Ellen Bass – A dor de deus

Grande pai
que deve ter começado
com tantas expectativas.
Que magnitude de sofrimento,
imensidão de culpa,
desconcertante desespero.
Uma mente do tamanho do sol,
ardendo em nostalgia,
um coração enorme como o de uma baleia-cinzenta
rompendo, fluindo
na água do mar contra o céu claro.
Deus homem ou deus animal,
deus que respira em cada folha plissada,
saco vocal de sapo, penugem e raque —
deus do plutônio e da penicilina, bêbado
dormindo na grade do metrô,
deus de Joana d´Arc, deus de Crazy Horse,
de Lady Day1, que nos põe de joelhos,
deus de Houdini com suas mãos
como um rio, de Einstein, o arrependimento
correndo em suas veias,
deus de Stalin, deus de Somoza,
deus da Grande Marcha2,
do Caminho das Lágrimas3,
dos trens,
deus de Allende e deus de Tookie4,
do colhedor de morangos, o incêndio às suas costas,
deus da meia-noite, deus do inverno,
deus das crianças raptadas e vendidas
com uma semana de hospedagem
e passagem aérea para a Tailândia,
deus em apuros, deus no fim de sua corda —
insone, impotente —
deus desesperado, desvairado, coração de baleia
extraviada em águas rasas, encalhada
na areia, ressequida, empolada, esmagada
pelo peso massivo da gravidade.

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “God’s Grief”. In:_____The Human Line. EUA: Copper Canyon Press, June 01, 2007.

Miniantologia Poética – 7

Notas

  1. Lady Day era o outro nome artístico da cantora-compositora Billie Holiday.
  2. A autora se refere à retirada das brigadas do Partido Comunista Chinês (o Exército Vermelho dos Operários e Camponeses da China) para fugir à perseguição do exército do Kuomintang.
  3. segundo a Wikipedia: “O Caminho das Lágrimas foi o nome dado pelos nativos às viagens de recolocações e migrações forçadas, impostas pelo governo dos Estados Unidos da América às diversas tribos de índios que seriam reunidas no chamado “Território Indígena” (atual Estado de Oklahoma), consoante à política de remoção indígena. Os índios habitavam as regiões ao sul da União. A referência à “Trilha das Lágrimas” foi retirada de uma descrição de um nativo da Nação Choctaw em 1831.” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Trilha_das_L%C3%A1grimas)
  4. Stanley Tookie Williams III, ou Tookie, foi um dos fundadores da gangue conhecida como Crips, uma das mais violentas gangues de rua dos Estados Unidos.

God’s Grief

Great parent
who must have started out
with such high hopes.
What magnitude of suffering,
the immensity of guilt,
the staggering despair.
A mind the size of the sun,
burning with longing,
a heart huge as a gray whale
breaching, streaming
seawater against the pale sky.
Man god or beast god,
god that breathes in every pleated leaf,
throat sac of frog, pinfeather and shaft—
god of plutonium and penicillin, drunk
sleeping on the subway grate,
god of Joan of Arc, god of Crazy Horse,
Lady Day, bringing us to our knees,
god of Houdini with hands
like a river, of Einstein, regret
running thick in his veins,
god of Stalin, god of Somoza,
god of the long march,
the Trail of Tears,
the trains,
god of Allende and god of Tookie,
the strawberry picker, fire in his back,
god of midnight, god of winter,
god of rouged children sold
with a week’s lodging
and airfare to Thailand,
god in trouble, god at the end of his rope—
sleepless, helpless—
desperate god, frantic god, whale heart
lost in the shallows, beached
on the sand, parched, blistered, crushed
by gravity’s massive weight.

Ellen Bass – A dor de Deus

Ellen Bass – Portão C22

No portão C22 do aeroporto de Portland
um homem com um chapéu de couro de aba larga beijava
uma mulher que chegara de Orange County.
Eles se beijavam e se beijavam e se beijavam. Muito tempo depois
que os outros passageiros afivelaram as alças de suas bagagens de mão
e se dirigiram rapidamente para o estacionamento,
o casal ficou lá, os braços em volta um do outro
como se ele tivesse acabado de desembarcar na Ilha Ellis1,
como se ela tivesse sido finalmente liberada da UTI, saído
do coma, sobrevivido a um câncer ósseo, descido
da Annapurna2 apenas com as roupas do corpo.

Nenhum dos dois era jovem. A barba dele era grisalha.
Ela carregava alguns quilos a mais que você até poderia imagina-la
dizendo que tinha que perder. Mas eles trocavam beijos
generosos como o oceano no início da manhã,
a forma como ele se avoluma e intumesce, sugando
para baixo cada pedra, engolindo-as
vezes sem conta. Estávamos todos assistindo —
passageiros aguardando o voo atrasado
para San Jose, as aeromoças, os pilotos,
a mulher de avental cobrindo Cinnabons, o homem vendendo
óculos escuros. Não conseguíamos desviar o olhar. Podíamos
sentir o sabor dos beijos macerados em nossas bocas.

Mas a melhor parte foi a expressão no rosto dele. Quando ele recuou
e olhou para ela, seu sorriso meigo de admiração, quase
como se ele fosse uma mãe ainda aberta após dar à luz,
como a sua mãe deve ter olhado para você, não importa
o que possa ter acontecido depois — se ela bateu ou abandonou-o
ou se você está solitário agora — uma vez você deitou lá, o vérnix
ainda não removido, e alguém contemplou-o
com se você fosse o primeiro nascer do sol da terra.
Toda aquela ala do aeroporto silenciou,
todos nós tentando entrar no corpo de meia idade daquela mulher,
em sua bermuda xadrez, sua blusa sem mangas, seus óculos,
seus pequenos brincos de argola de ouro, inclinando nossas cabeças para cima.

N. do T.:

1. A Ilha Ellis, situada na foz do Rio Hudson, foi o principal posto de imigração dos EUA entre 1892 e 1954, tendo testemunhado a chegada de mais de 12 milhões de estrangeiros atraídos pelo sonho americano. A ilha é hoje o símbolo da imigração para os Estados Unidos.

2. Ela se refere à montanha Annapurna situada na cordilheira Annapurna da província de Gandaki, centro-norte do Nepal.

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “Gate C22”. In:_____The Human Line. EUA: Copper Canyon Press, June 01, 2007.

Miniantologia Poética – 6

Gate C22

At gate C22 in the Portland airport
a man in a broad-band leather hat kissed
a woman arriving from Orange County.
They kissed and kissed and kissed. Long after
the other passengers clicked the handles of their carry-ons
and wheeled briskly toward short-term parking,
the couple stood there, arms wrapped around each other
like he’d just staggered off the boat at Ellis Island,
like she’d been released at last from ICU, snapped
out of a coma, survived bone cancer, made it down
from Annapurna in only the clothes she was wearing.

Neither of them was young. His beard was gray.
She carried a few extra pounds you could imagine
her saying she had to lose. But they kissed lavish
kisses like the ocean in the early morning,
the way it gathers and swells, sucking
each rock under, swallowing it
again and again. We were all watching—
passengers waiting for the delayed flight
to San Jose, the stewardesses, the pilots,
the aproned woman icing Cinnabons, the man selling
sunglasses. We couldn’t look away. We could
taste the kisses crushed in our mouths.

But the best part was his face. When he drew back
and looked at her, his smile soft with wonder, almost
as though he were a mother still open from giving birth,
as your mother must have looked at you, no matter
what happened after—if she beat you or left you or
you’re lonely now—you once lay there, the vernix
not yet wiped off, and someone gazed at you
as if you were the first sunrise seen from the Earth.
The whole wing of the airport hushed,
all of us trying to slip into that woman’s middle-aged body,
her plaid Bermuda shorts, sleeveless blouse, glasses,
little gold hoop earrings, tilting our heads up.

Ellen Bass – O panorama geral

Eu tento ver o panorama geral.
O sol, língua ardente
que nos lambe como uma mãe encantada

por sua nova cria, se consumirá.
Tudo é transitório.
Pense no meteoro

que aniquilou os dinossauros.
E antes disso, nos vulcões
do Permiano — todas aquelas samambaias

e répteis, tubarões e peixes ósseos queimados —
que foram extintos em uma escala
que faz com que nossas perdas pareçam um dia difícil no caça-níqueis.

E talvez estejamos destinados a evoluir
para algum tipo de inteligência
que não precisa de corpos, ou água potável, ou mesmo de ar.

Mas não consigo deixar de me afligir
pelos últimos seiscentos Linces-ibéricos
com suas orelhas tufadas,

pelos Peixes-viola brasileiros, os 4
porcento deles ainda pervagando
o leito oceânico, olhos fixos no alto.

E por todos os marsupiais recém-nascidos —
Cangurus-vermelhos com filhotes do tamanho de abelhas —
Trutas-arco-íris, Botos-cor-de-rosa,

e pelas muitas espécies de sapos
respirando através de suas úmidas
membranas permeáveis.

Hoje, no ônibus, uma mulher
em um suéter do tom exato dos cardeais,
e sua alça de sutiã carmesim, exposta

em sua pálida espádua, fez-me sofrer
por aqueles brilhantes flashes na neve.
E pelos ursos polares, o creme e o âmbar

de seus pelos, o longo, oco
pelame pelo qual o sol desliza,
engolido em sua pele escura. Quando cheguei em casa,

meu filho estava com dor de cabeça e, embora ele esteja
quase crescido, pediu-me que lhe cantasse uma canção.
Deitamos juntos no sofá irregular

e me pus a cantarolar as velhas melodias, “Night and Day”. . .
“They Can’t Take That Away from Me.”. . . Uma corrente
de prata vulgar cintilava em seu pescoço,

subindo e descendo com sua pulsação. Nunca houve
outra coisa. Apenas estas dolorosamente
insignificantes criaturas que amamos.

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “The Big Picture”. In:_____The Human Line. EUA: Copper Canyon Press, June 01, 2007.

Miniantologia Poética – 5

The big picture

I try to look at the big picture.
The sun, ardent tongue
licking us like a mother besotted

with her new cub, will wear itself out.
Everything is transitory.
Think of the meteor

that annihilated the dinosaurs.
And before that, the volcanoes
of the Permian period — all those burnt ferns

and reptiles, sharks and bony fish —
that was extinction on a scale
that makes our losses look like a bad day at the slots.

And perhaps we’re slated to ascend
to some kind of intelligence
that doesn’t need bodies, or clean water, or even air.

But I can’t shake my longing
for the last six hundred
Iberian lynx with their tufted ears,

Brazilian guitarfish, the 4
percent of them still cruising
the seafloor, eyes staring straight up.

And all the newborn marsupials —
red kangaroos, joeys the size of honeybees —
steelhead trout, river dolphins,

so many species of frogs
breathing through their damp
permeable membranes.

Today on the bus, a woman
in a sweater the exact shade of cardinals,
and her cardinal-colored bra strap, exposed

on her pale shoulder, makes me ache
for those bright flashes in the snow.
And polar bears, the cream and amber

of their fur, the long, hollow
hairs through which sun slips,
swallowed into their dark skin. When I get home,

my son has a headache and, though he’s
almost grown, asks me to sing him a song.
We lie together on the lumpy couch

and I warble out the old show tunes, “Night and Day”. . .
“They Can’t Take That Away from Me.”. . . A cheap
silver chain shimmers across his throat,

rising and falling with his pulse. There never was
anything else. Only these excruciatingly
insignificant creatures we love.

Ellen Bass – No ar

A estação nostalgia toca as canções
que tocava quando eu aqui vivia
e a voz adocicada do DJ dizia:
Vamos agitar com essa, Ellen.

Isso é da época em que minha mãe leu sobre as virtudes
da água do mar e mergulhou, no verão e no inverno.
Ela distribuía uma colher de chá para cada um de nós
antes de sair para o seu turno de treze horas,
tirando um pack de Miller para fora da geladeira,
e fechando a porta com seu quadril.

Agora aquele quadril está reduzido a osso no osso,
e todos os seus prazeres se foram –
sanduíche italiano nos sábados à noite.
Ray Charles cantando “Georgia”,
o drinque e o cigarro queimando
em um cinzeiro de vidro cortado. Até mesmo o
café já não tem mais um bom sabor.

Lembro-me de ouvir essas canções –
“Earth Angel”, “Summer Place”,
“The Way You Look Tonight” –
olhando pela janela do meu quarto
para a bicicleta do meu namorado.

Na noite em que ele tomou de volta o seu anel
pedi-lhe para me beijar mais uma vez.
Estranho como isso me satisfez, embora
eu soubesse que ele estava partindo, levando tudo,
até mesmo seu cheiro. É assim que espero aqui
ela acordar e pedir uma lasca de gelo
que irá derreter até virar nada em sua língua.

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “On the air”. In:_____The Human Line. EUA: Copper Canyon Press, June 01, 2007.

Miniantologia Poética – 4

On the air

The oldies station plays the songs
it played when I lived here
and the DJ’s caramel voice, said
Let’s go rockin’ with this one, Ellen.

Those were the years my mother read about the virtues
of seawater and waded in, summer and winter.
She held out a teaspoon to each of us
before leaving for her thirteen-hour shift,
slinging six-packs of Miller out of the walk-in icebox,
shoving the door closed with her hip.

Now that hip is down to bone on bone,
and all her pleasures gone –
Italian subs on Saturday night.
Ray Charles singing “Georgia”,
the highball and cigarette burning
in a cut-glass ashtray. Even coffee
doesn’t taste good anymore.

I remember listening to this music-
“Earth Angel”, “Summer Place”,
“The Way You Look Tonight” –
watching out my bedroom window
for my boyfriend’s bicycle.

The night he took back his ring
I asked him to kiss me one more time.
Strange how that satisfied, though I knew
he was leaving, taking everything,
even his smell. That’s how I wait here
for her to wake, to ask for an ice chip
that will melt to nothing on her tongue.

Ellen Bass – Por qualquer outro nome

Não me importo tanto em esquecer os nomes das pessoas.
São os substantivos comuns que me fazem falta. Temo o
espaço em branco absoluto de quando tento me lembrar
daquele objeto no qual os professores escrevem com giz.

Eu posso vê-lo em minha mente. Às vezes estou
até olhando diretamente para ele. Ontem eu fiquei
diante das flores brancas e rosas do meu jardim,
sabendo que conhecia, até aquele momento,
seus nomes populares e em latim.

Ao pegar a tanga úmida da minha filha,
eu disse: “Pendure sua canga no varal.”
Impressionada, chamei de vagem o colar
que um amigo usava. Sinto falta

dos nomes, como se fossem
as próprias coisas, como se os objetos
tivessem sido apagados, um borrão
na página. Como as aberturas

naqueles totens de papelão, cabeças encaixadas
sobre uma roupa de cowboy ou um vestido plissado de can-can.
Quando as retiramos, não há ninguém lá.
Eu me pego afagando objetos simples –

espátula, cobertor, sombrinha, sabonete –
como se fossem entes queridos
prestes a partir. Como irei suportar
os buracos que eles deixarão no mundo?

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “By Any Other Name”. In:_____Prairie Schooner. EUA: University of Nebraska Press, Vol. 78, n. 4, Winter 2004, pp 148-150.

Miniantologia Poética – 3

By Any Other Name

I don’t so much mind losing people’s names.
It’s the ordinary nouns I miss. I fear the absolute
blank space when I try to recall
that thing teachers write on with chalk.

I can see it in my mind. Sometimes
I’m even looking right at it. Yesterday I stood
over the pink and white flowers in my garden,
knowing that I’d known, until that moment,
both their common and Latin names.

Picking up my daughter’s damp bathing suit,
I said, “Hang your suitcase on the line.”
Admiring a friend’s necklace,
I called it a stringbean. I miss

the names, as though they were
the things themselves, as though the objects
were erased, a smudge
on the page. Like the openings

in those amusement stockades, heads popped
above a cowboy suit or ruffled can-can dress.
When they pull out, there’s no one there.
I find myself caressing simple objects-

spatula, blanket, umbrella, soap –
as though they were loved ones
about to depart. How will I bear
the holes they leave in the world?

Ellen Bass – Se Deus não existe

Então não há ninguém
para nos amar indiscriminadamente,
para girar nosso planeta como um globo, para manter a seiva —
xilema e floema — deslizando para cima e para baixo como a vara
de um trombone, as células respirando através das abundantes mitocôndrias,
sorvendo a chuva, absorvendo a luz do sol.

A lampreia prende sua boca redonda
no flanco de um peixe, raspando e sugando o sangue.
A píton de mandíbula articulada ingere uma gazela envolta em veludo.

Seda de aranha, a cadeia polipeptídica dobrada
para lá e para cá, lençóis plissados mais resistentes que o aço.
Elas se estendem e se enrolam, respondendo como um amante.
Quem vai notar? Quem irá assistir
enquanto as patas articuladas enrolam a libélula
dando voltas e voltas, asas enormes zumbindo?

Quem vai se agachar ao lado do líquen enquanto ele se infiltra sobre a rocha,
para anotar seu milimétrico crescimento como um pai fazendo marcas
de lápis na parte de trás da porta? E quando ele morrer
envenenado — com mil, dois mil anos de idade,
esta criatura modesta, meio folha, meio arbusto,
quem irá chora-lo? Quem entoará sua elegia?

As calotas polares estão se estilhaçando.
Populações de continentes inteiros entram em colapso — os vírus eclodem
continuamente das superfícies complexas e graciosas das células T,
reunindo-se e empilhando-se em intrincados vales e espirais.
Já não é possível encontrar um único pica-pau-bico-de-marfim ou lobo-da-tasmânia.
A precipitação radioativa circunda o planeta.

Deve haver algo que você ame: as cerejeiras
na Storrow Drive explodindo em flores enquanto você passa,
cada árvore libertando seus botões desbotados como fogos de artifício em tons pastel.
Ou voltar de carro de Poipu Beach, as crianças desabadas sobre você,
a lua cintilando entre mil palmeiras.

Quando os tentilhões enlouquecem cantando e se fartando
nas últimas das peras de novembro, quando Pavarotti canta,
ou uma mãe canta para o seu bebê, I can’t give you anything but love,
andando pelo tapete manchado do corredor,
quando ela cai na cama novamente e seu novo amante reúne suas partes
como um favo de mel, alguém
precisa prestar atenção. Abra sua janela.
Ouça, ouça-os, e veja.

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “If There is no God”. In:_____Mules of Love. EUA: BOA Editions, April 01, 2002.

Miniantologia Poética – 2

If There Is No God

Then there’s no one
to love us indiscriminately,
to twirl our planet like a globe, to keep the sap—
xylem and phloem—gliding up and down like the slide
of a trombone, the cells breathing through teeming mitochondria,
slurping rain, eating sunlight.

The jawless lamprey clamps its round
mouth on the flank of a fish, rasping and sucking blood.
The hinged-jaw python ingests a velvet-cloaked gazelle.

Spider silk, the polypeptide chain folded
back and forth, pleated sheets stronger than steel.
They stretch and coil, responding like a lover.
Who will notice? Who will watch
while the articulate legs wrap the dragonfly
round and round, huge wings whirring?

Who will crouch beside the lichen as it wheedles into rock,
mark its single millimeter’s growth like a father penciling tracks
up the back of the door? And when it dies—
a thousand, two thousand years old, this modest
leaflike, shrublike creature, poisoned,
who will mourn? Who will chant its elegy?

The polar ice caps are cracking up.
The people of whole continents collapsing—viruses bud
continuously from the graceful, convoluted surfaces of T cells,
gathering and heaping in intricate curls and valleys.
We cannot find a single ivory-billed woodpecker or Tasmanian wolf.
Radioactive fallout circles the planet.

There must be something you love: the cherry trees
on Storrow Drive bursting into bloom as you pass,
each tree releasing its pale buds like pastel fireworks.
Or driving back from Poipu Beach, the children slumped against you,
the moon flashing through the thousand palms.

When finches go crazy gorging and singing
in the last of the November pears, when Pavarotti sings,
or a mother sings to her baby, “I can’t give you anything but love,”
walking the stained carpet of the hallway,
when she falls back into bed and her new lover gathers
her up like honeycomb, someone
must pay attention. Open your window.
Listen, listen to them, and behold.

Ellen Bass – O importante é

O importante é

amar a vida, ama-la mesmo
quando você não tem estômago para isso
e tudo o que você guardou afetuosamente
se desfaz feito papel queimado em suas mãos,
sua garganta repleta desse lodo.
Quando a dor se senta ao seu lado, seu calor tropical
condensando o ar, pesado como água,
mais apto para guelras do que para pulmões;
quando a dor pesa sobre você como sua própria carne,
só que um pouco mais, uma obesidade de dor,
você pensa: como pode um corpo suportar isso?
Então você segura a vida como um rosto
entre as palmas das mãos, um rosto banal,
sem sorriso encantador nem olhos violeta,
e você diz, sim, eu a aceitarei,
eu a amarei, novamente.

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “The Thing is”. In:_____Mules of Love. EUA: BOA Editions, April 01, 2002.

Miniantologia Poética – 1

The Thing Is

to love life, to love it even
when you have no stomach for it
and everything you’ve held dear
crumbles like burnt paper in your hands,
your throat filled with the silt of it.
When grief sits with you, its tropical heat
thickening the air, heavy as water
more fit for gills than lungs;
when grief weights you down like your own flesh
only more of it, an obesity of grief,
you think, How can a body withstand this?
Then you hold life like a face
between your palms, a plain face,
no charming smile, no violet eyes,
and you say, yes, I will take you
I will love you, again.

Ellen Bass – Miniantologia poética – Apresentação

Há tempos – buscando não descuidar da publicação de poetas brasileiros e portugueses e de poemas traduzidos por outras pessoas – tenho me dedicado a traduzir e publicar no blog poemas de escritores de diversas partes do mundo (em especial, dos Estados Unidos e Espanha) pouco conhecidos ou totalmente desconhecidos do leitor brasileiro. Raras vezes me arrisco a traduzir medalhões da poesia internacional. Por duas razões. Primeiro porque poetas famosos – como Emily Dickinson, Raymond Carver, E. E. Cummings, T. S. Eliot, Rainer Maria Rilke e outros que frequentemente aparecem nas postagens – costumam ser regularmente traduzidos e publicados no Brasil, e meu eventual trabalho de tradução muito pouco acrescentaria à excepcional ourivesaria dos tradutores locais. Por outro lado, é certo que existe muita poesia boa e muitos poetas excepcionais de outros países, desconhecidos do leitor de poesia brasileiro, cujos trabalhos são dignos de serem aqui apreciados.

Com base nesse critério, o blog já publicou trabalhos de Ada Limón, Amalia Bautista, Dorianne Laux, Eiléan Ní Chuilleanáin, Francisco Brines, Gonçalo M. Tavares, Ian Hamilton, Jaime Gil de Biedma, Jane Hishfield, Javier Salvago, Joan Margarit, Juan Vicente Piqueras, Linda Pastan, Lisel Mueller, Louise Glück1, Charles Simic, Luis Alberto de Cuenca, Mary Oliver, Marie Howe, Manuel António Pina, Robinson Jeffers, e inúmeros outros, todos notáveis, mas pouco conhecidos no Brasil.

Em uma postagem anterior, expliquei que meu critério para traduzir e publicar ou não um poema no blog é a qualidade do trabalho a ser traduzido/publicado – com base, é claro, no gosto pessoal e no olhar subjetivo do tradutor. Às vezes, me deparo com um poema excepcional de um poeta desconhecido. Traduzo, publico e fico atento. Na maioria das vezes, apenas um ou dois poemas deste escritor passam pelo filtro subjetivo do meu gosto pessoal e acabam sendo traduzidos/publicados.

Há poetas, no entanto, que têm um trabalho tão consistente e de qualidade tão incontestável que quando me dou conta já separei dezenas de seus poemas para serem traduzidos. Assim foi com a mencionada Louise Glück (de quem, dentre vários outros poemas, traduzi A Íris Selvagem na íntegra, dada a organicidade da obra que, segundo entendi, não comportava a publicação de poemas isolados, sob pena de tornar incompreensível a magnitude do trabalho) e Joan Margarit, que sigo traduzindo e publicando: já foram mais de 90 poemas, dentre os quais sua obra-prima, Joana, traduzida na íntegra.

Dentre esses poetas com os quais tive contato mais recentemente, minha mais nova obsessão é a autora Ellen Bass.

Segue uma breve biografia da poeta, extraída de sua página oficial na web (https://www.ellenbass.com/):

Ellen Bass é chanceler da Academy of american poets. Seu livro mais recente, Indigo, foi publicado pela Copper Canyon Press em 2020. Outras coletâneas de poesia incluem: 
Like a Beggar (Copper Canyon Press, 2014) - que foi finalista do Paterson Poetry Prize, The Publishers Triangle Award, The Milt Kessler Poetry Award, The Lambda Literary Award e o Northern California Book Award; 
The Human Line (Copper Canyon Press, 2007); e  
Mules of Love (BOA Editions, 2002), que ganhou o Lambda Literary Award. 
Ela co-editou (com Florence Howe) a primeira grande antologia de poesia feminina, No More Masks! (Doubleday, 1973). Seus poemas têm aparecido frequentemente na The New Yorker e no The American Poetry Review, bem como na The New York Times Magazine, The Atlantic, The American Poetry Review, The New Republic, The Kenyon Review, Plowshares, The Sun  e muitos outros jornais, revistas e antologias.
Foi premiada com bolsas da Fundação Guggenheim, The National Endowment for the Arts e The California Arts Council e recebeu o Elliston Book Award for Poetry da University of Cincinnati, Nimrod / Hardman's Pablo Neruda Prize, The Missouri Review's  Larry Levis Award, Greensboro Poetry Prize, The New Letters Poetry Prize, the Chautauqua Poetry Prize, e três Pushcart Prizes.
Seus livros de não-ficção incluem Free Your Mind: The Book for Gay, Lesbian and Bisexual Youth (HarperCollins, 1996), I Never Told Nobody: Writings by Women Survivors of Child Sexual Abuse  (HarperCollins, 1983) e  The Courage to Heal:  A Guide for Women Survivors of Child Sexual Abuse (Harper Collins, 1988, 2008), que já venderam mais de um milhão de cópias e foram traduzidos para doze idiomas.
Ellen fundou oficinas de poesia na prisão estadual de Salinas Valley e nas prisões de Santa Cruz, CA. 
Ela atualmente leciona no programa de redação de MFA de baixa residência na Pacific University.

Ellen Bass vive atualmente na cidade de Santa Cruz, ao sul de São Francisco, e trabalha como poetisa e professora em tempo integral. Ela tem uma filha (de seu casamento com um ex-marido já falecido) e um filho de seu relacionamento de mais de trinta anos com a esposa atual, Janet3, musa inspiradora de inúmeros poemas.

Integrante de destaque da novíssima geração de poetas americanos, Ellen Bass pratica um tipo de poesia que a crítica classifica como intimista. De fato, seus poemas são encharcados de suas experiências pessoais e escritos com uma honestidade raramente vista em outros escritores. Tudo em sua vida é passível de virar poema: traições, relacionamentos familiares, o sexo (erótico ou sublime), fracassos pessoais e amorosos, nascimento, maternidade, envelhecimento, morte, etc.

Escritora dotada de recursos poéticos sofisticados (a crítica especializada costuma elogiar o controle que ela consegue exercer sobre cada linha de seus poemas e o uso refinado da metáfora) e de uma dicção clara e precisa, sua poesia – absurdamente honesta e despida de floreios – costuma partir do francamente confessional para, no mais das vezes, atingir uma insuspeita nota universal. Ou o contrário:

Eu tento ver o panorama geral.
O sol, língua ardente
que nos lambe como uma mãe encantada
por sua nova cria, se consumirá.
Tudo é transitório.
Pense no meteoro
que aniquilou os dinossauros.
E antes disso, nos vulcões
do Permiano — todas aquelas samambaias
e répteis, tubarões e peixes ósseos queimados —
que foram extintos em uma escala
que faz com que nossas perdas pareçam um dia difícil no caça-níqueis.
(...)
Quando cheguei em casa,
meu filho estava com dor de cabeça e, embora ele esteja
quase crescido, pediu-me que lhe cantasse uma canção.
Deitamos juntos no sofá irregular
e me pus a cantarolar as velhas melodias, “Night and Day”. . .
“They Can’t Take That Away from Me.”. . . Uma corrente
de prata vulgar cintilava em seu pescoço,
subindo e descendo com sua pulsação. Nunca houve
outra coisa. Apenas estas dolorosamente
insignificantes criaturas que amamos.

(O Panorama Geral)

Ellen Bass escreve comumente sobre a vida cotidiana. É habitual a citação a nomes de ruas, lugares, estabelecimentos comerciais, pessoas. Ao mesmo tempo, sua poesia discursa, de maneira simples e direta, sobre as questões existenciais fundamentais da existência humana: de onde vim? Para onde vamos? Qual é o significado da dor? Qual é o meu lugar no grande plano do universo? Essa capacidade de partir das situações mais comezinhas para saltos existenciais profundos, sem que o poema soe pretensioso, é apontado pela crítica como uma de suas características mais impressionantes:

(...)
Mas em uma tarde quente de verão
minha mãe me deixou arrastar a cama para o telhado.
Lençóis secando nos varais,
a caixa de areia do gato no canto,
deitei-me em uma extensão de azul. O sol ondulava
sobre minha pele como uma brisa sobre a água.
Minhas pálpebras se fecharam.
(...)
O sol estava delicioso, acariciando minha pele.
Senti que recém chegara em um corpo
enquanto a cidade girava ao meu redor —
o Teatro Rialto, a Allen Calçados, a Joalheria Stecher,
todo o centro da cidade com três quarteirões de extensão.
E eu estava no centro do nosso minúsculo
sistema solar jogado na borda
de um braço menor, um esporão de uma galáxia espiralada,
encarcada de luz

(Pleasantville, New Jersey, 1955)

Como fiz quando publiquei as obras de Louise Glück e Joan Margarit, para compor esta miniantologia postarei um poema por dia, de amanhã até o dia 08/12.

A coletânea que organizei contempla poemas publicados nos quatro principais livros de poesia da autora – Mules of Love, The Human Line, Like a Beggar e Indigo – e alguns esparsos na internet e em publicações especializadas3. Aliás, todos os poemas que traduzi e irei postar foram retirados da internet.

Torço para que gostem. Se gostarem, por favor, comentem.

Nelson Santander

  1. Aliás, me orgulho em constatar que o blog foi um dos primeiros difundir no Brasil o trabalho da vencedora do Prêmio Nobel de Literatura do ano de 2020 – hoje publicada no Brasil pela Companhia das Letras. Confira: https://amzn.to/3JuZiGe
  2. Para mais detalhes da biografia da autora, o link que segue é um bom começo:
  3. É sempre bom ressaltar que se trata de uma coletânea baseada nas escolhas absolutamente pessoais do tradutor. As obras das quais os poemas foram extraídos são, individualmente e em seu conjunto, excepcionais. Muita coisa ficou de fora e não será surpresa se no futuro eu vier a traduzir outros poemas extraídos desses mesmos livros.