Derek Walcott – O Amor Depois do Amor

Um dia virá
em que, eufórico,
você cumprimentará a si próprio chegando
à sua porta, em seu espelho
e cada um dará ao outro um sorriso de boas-vindas,

e você dirá, sente-se aqui. Coma.
Você amará outra vez o estranho que foi.
Sirva vinho. Reparta o pão. Restitua
o seu coração
para ele mesmo, para o estranho que um dia você amou

por toda sua vida, a quem você ignorou
por outro, que o conhece de cor.
Derrube da estante as cartas de amor,

as fotografias, os bilhetes desesperados,
arranque sua imagem do espelho.
Sente-se. Saboreie a sua vida.

Trad.: Nelson Santander

 

Derek Walcott – Love After Love

The time will come
when, with elation
you will greet yourself arriving
at your own door, in your own mirror
and each will smile at the other’s welcome,

and say, sit here. Eat.
You will love again the stranger who was your self.
Give wine. Give bread. Give back your heart
to itself, to the stranger who has loved you

all your life, whom you ignored
for another, who knows you by heart.
Take down the love letters from the bookshelf,

the photographs, the desperate notes,
peel your own image from the mirror.
Sit. Feast on your life.

W. H. Auden – Aquele que Ama Mais

Contemplando as estrelas, logo eu discirno
Que, por elas, eu posso ir para o inferno,
Porém, na terra, a indiferença é o que menos
Temos a temer, de animais e humanos

Como seria se os astros de paixão
Por nós ardessem e disséssemos não?
Se os afetos nunca podem ser iguais
Pois que seja eu aquele que ama mais.

Por mais admirador que eu julgue ser
De estrelas que de mim não querem saber
Não posso dizer, agora que as contemplo,
Que lhes tive saudade em algum momento.

Se sumissem ou morressem todas elas
Me habituaria a um céu sem estrelas
E a sentir como sublime a treva total
Embora isso levasse um tempo, afinal.

Trad.: Nelson Santander

The More Loving One

Looking up at the stars, I know quite well
That, for all they care, I can go to hell,
But on earth indifference is the least
We have to dread from man or beast.

How should we like it were stars to burn
With a passion for us we could not return?
If equal affection cannot be,
Let the more loving one be me.

Admirer as I think I am
Of stars that do not give a damn,
I cannot, now I see them, say
I missed one terribly all day.

Were all stars to disappear or die,
I should learn to look at an empty sky
And feel its total dark sublime,
Though this might take me a little time.

Jaime Sabines – Te Amo às Dez da Manhã

Te amo às dez da manhã, e às onze, e ao meio-dia. Te amo com toda a minha alma e com todo o meu corpo, às vezes, em tardes chuvosas. Mas às duas da tarde, ou às três, quando eu me perco em pensar em nós dois, e tu pensas em comida ou nas tarefas cotidianas que tens, ou nas diversões que não tens, eu me ponho a te odiar em silêncio, com a metade do ódio que guardo para mim mesmo.

Logo volto a te amar, quando nos deitamos e sinto que foste feita para mim – como me dizem, de alguma maneira, teu joelho e teu ventre; que minhas mãos me convencem disso, e que não há nenhum outro lugar, de onde eu venho ou para onde eu vou, melhor do que o teu corpo. Tu vens toda inteira ao meu encontro, e ambos desaparecemos por um instante nos lábios de Deus, até que eu dizer que estou faminto ou com sono.

Todos os dias eu te amo e te odeio irremediavelmente. E há dias também, há horas em que eu te desconheço, em que és tão estranha para mim como a mulher de outro. Preocupam-me os homens, eu me preocupo comigo mesmo, minhas dores me distraem. É provável que eu não pense em ti por muito tempo. Vês? Quem poderia te amar menos do que eu, meu amor?

Trad.: Nelson Santander

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Te quiero a las diez de la mañana

Te quiero a las diez de la mañana, y a las once, y a las doce del día. Te quiero con toda mi alma y con todo mi cuerpo, a veces, en las tardes de lluvia. Pero a las dos de la tarde, o a las tres, cuando me pongo a pensar en nosotros dos, y tú piensas en la comida o en el trabajo diario, o en las diversiones que no tienes, me pongo a odiarte sordamente, con la mitad del odio que guardo para mí.

Luego vuelvo a quererte, cuando nos acostamos y siento que estás hecha para mí, que de algún modo me lo dicen tu rodilla y tu vientre, que mis manos me convencen de ello, y que no hay otro lugar en donde yo me venga, a donde yo vaya, mejor que tu cuerpo. Tú vienes toda entera a mi encuentro, y los dos desaparecemos un instante, nos metemos en la boca de Dios, hasta que yo te digo que tengo hambre o sueño.

Todos los días te quiero y te odio irremediablemente. Y hay días también, hay horas, en que no te conozco, en que me eres ajena como la mujer de otro. Me preocupan los hombres, me preocupo yo, me distraen mis penas. Es probable que no piense en ti durante mucho tiempo. Ya ves. ¿Quién podría quererte menos que yo, amor mío?

José Ángel Buesa – Ela Amará a Outro Homem

Ela amará a outro homem.
Eu estarei longe, caminhando para o olvido.
E pode ocorrer que alguém lembre meu nome,
mas ela fingirá não tê-lo ouvido.

Ela amará a outro homem:
o tempo passa e o amor se finda,
e é natural que o que foi lume
acabe se transformando em cinzas.

Embora ninguém o queira,
envelhecem as vidas e as coisas,
e é natural também que na primavera
as roseiras deem rosas.

É natural. Assim,
ela amará a outro homem, e tudo bem.
Não sei se ela se esqueceu de mim,
nem me importa com quem.

Mas, quiçá, um dia,
ouvindo uma canção,
ela sinta que esta velha melodia
mudou o ritmo do seu coração.

Ou será algum vestido
que usou quando a conheci,
ou o cheiro do jardim úmido,
mas um dia ela há de pensar em mim.

Ou pode ser um sinal,
um jeito de olhar,
ou certas vielas, um mal cerzido botão,
ou uma folha seca ao acaso a voar.

E de alguma maneira
ela lembrará de mim, sem querer,
ao ouvir passos na ladeira
como os meus, ao entardecer.

Será em algum momento,
não importa quando nem onde, lá ou cá,
porque o amor, por assemelhar-se ao vento,
parece que se foi mas aqui está.

E se, nesse momento, ela suspira
e ele pergunta o que há,
ela terá que inventar uma mentira
para dele a verdade ocultar.

E ele não verá que eu o causei,
isso que era tão meu e do que se me privou;
e, embora ele possa amá-la mais do que eu a amei,
ela não poderá amá-lo mais do que me amou…!

Trad.: Nelson Santander

Ella Amará a Otro Hombre

Ella amará a otro hombre.
Yo voy lejos, andando hacia el olvido.
Y puede suceder que alguien me nombre,
pero ella fingirá no haber oído.

Ella amará a otro hombre:
el tiempo pasa y el amor finaliza,
y es natural que lo que fue una brasa
acabe convirtiéndose en ceniza.

Aunque nadie lo quiera,
envejecen las vidas y las cosas,
y es natural también que en primavera
los rosales den rosas.

Es natural. Por eso,
ella amará a otro hombre, y está bien.
No sé si ya olvidó mi último beso,
ni me importa con quién.

Pero quizás, un día,
oyendo una canción,
sentirá que esa vieja melodía
le cambia el ritmo de su corazón.

O será algún vestido
que yo le conocí,
o el olor del jardín cuando ha llovido,
pero algún día ha de pensar en mí.

O puede ser un gesto,
un modo de mirar,
o ciertas calles, o un botón mal puesto,
o una hoja seca que voló al azar.

Y de alguna manera
tendrá que recordarme, sin querer,
escuchando unos pasos en la acera
como los míos al atardecer.

Será en algún momento,
no importa cuándo o dónde, aquí o allá,
porque el amor, por parecerse al viento,
parece que se ha ido y no se va.

Y si en ese momento ella suspira
y él pregunta por qué,
le tendrá que inventar una mentira
para que nunca sepa por qué fue.

Y él no verá esa huella,
eso tan mío en lo que ya perdí;
y, aunque la pueda amar más que yo a ella,
ella no podrá amarlo más que a mí..!

Walter de la Mare – Os que Ouviam

‘Tem alguém em casa?’ indagou o Viajante
Defronte à porta enluarada;
Seu cavalo no silêncio ruminava o capim
Da forragem fértil e enfolhada:
E uma ave voou para muito além da torre,
Acima de sua cabeça:
E de novo a porta ele outra vez castigou;
‘Tem alguém em casa?’ ele disse.
Mas ninguém desceu para atender o Viajante;
Do peitoril ninguém nem nada
Inclinou-se para olha-lo nos olhos cinzentos,
Onde ele estava, pasmo e mudo.
Somente uma horda vigilante de fantasmas
Que habitava tal casa então
Ficou ouvindo em silêncio, à luz da lua,
A voz vinda do humano chão:
Imóveis à luz do luar sobre a escada escura
Que dava num salão sem nada,
Ouvindo, atentos, num ar revolto e agitado
O apelo que dele emanava.
E sentiu em seu peito como eram diferentes,
Eles quietos, ele exaltado,
Seu cavalo inquieto a pastar na relva escura,
Sob o denso céu estrelado;
De repente então ele bateu na porta, ainda
Mais alto, e a cabeça ergueu: -
‘Diga-lhes que eu vim, e que ninguém me respondeu,
Que fui correto’, esclareceu.
Nem o menor meneio fizeram os que ouviam,
Conquanto as palavras cortantes
Ditas rompessem as sombras da casa silente
Para longe do Viajante:
Sim, eles ouviram seus pés por sobre os estribos,
Sons de ferraduras no chão,
E o sutil silêncio que suavemente ascendeu,
Enquanto os cascos se afastavam.

Trad.: Nelson Santander

Walter de la Mare – The Listeners

‘Is there anybody there?’ said the Traveller,
Knocking on the moonlit door;
And his horse in the silence champed the grasses
Of the forest’s ferny floor:
And a bird flew up out of the turret,
Above the Traveller’s head:
And he smote upon the door again a second time;
‘Is there anybody there?’ he said.
But no one descended to the Traveller;
No head from the leaf-fringed sill
Leaned over and looked into his grey eyes,
Where he stood perplexed and still.
But only a host of phantom listeners
That dwelt in the lone house then
Stood listening in the quiet of the moonlight
To that voice from the world of men:
Stood thronging the faint moonbeams on the dark stair,
That goes down to the empty hall,
Hearkening in an air stirred and shaken
By the lonely Traveller’s call.
And he felt in his heart their strangeness,
Their stillness answering his cry,
While his horse moved, cropping the dark turf,
’Neath the starred and leafy sky;
For he suddenly smote on the door, even
Louder, and lifted his head:—
‘Tell them I came, and no one answered,
That I kept my word,’ he said.
Never the least stir made the listeners,
Though every word he spake
Fell echoing through the shadowiness of the still house
From the one man left awake:
Ay, they heard his foot upon the stirrup,
And the sound of iron on stone,
And how the silence surged softly backward,
When the plunging hoofs were gone.

Source: The Collected Poems of Walter de la Mare (1979)

Sobre o poeta, o poema e a tradução

Walter de la Mare nasceu em 25 de abril de 1873, em Charlton, Kent, Inglaterra, e morreu em 22 de junho de 1956, em Twickenham, Middlesex, Inglaterra. Começou a escrever por volta de 1890 e nunca mais parou. Sua produção foi enorme, incluindo romances, novelas, contos, poemas, antologias, ensaios, críticas e comentários. Pouco conhecido no Brasil, ele é lembrado, principalmente nos países de língua inglesa, como um poeta das primeiras letras e um contador de histórias de fantasmas, o que, segundo seus críticos, desviaria a atenção da busca espiritual, que é o ponto central da escrita.
O poema acima, com cuja tradução eu contribuí, é o seu trabalho mais conhecido. “The Listeners”, com efeito, figura em inúmeras antologias de poemas e foi, durante décadas, o poema preferido dos professores ingleses para ensinar recitação a seus alunos.
No poema, que foi publicado pela primeira vez em “The Listeners, and Others Poems” (1912), um incógnito viajante chega com seu cavalo a uma casa (castelo? Château?) que parece deserta. Ele bate à porta, mas ninguém responde. Ele insiste, mas os fantasmas que aparentemente ocupam a casa escutam mas nunca respondem aos apelos do Viajante. O viajante insiste, mas ninguém responde. Perplexo, ele volta a bater na porta, com mais força ainda, e, levantando a cabeça grita: “Diga-lhes que eu vim, e que ninguém me respondeu, que fui correto”. Ainda sem respostas, o Viajante vai embora. Os fantasmas ouvem o viajante indo embora e o silêncio que retorna quando os cascos do cavalo se afastam.
Ao final da leitura do poema, inúmeras questões surgem, como bem resumiu Braulio Tavares:
“Que lugar é este? Que mansão é esta? Não sabemos. Vemos o desfecho de uma história que não nos foi contada, mas que ressoa dentro de nós como as batidas do cavaleiro noturno ressoam à porta da casa deserta. Por que esse homem voltou? Por que os fantasmas lá dentro se escondem, silenciam, fazem de conta que não o ouvem chamar? Quem é esse Viajante que vem de tão longe, a essa hora, somente para cumprir uma palavra dada?”
A internet está repleta de interpretações acerca do poema. Há de tudo: o visitante queria dizer aos seus fantasmas – pessoas que ele amava, hoje já mortas – que quitou alguma dívida que tinha para com eles em vida. Que, ao contrário, o viajante é quem seria o fantasma que bate insistentemente à porta da casa sem se fazer ouvir pelos habitantes, pessoas vivas como nós (à semelhança do que ocorre no filme “Os Outros”, de Alejandro Amenábar). Em uma viagem psicanalítica, o viajante seria a voz interior de alguém, tentando nos alertar acerca de algum perigo. Há os que digam também que o poema seria uma metáfora para os mistérios com os quais nos defrontamos na vida, seja como “visitantes”, seja como ouvintes. Nós passaríamos nossas vidas fazendo perguntas, sem nem sempre conseguir obter as respostas.
Não importa a mensagem em si – ou importa, mas apenas para quem lê. O que realmente importa é que, do ponto de vista do fazer poético, o poema é extremamente bem construído. Seu mérito está em conseguir evocar com eficiência uma atmosfera fantasmagórica que permanece no espírito do leitor mesmo depois de horas após a leitura do poema. Para tanto, o autor se vale de todos os recursos poéticos disponíveis – aliterações, anáforas, metáforas, metonímias, paradoxos – que emprestam ao poema uma força insuspeita.
Ao decidir traduzi-lo, procurei na internet em busca de alguma tradução, para fins de comparação. Nada encontrei. Pode até ser que exista, mas não logrei êxito em localizar. Talvez pelo fato do nome do autor não estar no panteon dos grandes poetas, ou pela fama que o poema granjeou como literatura escolar (mal comparando, seria o equivalente, no Brasil, a um poema de J G de Araújo Jorge), o fato é que, aparentemente, ninguém se aventurou a traduzi-lo (se alguém conhecer uma tradução, por favor me mande).
Ao fazê-lo, procurei manter o esquema das rimas (ABCB, DEFE, e assim por diante). Na métrica, enquanto o original segue um esquema não muito rígido e alternado que vai de seis a quatorze sílabas, predominando, quanto ao ritmo, os pés anapestos e jambos, optei por manter um esquema rígido na metrificação (para facilitar para mim, é claro), alternando versos bárbaros de treze sílabas com octassilábicos. Quanto ao ritmo, tentei manter, tanto quanto pude, a opção original pelos anapestos e jambos.

Nelson Santander, 02/02/2017

Gale, Cengage Learning – A Study Guide for Walter de la Mare’s “The Listeners”; https://books.google.com.br/books?id=_7Y3DQAAQBAJ&pg=PT13&dq=the+listeners+la+mare+meter&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwjWlLzv_PHRAhUCgZAKHZ2QCPMQ6AEIGjAA#v=onepage&q=the%20listeners%20la%20mare%20meter&f=false (consultado em 02/02/2017)

Tavares, Braulio. Os que Escutavam. Texto publicado no blog Mundo Fantasmo, do escritor Braulio Tavares. Em http://mundofantasmo.blogspot.com.br/search/label/Walter%20de%20la%20Mare (consultado em 02/02/2017)

Samuraitiger19 – Nos minutos finais de sua vida, Calvin teve uma última conversa com Haroldo…

“Calvin? Calvin, querido?”

No escuro, Calvin ouviu a voz de Susie, sua esposa de 53 anos. Calvin se esforçou para abrir os olhos. Deus, ele se sentia tão cansado e foi preciso muita força para conseguir. Lentamente a luz espantou as trevas, e ele enxergou novamente. Aos pés de sua cama estava sua esposa. Calvin molhou os lábios ressequidos e falou com voz rouca: “Você… o… encontrou?”

“Sim, querido”, disse Susie, com tristeza na voz. “Ele estava no sótão.”

Susie enfiou a mão dentro de sua grande bolsa e tirou para fora um velho e macio tigre cor de laranja. Calvin não pôde deixar de rir. Havia sido assim por muito tempo. Muito tempo.

“Eu o lavei para você”, disse Susie, sua voz falhando um pouco enquanto ela colocava o tigre de pelúcia ao lado de seu marido.

“Obrigado, Susie”, disse Calvin.

Por algum tempo, Calvin apenas permaneceu deitado em sua cama de hospital, a cabeça virada para o lado, olhando o velho brinquedo com nostalgia.

“Querida”, Calvin disse finalmente, “Você se importaria em me deixar sozinho com o Haroldo por um tempo? Eu gostaria de conversar com ele.”

“Tudo bem”, disse Susie. “Vou pegar algo para comer no restaurante. Volto daqui a pouco.”

Susie beijou seu marido na testa e virou-se para sair. Com força repentina, mas suavemente, Calvin a deteve. Carinhosamente, ele puxou sua esposa e lhe deu um beijo apaixonado nos lábios. “Eu te amo”, disse Susie.

Susie se virou e saiu. Calvin viu as lágrimas que escorriam em seu rosto enquanto ela passava pela porta.

Calvin então se virou para encarar seu mais antigo e querido amigo. “Oi, Haroldo. Já faz muito tempo, não é, velho amigo?”

Haroldo não era mais um boneco de pelúcia, mas o grande e velho tigre peludo de quem Calvin sempre se lembrava. “Muito tempo, Calvin”, disse Haroldo.

“Você… não mudou nem um pouco.” Calvin sorriu.

“Você mudou bastante”, disse Haroldo com tristeza.

Calvin sorriu. “Mesmo? Eu nem percebi.”

Houve uma longa pausa. O som de um relógio tiquetaqueando os segundos ecoou no estéril quarto de hospital.

“Então… Você se casou com a Susie Derkins”, disse Haroldo, finalmente sorrindo. “Eu sempre soube que você gostava dela.”

“Cale a boca!”, Calvin falou, com um imenso sorriso no rosto.

“Conte tudo o que eu perdi. Eu adoraria saber o que você tem feito!”, Haroldo falou, entusiasmado.

E assim Calvin disse-lhe tudo. Contou como ele e Susie se apaixonaram quando ainda estavam na escola e como haviam se casado logo depois de se formar; sobre seus três filhos e quatro netos; sobre como ele transformou o Astronauta Spiff em um dos mais populares romances de ficção científica da década, e assim por diante. Depois de contar tudo para Haroldo houve novamente uma longa pausa.

“Você sabe… Eu visitei você no sótão um monte de vezes.” Calvin disse.

“Eu sei.”

“Mas eu não conseguia vê-lo. Tudo o que eu enxergava era um bicho de pelúcia”. Sua voz estava embargada e lágrimas de arrependimento começaram a jorrar de seus olhos.

“Você cresceu, velho amigo”, disse Haroldo.

Calvin não resistiu mais e soluçou, abraçando seu melhor amigo. “Eu sinto muito! Eu sinto muito! Eu quebrei minha promessa! Eu havia prometido que não iria crescer e que nós ficaríamos juntos para sempre!”

Haroldo acariciou os cabelos de Calvin, ou o pouco que restava deles. “Mas você não a quebrou.”

“Como assim?”

“Estávamos sempre juntos… em nossos sonhos.”

“Estávamos?”

“Sim.”

“Haroldo?”

“Sim, velho amigo?”

“Estou tão feliz por ter visto você assim… uma última vez…”

“Eu também, Calvin. Eu também.”

“Querido?”, a voz de Susie soou atrás da porta.

“Sim, querida?”, respondeu Calvin.

“Posso entrar?”, Susie perguntou.

“Só um minuto.”

Calvin voltou-se para Haroldo pela última vez. “Adeus, Haroldo. Obrigado… por tudo…”

“Não. Eu que agradeço, Calvin”, Haroldo disse.

Calvin voltou-se para a porta e disse: “Pode entrar agora.”

Susie entrou e disse: “Olha quem veio visitá-lo.”

Os filhos e netos de Calvin seguiram Susie quarto adentro. O neto mais novo ultrapassou correndo todos os outros e deu um forte e entusiasmado abraço em Calvin. “Vovô!!”, gritou a criança, visivelmente feliz.

“Francis!”, ralhou a filha de Calvin, “Seja gentil com seu avô.”

A filha de Calvin voltou-se para ele. “Sinto muito, papai. Francis não tem se comportado muito bem nos últimos tempos. Ele só corre e faz bagunça e agora deu pra vir com umas histórias estranhas.”

Calvin sorriu e disse: “Olha só! O mesmo que diziam de mim quando eu tinha a idade dele.”

Calvin e sua família conversaram um pouco mais, até que uma enfermeira disse: “Desculpem, o horário de visitas está quase terminando.”

Os entes queridos de Calvin se despediram, prometendo voltar no dia seguinte. Enquanto eles se preparavam para sair, Calvin disse: “Francis. Venha aqui um pouco.”

Francis chegou perto do avô, “O que é isso, vovô?”

Calvin pegou o tigre de pelúcia que estava em sua cabeceira e, com as mãos trêmulas, o estendeu para seu neto, que olhou para o tigre exatamente como ele fizera muitos anos atrás. “Este é o Haroldo. Ele era o meu melhor amigo quando eu tinha a sua idade. Eu quero que ele seja seu agora.”

“É apenas um tigre de pelúcia”, Francis disse, com as sobrancelhas levantadas.

Calvin sorriu: “Bem, deixe-me contar-lhe um segredo.”

Francis inclinou-se para Calvin. Calvin sussurrou: “Se você capturá-lo com uma armadilha para tigres usando um sanduíche de atum como isca ele se transformará em um tigre de verdade”.

Francis suspirou, com reverente admiração. Calvin continuou: “E não é só isso, ele será seu melhor amigo para sempre.”

“Uau! Obrigado, vovô!” Francis disse, abraçando seu avô com força novamente.

“Francis, precisamos ir agora.”, chamou a filha de Calvin.

“Ok!”, gritou Francis de volta.

“Cuide bem dele”, Calvin disse.

“Sim”, Francis disse, antes de sair correndo atrás dos outros membros da família.

Calvin se deitou de costas e olhou para o teto. A hora de partir estava chegando. Ele podia senti-lo na alma. Calvin tentou se lembrar de uma frase que ele leu em um livro uma vez. Ela dizia algo sobre a morte ser a próxima grande aventura ou algo parecido. Suas pálpebras ficaram pesadas e sua respiração tornou-se mais lenta. Enquanto mergulhava em seu sono final, ele ouviu a voz de Haroldo, como se o tigre estivesse ao seu lado. “Eu vou cuidar dele, Calvin…”

Calvin deu seu primeiro passo em direção a mais uma aventura e seu último suspiro com um sorriso no rosto.

NOTA: Conto publicado no Reddit, escrito por samuraitiger19, e livremente traduzido por mim. Embora se trate de uma história relativamente simples, escrita sem grande apuro literário, seu autor conseguiu – a se crer nos comentários dos leitores – a façanha de fazer chorar um número enorme de visitantes que leram a historieta. Por que será? Eu tenho um palpite. Quem teve a sorte de ter em mãos e ler as tirinhas com as histórias de Calvin e Haroldo, magistralmente escritas e desenhadas por Bill Watterson, ingressou em um universo que remete diretamente à infância que não é apenas a do personagem, mas também a do leitor. Esse talvez seja o segredo do sucesso das tirinhas que, embora tenham sido descontinuadas desde 1995, continuam ganhando fãs até hoje mundo afora: a capacidade de reviver em nós, leitores, nossa infância perdida. Então chega um aspirante a escritor e conta uma história em que são narrados os últimos minutos de vida do adorado personagem, valendo-se de alguns dos inúmeros elementos das tirinhas (o tigre que “ganha vida” aos olhos do personagem principal; a “armadilha para tigres”; a valorização de alguns aspectos da infância, como a imaginação e a amizade; Susie Derkins; o Astronauta Spiff), o que causa uma imediata sensação de identificação, como se o conto fosse mesmo a última história sobre Calvin. E pensamos: “Sim, esses poderiam ser realmente os últimos momentos do Calvin”. E no final, como era de se esperar, Calvin morre. Assim como morreu já há muito tempo nossa infância. E aqui está aquilo que julgo ser o maior mérito do conto: o de nos lembrar que tudo tem um fim e que nem mil tigres de pelúcia conseguiriam impedir a passagem do tempo e toda a transformação que ela provoca.

Tá bom, eu confesso: também chorei quando li a historinha…

Link para a o original:

https://amp.reddit.com/r/WritingPrompts/comments/25gtsw/eu_in_the_final_minutes_of_his_life_calvin_has/

Algernon Charles Swinburne – Um Amigo Morto

I.
Não mais, ó puro e meigo coração,
Amigo de esperas fatais,
Aqueles dias prósperos, irmão,
Não mais?Dias brilhantes de cristais
Viram mais, além desse desvão,
O que ninguém verá jamais.
 
Alma’lva como a clara cerração,
Por que, então, cedo demais
Se foi para além de nós, para não,
Não mais?

II.
Irmão de longas horas fugidias,
Que dilacerante emoção
Emanará da boca que dizia
‘Irmão’?
 
Suspiro e canção que mesclam
Louvor com desolada agonia,
Embora ascenda a louvação?

Nada oculta o que de ti irradia:
Por que encerra a escuridão –
Ó dileto e morto – tão cedo o dia,
Irmão?

III.
Caro finado, cumpriste o dever
Ainda em vida, dando amparo
Aos corações que pudeste deter,
Caro

Tempo e acaso podem, claro,
Crestar a fé com dor, e o morrer,
Cindir mãos com seu dom avaro:

A memória, ora cega a planger
A dor, vê, com seu faro raro
Tudo o que de ti se fez para ser
Caro

IV.
Fiel e afável de alma invulgar,
Que deve a memória cruel
Fazer além de ver a fé chorar,
Fiel?

Poucos viram além do véu
Do teu ser, mas quem foi ao teu lar
Dedicou-te amor a granel!

Janus, que faz o novo definhar,
Transforme algo velho em novel;
Um amor honesto a se declarar
Fiel.

V.
Puro tal qual o céu, enquanto ao chão
Tu te mantiveste seguro,
Para os homens deste o teu coração
Puro

Já não te cega mais o escuro
Agora: as horas em mutação
Afagam teu sono futuro

O amor, sentindo ainda a morte tão
Perto, pode, com seu apuro,
Evocar teu doce ser, meu irmão
Puro

VI.
Como, ó amigo, deve ser a vida?
Esquecer o perpétuo sono?
A fé concede à dor do amor guarida,
Como?

É certo, tristes seres somos.
No entanto, mesmo que certa a lida,
Brilha tua testa tal um pomo.

Sim, embora tu estejas de partida,
O amor te encontrará de assomo,
Apesar de não sabermos ainda
Como.

VII.
Passou, como canção que desvanece,
E enquanto era vivo, brilhou;
Como o pio da ave de que se esquece
Passou!

O vento da morte soprou,
O senhor da canção o fornece,
Mas teu amor firme ficou.

O trono vazio de um rei que fenece:
Mas, para a dor que perdurou,
O amor fez canção do que não se esquece.
Passou.

Trad.: Nelson Santander

 

A Dead Friend

I.
Gone, O gentle heart and true,
Friend of hopes foregone,
Hopes and hopeful days with you
Gone?
 
Days of old that shone
Saw what none shall see anew,
When we gazed thereon.
 
Soul as clear as sunlit dew,
Why so soon pass on,
Forth from all we loved and knew
Gone?
 
II.
Friend of many a season fled,
What may sorrow send
Toward thee now from lips that said
‘Friend’?
 
Sighs and songs to blend
Praise with pain uncomforted
Though the praise ascend?
 
Darkness hides no dearer head;
Why should darkness end
Day so soon, O dear and dead
Friend?

III.
Dear in death, thou hast thy part
Yet in life, to cheer
Hearts that held thy gentle heart
Dear.

Time and chance may sear
Hope with grief, and death may part
Hand from hand’s clasp here:

Memory, blind with tears that start,
Sees through every tear
All that made thee, as thou art,
Dear.

IV.
True and tender, single-souled,
What should memory do
Weeping o’er the trust we hold
True?

Known and loved of few,
But of these, though small their fold,
Loved how well were you!

Change, that makes of new things old,
Leaves one old thing new;
Love which promised truth, and told
True.

V.
Kind as heaven, while earth’s control
Still had leave to bind
Thee, thy heart was toward man’s whole
Kind.

Thee no shadows blind
Now: the change of hours that roll
Leaves thy sleep behind.

Love, that hears thy death-bell toll
Yet, may call to mind
Scarce a soul as thy sweet soul
Kind.

VI.
How should life, O friend, forget
Death, whose guest art thou?
Faith responds to love’s regret,
How?

Still, for us that bow
Sorrowing, still, though life be set,
Shines thy bright mild brow.

Yea, though death and thou be met,
Love may find thee now
Still, albeit we know not yet
How.

VII.
Past as music fades, that shone
While its life might last;
As a song-bird’s shadow flown
Past!

Death’s reverberate blast
Now for music’s lord has blown
Whom thy love held fast.

Dead thy king, and void his throne:
Yet for grief at last
Love makes music of his own
Past.

Algernon Charles Swinburne – O Jardim de Proserpina

Cá, em que a terra é calma;
Cá, em que o drama é como
Ar morto e exaustas almas,
Dúbios sonhos assomo;
Eu vejo o campo a medrar
Para a ceifa e o plantar,
A colheita e o roçar,
Mundo fluido de sono.

Farto de dor e riso,
E de quem chora e ri;
Do que vem sem aviso
Aos que colhem aqui:
Dos dias e das horas,
Secos brotos da flora,
Gana, sonhos, pletora,
Tudo, menos dormir.

Aqui, mortes espreitam,
E onde não há olhares
Brisas tênues escoltam
Débeis almas e naves;
São párias à deriva,
Nus de expectativa;
Mas aqui não há brisa,
Nem voejam tais aves.

Nada cresce no charco,
Nada de vinha ou flora,
Só um florescer parco,
Verdes uvas de Cora,
Camas de juncos móveis
Prenhes de folhas débeis
Que ela esmaga e fere.
Homens em sua hora.

Gris, e sem marca ou nome,
Em tal terra de sal,
Eles deitam e dormem,
Da noite ao arrebol;
E como alma tardia
Cindida na porfia,
Bruma por companhia,
Da treva irrompe o sol.

Até mesmo o mais forte
É da morte um amigo,
No céu, não rir da sorte,
Nem, no chão, do castigo;
Mesmo o que há de belo
Tem seu fim, seu flagelo;
Mesmo a paz e o desvelo
São, no fim, desabrigo.

Gris, além dos portais,
Com folhas coroada,
Une coisas mortais,
Mãos eternas, geladas;
Seus lábios são macios
Assombram os gentios
Que a buscam, erradios,
Pelas eras e plagas.

Por eles ela vela,
Por todos ela espera;
Esquece a terra bela,
A vida pura e vera;
Primavera, grãos, ave,
Vá, em seu vôo suave,
Aonde o som soa grave,
E calcada é a hera.

Lá vão amores murchos,
De asas gastas, cansados;
Anos tais ramos mochos,
E entes consternados;
Sonhos mortos e breves,
Grãos cobertos por neve,
Folhas (que o vento as leve):
Abris despedaçados.

Não sei se sofreremos,
E o gozo é incerto;
Amanhã morreremos;
O tempo é sem dileto.
O amor é fraco, aflito,
Tem lábios, mas contrito,
Ais, e olhos de olvido,
Choro que afasta o afeto.

Por muito amor à vida,
Do medo e fé libertos,
Damos graças devidas
A uns deuses incertos:
Que as vidas se extingam,
Que os mortos não se ergam;
Que os rios que serpenteiam,
Ao mar cheguem decerto.

Nem o sol, nem estrela,
Então, despertarão:
Nem água que encapela,
Nem um sinal ou som:
Nem folhas de outono;
Nem dias de abandono,
Só um eterno sono,
E eterna escuridão.

Trad.: Nelson Santander

 

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NOTAS SOBRE A TRADUÇÃO:

Li uma estrofe deste poema, há muito tempo, no blog do poeta e filósofo Antônio Cicero, “Acontecimentos” (o meu site de poemas favorito). A estrofe em questão foi citada pelo filósofo Richard Rorty em seu último artigo, chamado “O Fogo da Vida” que, bem a propósito, trata justamente do descobrimento da importância da poesia no momento em que o autor está diante de um diagnóstico de um câncer incurável. A estrofe em questão (a mais famosa do poema) foi assim traduzida pelo próprio Antonio Cicero:

Agradecemos brevemente
A todos os deuses que há
Por não se viver para sempre;
Por jamais os mortos se erguerem;
Por chegar, por mais que volteie,
O rio sem dúvida ao mar.

We thank with brief thanksgiving
Whatever gods may be
That no life lives for ever;
That dead men rise up never;
That even the weariest river
Winds somewhere safe to sea.

A leitura desta única e poderosa estrofe despertou a minha curiosidade a respeito do resto do poema. No entanto, embora eu tenha vasculhado a internet, não consegui achar nenhuma tradução decente do poema. Achei, sim, alguns trechos, cujo sentido do texto era mais ou menos fiel ao original, sem que, todavia, o ritmo, a métrica e/ou a rima fossem observados.

No blog Ácido Carbolítico (http://resbruscato.wordpress.com/2009/10/23/o-jardim-de-proserpina/), por exemplo, a primeira estrofe foi assim traduzida:

Aqui, onde o mundo é quieto,
Aqui onde todos os problemas são
Tumultos de ondas e vento morto
Em duvidosos sonhos e ilusão;
Eu vejo o verde campo crescer
Para o povo plantar e colher,
Para o tempo de ceifar e moer,
Em sonolento mundo de tufão.

Embora a tradução observe aproximadamente o sentido do texto original e as rimas interpoladas, nota-se que a métrica foi sumariamente desprezada, transformando o hexassílabo original em verso livre. Por outro lado, a tradução de parte da penúltima estrofe proposta pelo Antonio Cicero, acima transcrita, observa a métrica (tendo ele optado por versos octossilábicos), mas descuida das rimas interpoladas, mantendo-as apenas na quarta com a oitava rimas.
Assim, como não conseguia encontrar nenhuma tradução razoavelmente satisfatória do poema, resolvi eu mesmo abraçar a tarefa.

O poema The Garden of Proserpine, do poeta vitoriano Algernon Charles Swinburne, foi escrito em 1866. Proserpina (Prosérpina) ou Cora é a grafia latina da deusa Perséfone ou Koré, casada com Hades, o deus do submundo. Segundo a lenda, ela era filha de Zeus e da deusa Deméter, da agricultura. Era muito bela, o que levou sua mãe a escondê-la longe da vista dos deuses. Quando, porém, os sinais de sua grande beleza começaram a surgir, em sua adolescência, o deus Hades por ela se apaixonou perdidamente, e a pediu em casamento diretamente a Zeus que, sem consultar Deméter, concordou com o pedido. Hades, no entanto, impaciente pela demora no casamento, a raptou enquanto ela colhia flores com as ninfas, levando-a para seus domínios (o mundo subterrâneo). Uma vez lá, desposou-a e fez dela a rainha do submundo. Deméter ficou inconsolável, e acabou se descuidando de suas tarefas. Por isso, as terras ficaram estéreis e houve escassez de alimentos. Deméter procurou por sua filha em toda parte e, por fim, descobriu, por intermédio de Hécate e Helios, que a jovem deusa havia sido levada para o mundo dos mortos. Para lá então rumou, junto com Hermes, para resgatá-la. Como, no entanto, Proserpina havia comido uma semente de romã ofertado por Hades, Zeus entendeu que ela não poderia abandonar seu marido. Em razão disso, costurou-se um acordo, segundo o qual ela passaria metade do ano com seus pais e a outra metade com Hades. Este mito é a explicação do ciclo anual das colheitas.

O melancólico poema de Swinburne se vale do mito de Proserpina para expressar um estado de espírito ligado ao desejo de paz e descanso, diante do cansaço e saciedade da vida. No poema, a morte está personificada no mito da deusa Proserpina. E o jardim de Proserpina – “seco”, melancólico, devastado pela morte e pela infertilidade – é o oposto do jardim do Éden, onde a vida viceja com frutos e vegetação exuberante. O jardim de Proserpina, morto embora, não é de todo estéril. Em vários trechos do poema fica claro que ele gerou uma colheita; mas uma colheita feita de “grãos cobertos por neve”, “secos brotos”, “folhas débeis”. No poema, a natureza não é boa e acolhedora; é, antes, indiferente. E o jardim de Proserpina é o lugar para o qual vão os “amores murchos (…), cansados”; um lugar de “sonhos mortos e breves” e de primaveras arruinadas (“abris despedaçados”).

Segue abaixo uma ótima revisão do poema, escrita por Bhaskar Banerjee.
Sobre a tradução em si cumpre fazer algumas pequenas observações. O poema original de Swinburne é construído em versos hexassílabos, e, para ficar o mais fiel possível ao original, resolvi manter, na tradução, a mesma métrica. O que demonstrou ser uma péssima ideia. A língua inglesa tem uma infinidade de palavras monossilábicas que, quando vertidas para o português, tornam-se dissílabas ou trissílabas (“man”- “homem”; “watch”- “vejo”; “dreams”-“sonhos”; “green”-“verde”; “tears”- “lágrimas”; etc.). O poema de Swinburne tem um número enorme destas palavras. Veja-se, por exemplo, o primeiro e famoso verso do poema:
Here/, where/ the/ world/ is/ quiet
Em tradução livre, este verso ficaria assim:
A/qui/, on/de o/ mun/do é/ cal/mo
Melhor seria, assim, ter optado pela redondilha maior. No entanto, tomei a dificuldade como um desafio e resolvi manter a métrica original do poema.

Mantive, também, de forma bem rigorosa o esquema de rimas interpoladas (ou intercaladas) do poema. O poema de Swinburne é composto de doze estrofes, cada qual contendo uniformemente oito versos. Nele, os versos pares iniciais rimam se interpondo entre os ímpares, seguidos por três também rimados, mas de forma diferente, no rígido esquema ABABCCCB, o que procurei manter na tradução.

O original, finalmente, é repleto de figuras de sintaxe, as quais servem para reforçar a melancolia que perpassa todo o poema por força de uma repetição quase que monótona. Algumas dessas figuras de sintaxe – como as anáforas – são relativamente fáceis de recuperar na tradução. Por exemplo:

That no life lives for ever ;
That dead men rise up never ;
That even the weariest river
Winds somewhere safe to sea

Que as vidas se extingam,
Que os mortos não se ergam;
Que os rios que serpenteiam,
Ao mar cheguem decerto.

Já as inúmeras aliterações e assonâncias espalhadas pelo texto foram muito difíceis de reproduzir com a colocação das vogais e consoantes, em minha tradução, nos pontos exatos dos versos onde ocorrem no texto original. Ainda assim, procurei inserir aliterações e assonâncias ao longo da tradução, como, por exemplo, nessas estrofes e versos:

Cá, em que a terra é calma;
Cá, em que o drama é como
Ar morto e exaustas almas,
Dúbios sonhos assomo;

Por eles ela vela,
Por todos ela espera;
Esquece a terra bela,
A vida pura e vera;
Primavera, grãos, ave,
Vá, em seu vôo suave,
Aonde o som soa grave
E calcada é a hera.

O tradutor.

UMA REVISÃO DO POEMA “O JARDIM DE PROSERPINA”
Bhaskar Banerjee

Na mitologia grega, Prosérpina é a filha de Ceres e da esposa de Plutão. Ela é, portanto, a deusa do Hades (isto é, o reino dos mortos), e seu Jardim fica na fronteira de Hades. Swinburne usa esse mito para expressar um estado de espírito. Em “O Jardim de Proserpina” o Jardim torna-se um símbolo da morte e da extinção. O poema exprime sentimentos de cansaço e saciedade para fazer da inevitabilidade da morte algo a ser aceito e até desejado.

Não a morte em si, mas sim o desejo de morte, é o tema do poema. Prosérpina é vista como a deusa, não da morte apenas, mas de todos os fins, de todas as ‘pequenas mortes’ – do dia, do amor, das estações do ano – que tornam a vida dolorosa, mas sem as quais a vida seria insuportável. É, paradoxalmente, o “muito amor à vida”, que produziu este hino em honra da morte.
O tema de Swinburne deriva muito de sua capacidade de se valer de outros aspectos do mito. Por exemplo, ele compara a Prosérpina mortífera e estéril com a Prosérpina cujo periódico retorno à terra significa o renascimento da Primavera. Prosérpina é, portanto, representada como uma ‘belle dame sans merci “, ameaçadora, mesmo repugnante, mas sedutora e irresistível.

O poema começa por estabelecer o contraste entre a quietude do Jardim e do mundo do homem atarefado; migra então para uma descrição do próprio Jardim, de Prosérpina, e de seu poder sobre o mundo, e termina com uma expressão de alívio na cessação definitiva de todas as coisas.
Os motivos e as imagens são repetidas, e o sucesso do poema depende dessas repetições. Swinburne usa os recursos da linguagem – musical, imagética, emotiva – para evocar um estado de espírito. O soporífero, mesmo hipnótico, efeito das repetições combina perfeitamente com o humor. Há, por exemplo, as imagens repetidas de flores, folhas, frutas e milho, que caracterizam a vida tanto do homem na terra e do Jardim em si. As repetições geram contrastes: as áreas de terra são verdes e crescem, enquanto os campos Proserpina são ‘inúteis’ e ‘nada cresce no charco”. Mas as repetições servem também para estabelecer paralelos: se brotos e folhas de Proserpina são “de um florescer parco”, a terra também produz “secos brotos da flora”.
A repetição é também utilizada para gerar efeitos de linguagem em dispositivos tais como anáfora, assonância e, acima de tudo, aliteração. Nas últimos três estrofes, o som e o sentido combinam para dar uma impressão exata da impermanência das coisas que torna a vida, em última análise, tão estéril como a morte.

http://voices.yahoo.com/a-review-poem-garden-proserpine-517330.html

The Garden Of Proserpine

Here, where the world is quiet;
Here, where all trouble seems
Dead winds’ and spent waves’ riot
In doubtful dreams of dreams;
I watch the green field growing
For reaping folk and sowing,
For harvest-time and mowing,
A sleepy world of streams.

I am tired of tears and laughter,
And men that laugh and weep ;
Of what may come hereafter
For men that sow to reap :
I am weary of days and hours,
Blown buds of barren flowers,
Desires and dreams and powers
And everything but sleep.

Here life has death for neighbour,
And far from eye or ear
Wan waves and wet winds labour,
Weak ships and spirits steer ;
They drive adrift, and whither
They wot not who make thither ;
But no such winds blow hither,
And no such things grow here.

No growth of moor or coppice,
No heather-flower or vine,
But bloomless buds of poppies,
Green grapes of Proserpine,
Pale beds of blowing rushes
Where no leaf blooms or blushes
Save this whereout she crushes
For dead men deadly wine

Pale, without name or number,
In fruitless fields of corn,
They bow themselves and slumber
All night till light is born ;
And like a soul belated,
In hell and heaven unmated,
By cloud and mist abated
Comes out of darkness morn.

Though one were strong as seven,
He too with death shall dwell,
Nor wake with wings in heaven,
Nor weep for pains in hell ;
Though one were fair as roses,
His beauty clouds and closes ;
And well though love reposes,
In the end it is not well.

Pale, beyond porch and portal,
Crowned with calm leaves, she stands
Who gathers all things mortal
With cold immortal hands ;
Her languid lips are sweeter
Than love’s who fears to greet her
To men that mix and meet her
From many times and lands.

She waits for each and other,
She waits for all men born ;
Forgets the earth her mother,
The life of fruits and corn ;
And spring and seed and swallow
Take wing for her and follow
Where summer song rings hollow
And flowers are put to scorn.

There go the loves that wither,
The old loves with wearier wings ;
And all dead years draw thither,
And all disastrous things ;
Dead dreams of days forsaken,
Blind buds that snows have shaken,
Wild leaves that winds have taken,
Red strays of ruined springs.

We are not sure of sorrow,
And joy was never sure;
To-day will die to-morrow;
Time stoops to no man’s lure;
And love, grown faint and fretful,
With lips but half regretful
Sighs, and with eyes forgetful
Weeps that no loves endure.

From too much love of living,
From hope and fear set free,
We thank with brief thanksgiving
Whatever gods may be
That no life lives for ever ;
That dead men rise up never ;
That even the weariest river
Winds somewhere safe to sea

Then star nor sun shall waken,
Nor any change of light:
Nor sound of waters shaken,
Nor any sound or sight:
Nor wintry leaves nor vernal,
Nor days nor things diurnal;
Only the sleep eternal
In an eternal night.

Walter Savage Landor – Epitáfio

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