Michael Krüger – À primeira vista

Na verdade, nada mudou:
o castanheiro diante da casa, martirizado pela hera,
as ameixeiras sobre o seu tapete azul,
o doce perfume da infância e da decadência.
Do vale, rugem os caminhões,
e a sombra se apressa em redor da casa
em sentido anti-horário, perscrutando a dor.
Até o poço ainda está lá como um poema.
Quando olhei para dentro, saudou-me de baixo, do fundo,
um rosto enrugado por sapos.
Sua boca estava aberta, como se ele quisesse gritar.
Só as trilhas para o povoado aumentaram
e uma conduz diretamente ao meu coração.
Mas, de resto, nada mudou.

Trad.: Nelson Santander

Auf den ersten Blick

Eigentlich hat sich nichts verändert:
die Kastanie vor dem Haus, vom Efeu gemartert,
die Pflaumenbäume auf ihrem blauen Teppich,
der süße Geruch der Kindheit und des Verfalls.
Vom Tal herauf dröhnen die Laster,
und der Schatten läuft eilig ums Haus,
gegen die Zeiger der Uhr, und prüft den Kummer.
Sogar der Brunnen steht noch wie ein Gedicht.
Als ich hineinsah, grüßte von unten, von Grund,
ein Gesicht, von Fröschen in Falten gelegt.
Sein Mund stand weit offen, als wollte er schreiren.
Nur die Wege ums Dorf haben sich vermehrt,
und einer führt geradenwegs durch mein Herz.
Aber sonst hat sich nichts verändert.

Ferreira Gullar – Thereza

Sem apelo
    no vórtice do
dia no
abandono do chão
na lâmina da
luz feroz

   fora da vida

desfaz-se agora
a minha doída
desavinda companheira

Eugénio de Andrade – Canção Breve

Tudo me prende à terra onde me dei:
o rio subitamente adolescente,
a luz tropeçando nas esquinas,
as areias onde ardi impaciente.

Tudo me prende do mesmo triste amor
que há em saber que a vida pouco dura,
e nela ponho a esperança ou o calor
de uns dedos com restos de ternura.

Dizem que há outros céus e outras luas
e outros olhos densos de alegria,
mas eu sou destas casas, destas ruas,
deste amor a escorrer melancolia.

Joan Margarit – De repente está claro

De repente está claro. O amor é a vitória
que irá me destruir. Como me gangrena
o coração a solidão, como me destroça
nas janelas do crepúsculo a hiena
desolada e exangue. Na era rubra
só o amor nos livra da gélida
gruta do tempo. Conheci
a glória de estar desesperado e a miséria
do bem estar que oferece a derrota.
Entre ruínas de lágrimas deixo-lhes
cartas e versos, sombras que dirão
o quanto eu amei. E talvez,
no âmago mais indefeso de uma mulher,
solitário, serei eternamente amante.

Trad.: Nelson Santander

Joan Margarit – De pronto está claro

De pronto está claro. El amor es la victoria
que me ha de destruir. Cómo me gangrena
el corazón la soledad, cómo me destroza
en los cristales del crepúsculo la hiena
desolada y sangrante. En la edad roja
sólo el amor nos libra de la gélida
cueva del tiempo. Conocí la gloria
de estar desesperado y la miseria
del bienestar que ofrece la derrota.
Entre ruinas de lágrimas os dejo
cartas y versos, sombras que dirán
hasta dónde he amado. Y tal vez,
en lo más indefenso dentro de una mujer,
solitario, seré por siempre amante.

Manuel António Pina – As escadas

Toma, este é o meu corpo, o que sobe as escadas
em direção à tua escuridão, deixando-me,
ou a alguma coisa menos tangível,
no seu lugar.

Também elas envelheceram, as escadas,
também, como eu, desabitadas.
Anoiteceu, ao longe afastam-se passos, provavelmente os meus,
e, à nossa volta, os nossos corpos desvanecem-se como terras estrangeiras.

Francisco Brines – Deitado

Chove, e amo.
Pulsam, em alongada sombra,
duas sombras vivas, sondam o nada,
e nele se alimentam.
           São farrapos de luz,
e à sua luz se veem olhos, músculos, cabelos,
enquanto a sombra se extingue em mais sombra,
e o repouso nos lençóis
das fúrias do corpo
é a gratidão de quem há de morrer,
e sem pedir por mais vida, a vida o transborda
até negar a morte miserável,
a ferrugem dos corpos ainda vivos
e as sombras já ocas dos mortos.

Trad.: Nelson Santander

Tendido

LLueve, y amo.
Jadean, en extendida sombra,
dos sombras vivas, hozan la nada,
y en ella se alimentan.
           Son jirones de luz,
y a su luz se ven ojos, muslos, cabellos,
mientras la sombra se extingue hacia más sombra,
y el reposo en las sábanas
de las furias del cuerpo
es el agradecimiento de quien ha de morir,
y sin pedir la vida, la vida le desborda
hasta negar la muerte miserable,
la herrumbre de los cuerpos aún vivos
y las sombras ya huecas de los muertos.

Jaime Gil de Biedma – Valsa de Aniversário

Não há nada tão doce como um quarto
para dois (quando já não nos amamos tanto)
fora da cidade, em um hotel tranquilo,
e casais duvidosos e alguma criança com caxumba,

não fosse esta ligeira sensação
de irrealidade. Algo como o verão
na casa de meus pais, há tempos,
como viajar de trem à noite. Chamo-te

para dizer que não digo nada
que tu já não saibas, ou se precisar
para beijar-te vagamente
os mesmos lábios.

Deixaste a varanda.
O quarto escureceu
enquanto nos olhamos ternamente, incomodados
de não sentir o peso dos anos.

Tudo continua igual, parece
que não foi ontem. E este gosto nostálgico
que os silêncios colocam na boca
possivelmente levam a nos equivocarmos

sobre nossos sentimentos. Mas não
sem alguma reserva, porque por baixo
algo puxa com mais força e é (para dize-lo
talvez de um modo menos inexato)

difícil lembrar que nos amamos,
senão com alguma imprecisão, e o sábado,
que é hoje, está tão perto
de ontem no último minuto e de depois de

amanhã
de manhã.

Trad.: Nelson Santander

Vals de Aniversario

Nada hay tan dulce como una habitación
para dos (cuando ya no nos queremos demasiado)
fuera de la ciudad, en un hotel tranquilo,
y parejas dudosas y algún niño con ganglios,

si no es esta ligera sensación
de irrealidad. Algo como el verano
en casa de mis padres, hace tiempo,
como viajes en tren por la noche. Te llamo

para decir que no te digo nada
que tú ya no conozcas, o si acaso
para besarte vagamente
los mismos labios.

Has dejado el balcón.
Ha oscurecido el cuarto
mientras que nos miramos tiernamente,
incómodos de no sentir el peso de tres años.

Todo es igual, parece
que no fue ayer. Y este sabor nostálgico,
que los silencios ponen en la boca,
posiblemente induce a equivocarnos

en nuestros sentimientos. Pero no
sin alguna reserva, porque por debajo
algo tira más fuerte y es (para decirlo
quizá de un modo menos inexacto)

difícil recordar que nos queremos,
si no es con cierta imprecisión, y el sábado,
que es hoy, queda tan cerca
de ayer a última hora y de pasado

mañana
por la mañana

Vasco Miranda – de “Invenção da Manhã”

          20

Olha Jorge quando vier a morte
E virá cedo
“Não deixes fechar-me os olhos”
Eflorescências salitrosas me rebentarão das órbitas
Para queimar as mãos que fechar-mos queiram
– Não pode a luz negar-se a quem bêbado dela
Inventou em cada dia uma madrugada
E eis tudo quanto deixo a quem me herde
Não Jorge não deixes fechar-me os olhos
Não deixes roubar-me a luz que em vida
Neles sempre tive
Estendido no caixão sereno e impoluto
Irei de olhos abertos
Porque eu quero e sei que hei-de morrer
Como quem vive.

     1956

Joseph Stroud – A mais difícil tradução do amor

Após cinco anos de casamento
ele achou que seu coração finalmente havia traduzido o matrimônio.
Mas foi como aquela noite no Festival de Filmes Estrangeiros
quando, quase na metade, o filme de repente
mudou de legendado para dublado
& por um instante ele achou que entendia romeno.

Trad.: Nelson Santander

Love’s More Difficult Translation

About five years into the marriage
he thought his heart had finally translated it.
But it was like that night at the Foreign Film Festival
halfway through a movie when suddenly
it switched from subtitles to dubbed English
& for an instant he thought he understood Romanian.

José Agostinho Baptista – É a prata da minha amada

É a prata da minha amada.
Dir-lhe-ei docemente adeus,
e que não arranque os espinhos da primeira rosa,
subindo pela vida.
E quando eu caminhar pelo vale da sombra,
ela descerá ao pequeno porto, descalçando as sandálias,
mergulhando no mar,
repetindo os nomes de todos os que partiram,
de todos os que a amaram,
hesitando à entrada da taberna,
vendo o meu lugar vazio, o violino sobre a mesa, um
silêncio maior que a lentidão das praias,
e pensará em tudo, em cada som, em cada lágrima, em
nada.
Ela voltará as costas.
Nunca fomos deste mundo, dir-lhe-ei por fim, ao fechar
a última porta.