Antonio Colinas – Envio

Lembras-te ainda do débil canto
do rouxinol perdido na ramagem?
Viste farfalhar comigo naquela noite
a copa do cipreste.
       Desfez-se
o céu em fios de luar sobre teu rosto.
Mas depois do pássaro e da lua
apagaram-se os astros.
       Vi passar
não sei que brisa estranha pelo teu corpo.
Lembras-te das nossas mãos na água?
Lembras-te do silêncio sobre o campo
e, como um deus exangue, do novo dia
incendiando as torres, as pombas?

Trad.: Nelson Santander

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Envío

¿Recuerdas todavía el débil canto
del ruiseñor perdido en la enramada?
Viste temblar conmigo aquella noche
la copa del ciprés.
       Desmadejó
el cielo hilos de luna por tu rostro.
Pero después del pájaro y la luna
se apagaron los astros.
       Vi pasar
no sé qué brisa extraña por tu cuerpo.
¿Recuerdas nuestras manos en el agua?
¿Recuerdas el silencio sobre el campo
y, como un dios sangrante, el nuevo día
incendiando las torres, las palomas?

Meira Delmar – Hóspede sem sombra

Nada deixam meus passos sobre a terra.
No momento do último passeio
hei de levar o que ao nascer me veio:
o rosto em paz e o coração em guerra.

Nenhuma voz repetirá a minha
de saudoso ardor e fiel espanto.
A voz estremecida com que canto
o mar, a rosa, a melancolia.

Não ressuscitará minha visão
da noite para a vida sempre ilesa,
a beber como um vinho a beleza
da iluminada e mágica amplidão.

Este sangue ébrio por formosura
não se tributará a outras veias.
Não tomarão, en passant, mãos alheias
a viva luz que em minhas mãos perdura.

Nem face que meu sonho mutilado
recolha e realize, triunfante.
Une o meu existir tempo presente
sem futuro depois do seu passado.

Conclusão de mim mesma, me rodeio
com o anel ofuscante do canto.
Inútil maré de paixão e pranto
Em mim naufraga o quanto vejo e creio.

Não lego minha solidão. Comigo
ela torna à orla do medo, ignota.
Meço em silêncio a última derrota.
Estremeço de dia. Mas não digo.

Trad.: Nelson Santander

Huésped sin sombra

Nada deja mi paso por la tierra.
En el momento del callado viaje
he de llevar lo que al nacer me traje:
el rostro en paz y el corazón en guerra.

Ninguna voz repetirá la mía
de nostálgico ardor y fiel asombro.
La voz estremecida con que nombro
el mar, la rosa, la melancolía.

No volverán mis ojos renacidos
de la noche a la vida siempre ilesa,
a beber como un vino la belleza
de los mágicos cielos encendidos.

Esta sangre sedienta de hermosura
por otras venas no será cobrada.
No habrá manos que tomen, de pasada,
la viva antorcha que en mis manos dura.

Ni frente que mi sueño mutilado
recoja y cumpla victoriosamente.
Conjuga mi existir tiempo presente
sin futuro después de su pasado.

Término de mí misma, me rodeo
con el anillo cegador del canto.
Vana marea de pasión y llanto
en mí naufraga cuanto miro y creo.

A nadie doy mi soledad. Conmigo
vuelve a la orilla del pavor, ignota.
Mido en silencio la final derrota.
Tiemblo del día. Pero no lo digo.

Théodore Fraenckel – Elegia

X. não compreendeu ainda como lhe resta pouco tempo de vida.
Outrora, os grandes lagos eram a esperança querida de um abrigo.
Da infância, o que nos resta é esta visão acadêmica
quando, suave, no tom do quadro,
leve se sente o esboroar do espírito…
Contudo, a vida nem sempre é uma constante aventura.
Por vezes, a chuva deixa-nos ver um pouco mais longe
na curta distância de nós mesmos
e o que resta é uma curta fragrância,
o perfume do espírito.
Sim, A. ainda não compreendeu como vai longe
o tempo da esperança e da ternura.
Antes, belos cromos em páginas finas
tinham o condão de por um milagre súbito
de equilíbrio,
da imaginação recobrir
o sonho (a loucura).
O tempo dos velhos amigos tinha, contudo, acabado há muito…
Daí, esta noção, que em nós ainda persiste,
de uma absinta angústia.
Que digo? Decerto X. ainda não percebeu, apesar da doença,
que a morte e a vida
não passam de uma quimera, xadrez –
abstratas ilusões de consistência nenhuma.
Por isso compreendo o gesto de A., mal se senta à mesa –
um copo de vinho bebe, olha em frente
e mais uma página folheia do livro, maculadíssimo.
(Ao entardecer, à tarde – Oh, o fugaz encanto dos gestos perdidos).

José Paulo Paes – De malas prontas

Vários dos seus amigos mortos dão hoje nome a ruas e praças.
Ele próprio se sente um pouco póstumo quando conversa com gente
  jovem.
Dos passeios, raros, a melhor parte é a volta para casa.
As pessoas lhe parecem barulhentas e vulgares. Ele sabe de
  antemão tudo quanto possam dizer.
Nos sonhos, os dias da infância são cada vez mais nítidos e fatos
  aparentemente banais do seu passado assumem uma
  significância que intriga.
O vivido e o sonhado se misturam agora sem lhe causar
  espécie.
É como se anunciassem um estado de coisas cuja possível iminência
  não traz susto.
Só curiosidade. E um estranho sentimento de justeza.

Ivan Junqueira – Estamos indo embora

Estamos indo embora. Sobre o piso de ardósia,
por entre caules e corolas que exalam um perfume exótico,
os gatos deslizam. São espíritos leves e sóbrios,
com suas patas de veludo, silenciosas,
que arranham a lombada dos livros e o verniz dos móveis.
Os tapetes abafam seus passos ociosos,
como se faz quando se acolhem os órfãos.

Doze anos se passaram, e estamos indo embora.
A brisa do mar, com seus úmidos braços, nos envolve
e empurra para um outro promontório,
uma outra dimensão de nossa breve história,
de que somos, se tanto, transitórios hóspedes,
peças de um tabuleiro onde o tempo as desloca,
alheio à inútil engrenagem dos relógios,
cujas horas se dissolvem numa névoa incorpórea.

Tanto aqui se escreveu em verso e prosa:
romances, elegias, baladas, novelas e toda uma prole
de rascunhos que iam da perífrase ao apólogo.
Tanto aqui se ouviram o lamento de um fagote,
uma ária de ópera, a lenta pulsação de um órgão,
a inquieta truta de um quinteto de cordas,
essa insistente música que ecoa na memória
e que não pode (nem quer) ir-se embora.
Como estancar as vozes e os acordes
do Réquiem em que Mozart brindou à própria morte?
Como esquecer, Palestrina, teu Kyrie, teu Sanctus, teu Gloria?
Como calar esse jorro de notas, essa clave de sol
na partitura de uma noite em que faz frio e chove?

Estamos indo embora. Passem o trinco nas portas
e tranquem as janelas pelas quais rompia a aurora.
Apaguem-se a lua e as estrelas, o monólogo
do sabiá na varanda, as nervosas
mãos do vento a sacudir os vitrais da abóbada.
Levem tudo: quadros, taças, santos barrocos, oratórios,
todo esse insólito e cediço espólio.
Bebeu-se aqui o álcool da vida até o último gole.
Não se esqueçam da arca que ficou no sótão.
Desliguem a luz (e o gás, senão tudo explode).
Que fique o resto como esmola. Paguem um óbolo
ao barqueiro que nos leva rio afora.
               Estamos indo embora.

Ferreira Gullar – Fim

Como não havia ninguém
na casa aquela
terça-feira tudo
é suposição: teria
tomado seu costumeiro
banho
de imersão por volta
de meio-dia e trinta e
de cabelos ainda
úmidos
deitou-se na cama para
descansar não
para morrer
   queria
dormir um pouco
apenas isso e
assim não lhe
terá passado pela
mente – até
aquele último segundo
antes de
se apagar no
silêncio – que
jamais voltaria
ao ruidoso mundo
da vida

Joan Margarit – Alguém

Tinha que salvar-me com seus olhos azuis
cravados ainda
em uma lembrança da adolescência,
a estranha fase de precipitar-se,
sem queixa nenhuma, ao fundo do abismo.
Do bonde, a fugaz imagem
de uma garota em uma varanda,
e o número de um telefone anotado
como uma cicatriz na memória.
Nunca estive a seu lado, inventava
seu transparente corpo em um espelho
onde depois me vi com sarcasmo
e também com profética tristeza.
Não me salvou quando chegou a adolescência
nem quando aos cinquenta, na era rubra,
outros olhos azuis me miraram.
Era a mesma mulher: nada desaparece
da urdidura de sonhos que recordam.
Talvez já fosse muito tarde, ou falso,
ou eu estivesse atrás – já – do espelho.
Ou, talvez, ser salvo seja tão só
agarrar-se às rochas sem jamais
comprazer-se em fitar o abismo,
e apesar disso poder ver um véu
de tristeza em lugares onde seus olhos
ainda desafiam o esquecimento.

Trad.: Nelson Santander

Joan Margarit – Quién

Tenía que salvarme con sus ojos azules
clavados todavía
en un recuerdo de la adolescencia,
la extraña edad para precipitarse,
sin queja alguna, al fondo del abismo.
Desde el tranvía, la fugaz imagen
de una muchacha en el balcón,
y el número marcado de un teléfono
como una cicatriz en la memoria.
Nunca estuve a su lado, me inventaba
su transparente cuerpo en un espejo
donde después me he visto con sarcasmo
y también con profética tristeza.
No me salvó al llegar la adolescencia
ni cuando a los cincuenta, en la edad roja,
otros ojos azules me miraron.
Fue la misma mujer: nada desaparece
de la urdimbre de sueños que recuerda.
Quizá ya era muy tarde, o era falso,
o yo estaba detrás —ya— del espejo.
O, quizá, ser salvado es tan sólo
aferrarse a las rocas sin jamás
complacerse en mirar hacia el abismo,
y a pesar de ello poder ver un velo
de tristeza en lugares donde aún
sus ojos desafían al olvido.

Wislawa Szymborska – Fotografia de 11 de setembro

Saltaram dos andares em chamas —
um, dois, alguns mais
acima, abaixo.

A fotografia os susteve em vida
e agora os mantém
sobre a terra em direção à terra.

Cada um ainda é um todo
com um rosto próprio
e o sangue bem escondido.

Há bastante tempo
para os cabelos se soltarem
e dos bolsos caírem
chaves, dinheiro trocado.

Ainda estão ao alcance do ar,
nos limites dos lugares
que acabaram de se abrir.

Só posso fazer duas coisas por eles —
descrever esse voo
e não acrescentar a última sentença.

Trad.: Regina Przybycien

Fotografia z 11 września

Skoczyli z płonących pięter w dół
– jeden, dwóch, jeszcze kilku
wyżej, niżej.
Fotografia powstrzymała ich przy życiu,
a teraz przechowuje
nad ziemią ku ziemi.
Każdy to jeszcze całość
z osobistą twarzą
i krwią dobrze ukrytą.
Jest dosyć czasu,
żeby rozwiały się włosy,
a z kieszeni wypadły
klucze, drobne pieniądze.
Są ciągle jeszcze w zasięgu powietrza,
w obrębie miejsc,
które się właśnie otwarły.
Tylko dwie rzeczy mogę dla nich zrobić
– opisać ten lot
i nie dodawać ostatniego zdania.

Delmore Schwartz – All night, all night

I have been one acquainted whit the night – Robert Frost

Viajou de trem a noite inteira, sob uma luz agoureira. Uma ave
Voou em paralelo com singular determinação. Em ações e anseios de
devaneios
Os demais passageiros curvados, deitados, lendo, dormindo,
Esperando, e esperando um local para se deslocar,
Para a correta rota da segurança ou o rotor da contingência.

Olhou além, para a noite, incapaz de distinguir
As luzes das cidades passageiras das mortiças luzes
Dormentes do teto. E a ave voou em paralelo e em silêncio
Enquanto o trem disparou a linha reta de seus apitos,
Avançando nos tensos trilhos, perfurando o vazio, familiar –

O centro enfadado desta visão e condição olhou e
correu
O olhar através das páginas polidas do periódico (visando
O visível e o invisível) e seu olhar caiu no algar
Da grande escuridão sob a reluzente revista,
E ele era somente um entre oito milhões de lentes e
valentes.

E, enquanto isso, sob o seu vazio sorriso, o bumbo agitado
Da alongada e determinada passagem por ele passou,
Imitado e ecoado por seu corpo. E, então, a composição,
Como a violenta monção, começou a partir e a fugir –
A noite silente e indiferente, pressionando e impressionando
As frontes dos pacientes em uma tensa imagem
Do motor apressado, prosseguiu por um facho de luz
Perfurando as trevas, mudando e transformando o silêncio
Em uma violência de espuma, som, fumaça e sucessão.

Uma entediada criança foi buscar um copo d’água
E esmagou o copo porque a água também era
Sem graça, a mera refrega contra o tédio.
Ao retornar, o petiz por detrás olhou
O que um homem estava lendo até irrita-lo.
Uma volumosa mulher bocejou e viu o líquido verter
E vazar o velo de muitos jantares.

E a ave voou em paralelo e em paralelo voavam
Os postes crucificados de fios telefônicos, quais lápis pretos,
Em intervalos regulares, poste após poste,
Triplamente cruzados, floridos, anônimas árvores.

E então o pássaro clamou como que para todos nós:

Oh, suas vidas, suas vidas solitárias,
O que vocês fizeram com elas,
O que fizeram com o sublime dom da consciência?
O que vocês farão com suas vidas antes da punhalada
 mortal?
Respondam de maneira permanente e pertinente!

De minha parte, senti em meu peito como quem cai,
Cai de paraquedas, cai sem parar, e sente o vasto
Rabisco do abismo sugando-o mais e mais
Um palhaço em queda infinitamente impotente e horrorizado:

É assim que a noite passa, esta
é a interminável viagem noturna para o famoso imperscrutável
abismo.
(1960)

Trad.: Nelson Santander

All night, all night

Rode in the train all night, in the sick light. A bird
Flew parallel with a singular will. In daydream’s moods and
attitudes
The other passengers slumped, dozed, slept, read,
Waiting, and waiting for place to be displaced
On the exact track of safety or the rack of accident.

Looked out at the night, unable to distinguish
Lights in the towns of passage from the yellow lights
Numb on the ceiling. And the bird flew parallel and still
As the train shot forth the straight line of its whistle,
Forward on the taut tracks, piercing empty, familiar –

The bored center of this vision and condition looked and
looked
Down through the slick pages of the magazine (seeking
The seen and the unseen) and his gaze fell down the well
Of the great darkness under the slick glitter,
And he was only one among eight million riders and
readers.

And all the while under his empty smile the shaking drum
Of the long determined passage passed through him
By his body mimicked and echoed. And then the train
Like a suddenly storming rain, began to rush and thresh –
The silent or passive night, pressing and impressing
The patients’ foreheads with a tightening-like image
Of the rushing engine proceeded by a shaft of light
Piercing the dark, changing and transforming the silence
Into a violence of foam, sound, smoke and succession.

A bored child went to get a cup of water,
And crushed the cup because the water too was
Boring and merely boredom’s struggle.
The child, returning, looked over the shoulder
Of a man reading until he annoyed the shoulder.
A fat woman yawned and felt the liquid drops
Drip down the fleece of many dinners.

And the bird flew parallel and parallel flew
The black pencil lines of telephone posts, crucified,
At regular intervals, post after post
Of thrice crossed, blue-belled, anonymous trees.

And then the bird cried as if to all of us:

O your life, your lonely life
What have you ever done with it,
And done with the great gift of consciousness?
What will you ever do with your life before death’s
 knife
Provides the answer ultimate and appropriate!

As I for my part felt in my heart as one who falls,
Falls in a parachute, falls endlessly, and feel the vast
Draft of the abyss sucking him down and down,
An endlessly helplessly falling and appalled clown:

This is the way that night passes by, this
Is the overnight endless trip to the famous unfathomable
abyss.
(1960)

Armando Freitas Filho – Autobiografia até agora

No Cineac
antes da descoberta do Brasil
com a mãe a tiracolo
vendo o Arqueiro Verde
(um Robin Hood de segunda mão)
disparando suas flechas morais.
Depois, punhetas, colégios, lápis
a primeira caneta, poesia, pin-ups
futebol, jogo de botão e puteiros:
a sessão começa quando você chega.
Agora, no escuro, meio Zé Carioca
trocando de musa como quem
troca de camisa, não indo mais à missa
aflito, antes que o filme acabe.