Que tristeza tão inútil essas mãos
que nem sequer são flores
que se dêem:
abertas são apenas abandono,
fechadas são pálpebras imensas
carregadas de sono.
Arquivos mensais: setembro 2018
João Cabral de Melo Neto – de “Os Três Mal Amados”
(…)
Joaquim:
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
(…)
Rui Pires Cabral – «He loved beauty that looked kind of destroyed»
Gostava dessa espécie de beleza
que podemos surpreender a cada passo,
desvelada pelo acaso numa esquina
de arrabalde; a beleza de uma casa devoluta
que foi toda a infância de alguém,
com visitas ao domingo e tardes no quintal
depois da escola; a beleza crepuscular
de alguns rostos num retrato de família
a preto e branco, ou a de certos hotéis
que conheceram há muito os seus dias de fulgor
e foram perdendo estrelas; a beleza condenada
que nos toma de repente, como um verso
ou o desejo, como um copo que se parte
e dispersa no soalho a frágil luz de um instante.
Gostava de tudo isso que o deixava muito a sós
consigo mesmo, essa espécie de beleza arruinada
onde a vida encontra o espelho mais fiel.
Nuno Júdice – Como Aves, Cuja Passagem
Como sombras passaram entre nós,
como sombras. Uma vez perante alguns amigos
e desconhecidos, afirmei conhecê-los e citei
os seus nomes. Mas o que não correspondia
a um acto heroico, nada significava
hoje, mesmo entre amigos e desconhecidos.
Só se eu próprio
me tornar uma sombra, e também eu passar
a uma outra vida. Durante algum tempo
alguém falará de mim dizendo “conheci-o”,
ou “há tanto tempo falei com ele”. Mas
em breve outros se tornarão sombras,
e depois outros, até que o meu gesto
se confunda com esses, e todos por fim
se dissipem na obscuridade do tempo
passado.
Wendell Berry – A Paz das Coisas Selvagens
Quando as dores do mundo crescem em mim
e eu desperto na noite a um mínimo ruído
temendo pelo que poderá ser de minha vida e das de meus filhos,
eu saio e me deito onde o pato carolino
descansa em sua beleza na água, e a garça se alimenta.
Eu penetro na paz das coisas selvagens
que não tributa suas vidas com premeditações
de tristeza. Eu me coloco na presença da água parada.
E eu sinto acima de mim as estrelas cegas
esperando com suas luzes. Por um tempo
eu descanso na graça do mundo, e me sinto livre.
Trad.: Nelson Santander
The Peace of the Wild Things
When despair for the world grows in me
and I wake in the night at the least sound
in fear of what my life and my children’s lives may be,
I go and lie down where the wood drake
rests in his beauty on the water, and the great heron feeds.
I come into the peace of wild things
who do not tax their lives with forethought
of grief. I come into the presence of still water.
And I feel above me the day-blind stars
waiting with their light. For a time
I rest in the grace of the world, and am free.
Hilda Hilst : Dez chamamentos ao amigo
I
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo.
Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há um tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.
II
Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.
E eu te direi que o nosso tempo é agora.
Esplêndida altivez, vasta ventura
Porque é mais vasto o sonho que elabora
Há tanto tempo sua própria tessitura.
Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza.
E transitória se tu me repensas.
III
Se refazer o tempo, a mim, me fosse dado
Faria do meu rosto de parábola
Rede de mel, ofício de magia
E naquela encantada livraria
Onde os raros amigos me sorriam
Onde a meus olhos eras torre e trigo
Meu todo corajoso de Poesia
Te tomava. Aventurança, amigo,
Tão extremada e larga
E amavio contente o amor teria sido.
IV
Minha medida? Amor.
E tua boca na minha
Imerecida.
Minha vergonha? O verso
Ardente. E o meu rosto
Reverso de quem sonha.
Meu chamamento? Sagitário
Ao meu lado
Enlaçado ao Touro.
Minha riqueza? Procura
Obstinada, tua presença
Em tudo: julho, agosto
Zodíaco antevisto, página
Ilustrada de revista
Editorial, jornal
Teia cindida.
Em cada canto da Casa
Evidência veemente
Do teu rosto.
V
Nós dois passamos. E os amigos
E toda minha seiva, meu suplício
De jamais te ver, teu desamor também
Há de passar. Sou apenas poeta
E tu, lúcido, fazedor da palavra,
Inconsentido, nítido
Nós dois passamos porque assim é sempre.
E singular e raro este tempo inventivo
Circundando a palavra. Trevo escuro
Desmemoriado, coincidido e ardente
No meu tempo de vida tão maduro.
VI
Foi Julho sim. E nunca mais esqueço.
O ouro em mim, a palavra
Irisada na minha boca
A urgência de me dizer em amor
Tatuada de memória e confidência.
Setembro em enorme silêncio
Distancia meu rosto. Te pergunto:
De Julho em mim ainda te lembras?
Disseram-me os amigos que Saturno
Se refaz este ano. E é tigre
E é verdugo. E que os amantes
Pensativos, glaciais
Ficarão surdos ao canto comovido.
E em sendo assim, amor,
De que me adianta a mim, te dizer mais?
VII
Sorrio quando penso
Em que lugar da sala
Guardarás o meu verso.
Distanciado
Dos teus livros políticos?
Na primeira gaveta
Mais próxima à janela?
Tu sorris quando lês
Ou te cansas de ver
Tamanha perdição
Amorável centelha
No meu rosto maduro?
E te pareço bela
Ou apenas te pareço
Mais poeta talvez
E menos séria?
O que pensa o homem
Do poeta? Que não há verdade
Na minha embriaguez
E que me preferes
Amiga mais pacífica
E menos aventura?
Que é de todo impossível
Guardar na tua sala
Vestígio passional
Da minha linguagem?
Eu te pareço louca?
Eu te pareço pura?
Eu te pareço moça?
Ou é mesmo verdade
Que nunca me soubeste?
VIII
De luas, desatino e aguaceiro
Todas as noites que não foram tuas.
Amigos e meninos de ternura
Intocado meu rosto-pensamento
Intocado meu corpo e tão mais triste
Sempre à procura do teu corpo exato.
Livra-me de ti. Que eu reconstrua
Meus pequenos amores. A ciência
De me deixar amar
Sem amargura. E que me dêem
Enorme incoerência
De desamar, amando. E te lembrando
– Fazedor de desgosto –
Que eu te esqueça.
IX
Esse poeta em mim sempre morrendo
Se tenta repetir salmodiado:
Como te conhecer, arquiteto do tempo
Como saber de mim, sem te saber?
Algidez do teu gesto, minha cegueira
E o casto incendiado momento
Se ao teu lado me vejo. As tardes
Fiandeiras, as tardes que eu amava,
Matéria de solidão, íntimas, claras
Sofrem a sonolência de umas águas
Como se um barco recusasse sempre
A liquidez. Minhas tardes dilatadas
Sobreexistindo apenas
Porque à noite retomo minha verdade:
teu contorno, teu rosto álgido sim
E por isso, quem sabe, tão amado.
X
Não é apenas um vago, modulado sentimento
O que me faz cantar enormemente
A memória de nós. É mais. É como um sopro
De fogo, é fraterno e leal, é ardoroso
É como se a despedida se fizesse o gozo
De saber
Que há no teu todo e no meu, um espaço
Oloroso, onde não vive o adeus.
Não é apenas vaidade de querer
Que aos cinqüenta
Tua alma e teu corpo se enterneçam
Da graça, da justeza do poema. É mais.
E por isso perdoa todo esse amor de mim
E me perdoa de ti a indiferença.
Tamara Kamenszain – O Eco de Minha Mãe
Não posso narrar.
Que pretérito me serviria
se minha mãe já não se afasta mais de mim?
Exúbere então me detenho
ante um estado de coisas demasiado presente:
ser a descuidada que dela cuida
enquanto outros a negligenciam por mim.
São as pessoas que me restaram
e a gramática se torna um escândalo
quando ela que esqueceu as palavras
ultrapassa seu bebê furioso
com o fim de dizer tudo
embora não se entenda nada.
Trad.: Nelson Santander
El eco de mi madre
No puedo narrar.
¿Qué pretérito me serviría
si mi madre ya no me teje más?
Desmadrada entonces me detengo
ante un estado de cosas demasiado presente:
ser la descuidada que la cuida
mientras otros la descuidan por mí.
Son personas que me sobran
y la gramática se torna un escándalo
cuando ella que olvidó las palabras
adelanta su bebé furioso
con el fin de decirlo todo
aunque no se entienda nada.
Anna Akhmátova – Último Brinde
Bebo ao lar em pedaços,
À minha vida feroz,
À solidão dos abraços
E a ti, num brinde, ergo a voz…
Ao lábio que me traiu,
Aos mortos que nada veem,
Ao mundo, estúpido e vil,
A Deus, por não salvar ninguém.
Trad.: Rubens Figueiredo
Последний тост
Я пью за разоренный дом,
За злую жизнь мою,
За одиночество вдвоем,
И за тебя я пью,—
За ложь меня предавших губ,
За мертвый холод глаз,
За то, что мир жесток и груб,
За то, что Бог не спас.
Rui Lage – EN 314
Ardidas há muito as velas de ignição
que davam centelha ao meu antigo
e primeiro coração.
Agora sou apenas um ponto morto,
sem tração: rolo sem atrito
mas também sem aflição.
A estrada adormece em bosques propícios
a emboscadas, mas já não tenho crenças
que mereçam ser cobiçadas.
E os meus sonhos, até os meus sonhos
me parecem guiados lá do alto por sinais de GPS.
Albano Martins – Haicais
Juncos em movimento.
Os cabelos da água
penteados pelo vento.
*
Num fruto
sazonado é o tempo
que amadurece.
*
Romãs: as últimas
brasas do incêndio
do verão.
*
Maçã – disse a criança.
E era apenas o sol
dependurado nos ramos.
*
Morango. O frágil
Coração da terra
levado à boca.
*
O mel no frasco:
exposto, para consumo,
o suor da abelha.
*
Mais cedo ou mais tarde
o silêncio virá
perguntar por ti.
*
A andorinha faz
a sua casa
no vento.
*
Quando o verão
morre, as amoras
vestem-se de luto.
*
Nem sempre a neve
cai do céu: às vezes
explode numa flor.
*
Um mar azul
pintou de branco
o voo das gaivotas.