me
when you cannot understand yourselves?
Your memory is not
powerful enough, it will not
reach back far enough —
Never forget you are my children.
You are not suffering because you touched each other
but because you were born,
because you required life
separate from me.

Louise Glück – Vésperas (6)

Você pensou que nós não soubéssemos. Mas nós sabíamos,
as crianças sabem dessas coisas. Não vire as costas agora –
     nós habitávamos
uma mentira para apaziguá-lo. Eu me lembro
da luz do sol do início da primavera, os taludes
reticulados por vincas roxas. Eu me lembro
de me deitar em um campo, roçando o corpo de meu irmão.
Não vire as costas agora; nós negamos
as memórias para consola-lo. Nós o imitamos, recitando
os termos de nossa punição. Eu me lembro
de parte disso, não de tudo: o engano
começa com o esquecimento. Eu me lembro de pequenas coisas, flores
crescendo sob o espinheiro branco, os sinos
da scilla selvagem. Não de tudo, mas o suficiente
para saber que você existe. Quem mais teria motivos para criar
desconfiança entre um irmão e uma irmã além daquele
que lucrou, a quem nos voltamos em solidão? Quem mais
invejaria tanto o vínculo que tínhamos na época
a ponto de dizer-nos que não era a terra
mas o céu que estávamos perdendo?

Trad.: Nelson Santander

Vespers

You thought we didn’t know. But we knew once,
children know these things. Don’t turn away now —
     we inhabited
a lie to appease you. I remember
sunlight of early spring, embankments
netted with dark vinca. I remember
lying in a field, touching my brother’s body.
Don’t turn away now; we denied
memory to console you. We mimicked you, reciting
the terms of our punishment. I remember
some of it, not all of it: deceit
begins as forgetting. I remember small things, flowers
growing under the hawthorn tree, bells
of the wild scilla. Not all, but enough
to know you exist: who else had reason to create
mistrust between a brother and sister but the one
who profited, to whom we turned in solitude? Who else
would so envy the bond we had then
as to tell us it was not earth
but heaven we were losing?

Louise Glück – Vésperas (5)

Assim como você apareceu para Moisés, porque
eu necessito de você, você aparece para mim,
raramente, porém. Eu vivo essencialmente
nas trevas. Você talvez esteja me treinando para ser
mais responsiva ao menor clarão. Ou, como os poetas,
será que o desespero o estimula, o sofrimento
o leva a revelar sua natureza? Esta tarde,
no mundo material ao qual você normalmente
contribui com seu silêncio, subi
a pequena colina acima dos mirtilos silvestres, metafisicamente
descendo, como em todas as minhas caminhadas: teria eu ido fundo o suficiente
para que você tivesse piedade de mim, da mesma forma como às vezes se apieda
de outros que sofrem, favorecendo aqueles
com dons teológicos? Como você previu,
não olhei para cima. Então você veio até mim:
aos meus pés, não as folhas
enceradas dos mirtilos silvestres, mas o seu ardente eu, uma pastagem
inteira em chamas, e além, o sol, nem se pondo, nem nascendo –
Eu não era uma criança; podia tirar vantagem das ilusões.

Trad.: Nelson Santander

Vespers

Even as you appeared to Moses, because
I need you, you appear to me, not
often, however. I live essentially
in darkness. You are perhaps training me to be
responsive to the slightest brightening. Or, like the poets,
are you stimulated by despair, does grief
move you to reveal your nature? This afternoon,
in the physical world to which you commonly
contribute your silence, I climbed
the small hill above the wild blueberries, metaphysically
descending, as on all my walks: did I go deep enough
for you to pity me, as you have sometimes pitied
others who suffer, favoring those
with theological gifts? As you anticipated,
I did not look up. So you came down to me:
at my feet, not the wax
leaves of the wild blueberry but your fiery self, a whole
pasture of fire, and beyond, the red sun neither falling nor rising—
I was not a child; I could take advantage of illusions.

Louise Glück – Vésperas (4)

Eu não me pergunto mais onde você está.
Você está no jardim; você está onde John está,
na terra, absorto, segurando sua pequena pá verde.
É assim que ele jardina: quinze minutos de intenso esforço,
quinze minutos de estática contemplação. Às vezes,
trabalho ao lado dele, fazendo as tarefas à sombra,
capinando, esfolhando as alfaces; às vezes, o observo
do alpendre próximo ao jardim superior até que o crepúsculo transforme
em luzes os primeiros lírios: durante todo esse tempo,
a paz nunca o abandona. Mas ela passa por mim,
não como o sustento que as flores retêm,
mas como uma luz brilhante através da árvore nua.

Trad.: Nelson Santander

Vespers

I don’t wonder where you are anymore.
You’re in the garden; you’re where John is,
in the dirt, abstracted, holding his green trowel.
This is how he gardens: fifteen minutes of intense effort,
fifteen minutes of estatic contemplation. Sometimes
I work beside him, doing the shade chores,
weeding, thinning the lettuces; sometimes I watch
from the porch near the upper garden until twilight makes
lamps of the first lilies: all this time,
peace never leaves him. But it rushes through me,
not as sustenance the flower holds,
but like the bright light through the bare tree.

Louise Glück – Fim de verão

Depois de tudo o que me ocorreu,
o vazio me ocorreu.

Há um limite
para o prazer que tive na forma —

Eu não sou como vocês nisso,
Não tenho liberdade em outro corpo,

Não preciso
de abrigo fora de mim —

Minha pobre inspirada
criação, vocês são
distrações, enfim,
meras limitações; no final,
vocês são muito pouco parecidas comigo
para me agradar.

E tão intransigentes —
querem ser compensadas
pelos seus desaparecimentos,
tudo pago com algum pedaço de terra,
algum souvenir, como vocês já foram uma vez
recompensadas pelo trabalho,
o escriba pago
em prata, o pastor em cevada

embora não seja a terra
duradoura, não com
essas pequenas lascas de matéria —

se abrissem os seus olhos
vocês me veriam, e veriam
o vazio do céu
espelhado na terra, os campos
vazios novamente, sem vida, cobertos de neve —

a luz branca, nessa altura,
não mais disfarçada de matéria.

Trad.: Nelson Santander

End of summer

After all things occurred to me,
the void occurred to me.

There is a limit
to the pleasure I had in form —

I am not like you in this,
I have no release in another body,

I have no need
of shelter outside myself —

My poor inspired
creation, you are
distractions, finally,
mere curtailment; you are
too little like me in the end
to please me.

And so adamant —
you want to be paid off
for your disappearance,
all paid in some part of the earth,
some souvenir, as you were once
rewarded for labor,
the scribe being paid
in silver, the shepherd in barley

although it is not earth
that is lasting, not
these small chips of matter—

If you would open your eyes
you would see me, you would see
the emptiness of heaven
mirrored on earth, the fields
vacant again, lifeless, covered with snow—

then white light
no longer disguised as matter.