Nelson Santander – Cinema Paradiso e a visita cruel do tempo

Há 30 anos, de forma despretensiosa, o diretor italiano Giuseppe Tornatore presenteava o mundo com aquele que, ao longo dos anos, se tornaria um dos filmes mais queridos da história do cinema: “Cinema Paradiso”.

O vídeo que ilustra este texto é o da famosa cena do mosaico de beijos, a mesma que encerra o filme. Sempre me questionei por que este trecho em particular me comovia tanto, em um filme repleto de passagens inesquecíveis: a cena em que Totó recebe um beijo inesperado de Elena, após ficar dias parado na frente da casa em que ela morava para provar que a amava; o momento da demolição do cinema; o excerto em que Alfredo – o simpático projecionista da cidade – projeta o filme na parede da praça; a cena do funeral de Alfredo.

Todos esses fragmentos – verdadeiros minicontos – são dotados de elevada voltagem emotiva. Contudo, não se comparam à cena final, na qual Totó, agora adulto, cabelos brancos e cineasta de sucesso, assiste à projeção de um filme que recebera das mãos de sua mãe, a pedido do recém-falecido Alfredo. O filme, na verdade, é uma colagem de várias cenas de beijos e algumas com erotismo e nudez, que o pároco da sua cidade natal costumava censurar nas películas antes da exibição no cinema em que Totó, quando criança, trabalhava como assistente de Alfredo.

Mas o que faz essa passagem me comover tanto? Seria o contexto e o momento em que o trecho é inserido (logo após a cena que mostra a demolição do cinema)? Ou o delicado tema musical composto por Ennio Morricone, que acompanha o desenrolar da cena?

Não. Ou melhor, não apenas isso. Esses elementos são cruciais para criar em “Cinema Paradiso” um ambiente emotivo que atinge seu ápice na fatídica cena dos beijos. No entanto, embora embevecido pelas cenas anteriores do filme e hipnotizado pela melodia inspirada de Morricone, o que mais me comove na cena é antes o vislumbre que ela nos proporciona de nossa própria efemeridade. Esteticamente, amor romântico e beleza física são opostos à doença, antônimos da decrepitude, a antítese da morte. Nada representa mais estar vivo do que as cenas que aparecem na tela: mulheres sensuais e beijos eróticos, arrebatadores, delicados, violentos, apaixonados, singelos – todos os tipos de beijos que o amor romântico criou para se expressar. E trocados por casais formados por atores que, quando filmaram essas cenas nos anos 20, 30, 40 e 50, estavam no auge de sua juventude e beleza física.

No entanto, a sensação de transitoriedade que transborda na célebre passagem se acentua ainda mais ao lembrarmos que os atores que aparecem nessas cenas estão todos mortos – Silvana Mangano, Vittorio Gassman, Cary Grant, Rosalind Russell, Jane Russell, Doris Duranti, Georgia Hale, Charlie Chaplin, Olivia de Havilland, Errol Flynn, Rudolph Valentino, Vilma Banky, James Stewart, Donna Reed, Vittorio de Sica, Yvonne Sanson, Anna Magnani, Marcello Mastroianni, Maria Schell, Jean Gabin, June Astor, Gary Cooper, Clark Gable, Joan Crawford, Greta Garbo, John Barrymore, lolooSpencer Tracy, Ingrid Bergman. Todos mortos – alguns há mais de 90 anos. Atores e atrizes que conheceram a fama e a fortuna, que foram os mais desejados de sua época, e cuja beleza e juventude, hoje, não passam de poeira.

As lágrimas que um arrebatado Totó derrama ao assistir o filme são minhas também. Totó chora a saudade de tudo o que viveu e do que perdeu. A mim me emociona testemunhar, impotente, na película que comove o cineasta, a inexorável marcha do tempo.

PS.: um internauta me avisa que Olivia de Havilland não está morta; tem 102 anos e mora atualmente em Paris. Quando escrevi esse texto, eu podia jurar que havia lido em algum lugar a notícia de que ela falecera há alguns anos. Fica aí uma lição: depois dos 50, jamais confie em sua memória, já que o tempo – a matéria principal do meu texto – também faz estragos nesse campo. De toda forma, a ideia geral que eu quis transmitir permanece intacta – a decrepitude e a senilidade são as características principais da velhice profunda, e só com muita boa vontade dá para dizer que está vivendo quem chegou tão longe na corrida da existência.

paulo leminski – sossegue coração

sossegue coração
ainda não é agora
a confusão prossegue
sonhos afora

calma calma
logo mais a gente goza
perto do osso
a carne é mais gostosa

Antonio Cicero – Prólogo

Por onde começar? Pelo começo
absoluto, pelo rio Oceano,
já que ele é, segundo o poeta cego
em cujo canto a terra e o céu escampo
e o que é e será e não é mais
e longe e perto se abrem para mim,
pai das coisas divinas e mortais,
seu líquido princípio, fluxo e fim:
pois ele corre em torno deste mundo
e de todas as coisas que emergiram
das águas em que, após breves percursos,
mergulharão de novo um belo dia;
e flui nos próprios núcleos e nos lados
ocultos dessas coisas, nos quais faz
redemunhos por cujos centros cavos
tudo o que existe escoa sem cessar
de volta àquelas águas de onde surge:
não me refiro à água elementar
que delas mana e nelas se confunde
com os elementos terra, fogo e ar
mas a águas que nunca são as mesmas:
outras e outras, sem identidade
além do fluxo, nelas só lampeja
a própria mutação, sem mais mutante:
um nada de onde tudo vem a ser,
escuridão de onde provém a luz,
tal Oceano é a mudança pura.
Mas eis que a poesia nos conduz,
feito um repuxo e a seu bel-prazer,
de volta do princípio às criaturas.

Luis Alberto de Cuenca – Quando Penso nos Velhos Amigos

Quando penso nos velhos amigos que saíram
de minha vida, unindo-se a más mulheres
que alimentam seu medo e os enchem de filhos
para tê-los por perto, controlados e inermes.

Quando penso nos velhos amigos que se foram
para o país da morte, sem passagem de volta,
só porque procuraram o deleite nos corpos
e o olvido nas drogas que abrandam a tristeza.

Quando penso nos velhos amigos que, no fundo
das águas da memória, me ofertaram um dia
a estranha sensação de não me sentir só
e a cumplicidade de um sorriso sincero…

Trad.: Nelson Santander
 

Luis Alberto de Cuenca – Cuando pienso en los viejos amigos

Cuando pienso en los viejos amigos que se han ido
de mi vida, pactando con terribles mujeres
que alimentan su miedo y los cubren de hijos
para tenerlos cerca, controlados e inermes.

Cuando pienso en los viejos amigos que se fueron
al país de la muerte, sin billete de vuelta,
sólo porque buscaron el placer en los cuerpos
y el olvido en las drogas que alivian la tristeza.

Cuando pienso en los viejos amigos que, en el fondo
del mar de la memoria, me ofrecieron un día
la extraña sensación de no sentirme solo
y la complicidad de una franca sonrisa…

Robert Schindel – Réquiem por uma Amizade

Morreu o meu hóspede, vejo-o ainda a descer, a descer
Pelo caminho abaixo com a distância nos cabelos.
E de noite, quando as estrelas o permitem, serpenteia, serpenteia
O seu eco no coração, morreu o meu hóspede.

Um riso, um sapato, o violino de estar aqui
Bebíamos um copo ou dormíamos nas palavras mais novas
E havia segundos que fazíamos explodir
Saltar da lama do tempo, para assim o podermos entender.

Agora foi-se, o seu nome descansa, descansa o tempo
Levanto os pés do caminho e vou andando
Às arrecuas pelo atalho, o eco traz-me
O longe e o perto, eu e nunca, o hóspede-amigo do lado de lá.

Há por aqui outras paisagens?, perguntam por vezes as crianças.
Eu parto o caminho em pedaços e ofereço-lhes
Serpentinas, serpentinas, que elas recebem como maçãs e papoilas.
Porque tempos houve em que dormíamos nas palavras,
Tempos houve em que fazíamos explodir o tempo.

Trad.: João Barrento

Sophia de Mello Breyner Andresen – Espera

Dei-te a solidão do dia inteiro.
Na praia deserta, brincando com a areia,
No silêncio que apenas quebrava a maré cheia
A gritar o seu eterno insulto,
Longamente esperei que o teu vulto
Rompesse o nevoeiro.

josé luís peixoto – arte poética

o poema não tem mais que o som do seu sentido,
a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
o poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma,
poema não se lê poema, lê-se pão ou flor, lê-se erva
fresca e os teus lábios, lê-se sorriso estendido em mil
árvores ou céu de punhais, ameaça, lê-se medo e procura
de cegos, lê-se mão de criança ou tu, mãe, que dormes
e me fizeste nascer de ti para ser palavras que não
se escrevem, lê-se país e mar e céu esquecido e
memória, lê-se silêncio, sim tantas vezes, poema lê-se silêncio,
lugar que não se diz e que significa, silêncio do teu
olhar doce de menina, silêncio ao domingo entre as conversas,
silêncio depois de um beijo ou de uma flor desmedida, silêncio
de ti, pai, que morreste em tudo para só existires nesse poema
calado, quem o pode negar?, que escreves sempre e sempre, em
segredo, dentro de mim e dentro de todos os que te sofrem.
o poema não é esta caneta de tinta preta, não é esta voz,
a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
o poema é quando eu podia dormir à tarde nas férias
do verão e o sol entrava pela janela, o poema é onde eu
fui feliz e onde eu morri tanto, o poema é quando eu não
conhecia a palavra poema, quando eu não conhecia a
letra p e comia torradas feitas no lume da cozinha do
quintal, o poema é aqui, quando levanto o olhar do papel
e deixo as minhas mãos tocarem-te, quando sei, sem rimas
e sem metáforas, que te amo, o poema será quando as crianças
e os pássaros se rebelarem e, até lá, irá sendo sempre e tudo.
o poema sabe, o poema conhece-se e, a si próprio, nunca se chama
poema, a si próprio, nunca se escreve com p, o poema dentro de
si é perfume e é fumo, é um menino que corre num pomar para
abraçar o seu pai, é a exaustão e a liberdade sentida, é tudo
o que quero aprender se o que quero aprender é tudo,
é o teu olhar e o que imagino dele, é solidão e arrependimento,
não são bibliotecas a arder de versos contados porque isso são
bibliotecas a arder de versos contados e não é o poema, não é a
raiz de uma palavra que julgamos conhecer porque só podemos
conhecer o que possuímos e não possuímos nada, não é um
torrão de terra a cantar hinos e a estender muralhas entre
os versos e o mundo, o poema não é a palavra poema
porque a palavra poema é um palavra, o poema é a
carne salgada por dentro, é um olhar perdido na noite sobre
os telhados na hora em que todos dormem, é a última
lembrança de um afogado, é um pesadelo, uma angústia, esperança.
o poema não tem estrofes, tem corpo, o poema não tem versos,
tem sangue, o poema não se escreve com letras, escreve-se
com grãos de areia e beijos, pétalas e momentos, gritos e
incertezas, a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
a palavra poema existe para não ser escrita como eu existo
para não ser escrito, para não ser entendido, nem sequer por
mim próprio, ainda que o meu sentido esteja em todos os lugares
onde sou, o poema sou eu, as minhas mãos nos teus cabelos,
o poema é o meu rosto, que não vejo, e que existe porque me
olhas, o poema é o teu rosto, eu, eu não sei escrever a
palavra poema, eu, eu só sei escrever o seu sentido.

Ian Hamilton – Poema de Aniversário

Firme em suas mãos
Sua caneca de barbear com a Exposição do Império.
Você a conserva agora
Como escarradeira, as pombas presunçosas,
O 1938 dela
Manchados por gotas de seu sangue.
Esta noite,
Meio sufocado, canceroso,
Desiludido,
Você bate os dentes contra sua boca dourada de porcelana
E espera por um ataque.

Trad.: Nelson Santander

Ian Hamilton – Birthday Poem

Tight in your hands,
Your Empire Exhibition shaving mug.
You keep it now
As a spittoon, its bloated doves,
Its 1938
Stained by the droppings of your blood.
Tonight,
Half-suffocated, cancerous,
Deceived,
You bite against its gilded china mouth
And wait for an attack.

Ivan Junqueira – A tua data

Alguém só morre em sua data,
que é única, ôntica, enfática.
Nunca depende de quem vai
nem de quem fica ao pé da lápide.

É quando o corpo, enfim, se acaba,
e, se dele a alma se aparta,
não cabe a ninguém afirmá-lo,
nem se a tinha, em vida, o finado.

É quando as lâmpadas se apagam
e trocam-se então os cenários,
as máscaras, as personagens
e tudo o que havia no palco.

Não mais as luzes da ribalta,
nem da plateia o eco das palmas
ou, no teu caso, as duras vaias
pois que pífio foi o espetáculo.

É quando, tudo terminado,
já não te servem as palavras,
e muito menos as metáforas,
algo impróprias aos epitáfios

ou aos prosaicos obituários
em que tua vida é louvada,
não toda, é claro, pois de lado
ficam os crimes e as trapaças.

Até que vem teu centenário.
Frases, fotos, toda uma farta
recordação do que deixaste:
poemas, ensaios, prefácios,

talvez uma obra laureada,
mas de que hoje ninguém mais fala.
Há quem se lembre de um parágrafo,
de um pobre verso desgarrado.

E o resto – teus feitos, as pálidas
mulheres que amaste, as medalhas,
os troféus – se esvai rumo ao nada
ao som das fanfarras da praça.

Paulo Henriques Britto – Nenhum Mistério

I

Não chega a ser desespero,
mas não por haver esperança.
Falta a ênfase, o tempero,
o sal da intemperança,

sem o qual não é iguaria
à altura de grandes gestos.
É mais da categoria
das migalhas, dos restos.

Pois dessa matéria escassa
há que se tirar sustância.
(Até mesmo na desgraça
é pra poucos a abundância.)

II

Não há nenhum mistério nesta história
em que o culpado se anuncia
ainda na primeira hora,

e são tão copiosas as pistas
quanto inúteis, e o final
– que, é claro, já se sabia

desde o início – é banal,
melancólico, besta
e isento de moral.

Mesmo assim, esta
é a história lida
até por quem detesta

toda a inútil narrativa,
até por não haver alternativa.

III

Seria igual se fosse diferente,
seria – sendo outro – mais do mesmo.
Tome-se alguma alternativa, a esmo,
e a leva adiante: tente o que se tente,

acaba-se chegando sempre ao ponto
exato de onde se partiu (o nada).
E o mais é igual, qualquer que seja a estrada,
não por ser o planeta tão redondo,

e sim por ser estreito o repertório
de mundos disponíveis, porque a margem
é tão parca nas bordas do papel.

Assim, qualquer desvio aleatório
por fim se reduz a mera miragem,
um nada – nada novo – sob o céu.

IV

A posição de tudo ao seu redor
(a pele de uma bolha):
resultado final (desolador)
de mil acasos, mil escolhas,

todas suas. Aranha em sua teia,
olho de furacão
que tudo vê e de tudo se alheia:
só consciência e solidão.

V

É, sem tirar nem pôr, exatamente
como no pesadelo. É o lugar
onde se está agora. O presente.

Impossível fugir desta presença,
e impensável. Estar aqui é pensar,
e pensar é sempre ser o que pensa,

e o que pensa dispensa o sonho, certo
de que só o estar onde se está importa.
E no entanto este teto tão perto

da cabeça, este chão frio demais,
estas paredes pensas, esta porta
que fecha como quem não se abre mais –

como não reconhecer isso, ao vê-lo?
É tudo tal como no pesadelo.

VI

Permanecer aqui,
apesar e além.
Estar, mesmo assim,
mesmo sem.

Efeito talvez
da inércia de ser:
mesmo não querendo,
não poder.

Ou então um símile
cru e exato:
como comer após cuspir
no prato.

VII

Chega um momento em que as mãos
já não querem cumprir ordens.
Não pegam mais, não apertam,
e sim mordem.

Os olhos se cansam da luz,
os pés desprezam os pisos,
a mente rejeita todo e
qualquer juízo.

E o rosto – este velho disfarce
velhaco, por trás do qual
não há outra coisa senão
uma máscara igual,

o rosto nem mesmo se esforça
pra parecer que não é outro.
(Já, já não será mais preciso
fingir-se de morto.)

VIII

Zelosamente se procura
o mal preciso tão sonhado
de que o remédio já encontrado
seria a cura.

Pois é mister que se aproveite
o que se tem, por mais daninho,
que da pedra que há no caminho
se extraia o leite.

Caso contrário, há que abrir mão
do pouco que ao menos parece
real e sólido,

o que seria catastrófico
(mas também seria uma espécie
de solução).

IX

Cada objeto está em seu lugar,
menos um.
Cada ser tem razão de ser ou estar,
menos um.
Todos têm uma causa e uma razão,
menos um.
Nenhum deles requer explicação,
menos um.
E saberão o quanto são pequenos?
(Mais é menos.)

X

Dentro da noite por fim construída
há tempo para tudo, e muito espaço.
Longas janelas. Cortinas corridas.
Nos armários vazios, grandes chumaços

de algodão a preencher cada centímetro
cúbico de cada compartimento
e gaveta. Na parede, um termômetro
no qual ninguém dá corda há muito tempo.

Nas prateleiras, livros entulhados
de palavras que escorrem devagar,
formando umas poças ralas no chão.

É uma espécie de véspera. Calados,
os cômodos esperam o raiar
de alguma coisa como um dia. Ou não.