Explode
no para-brisa
um
inseto:
vírgula concisa em
hemolinfa gravada.
Mero erro gramatical:
a frase auto-
grafada
pedia um ponto final.
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Nelson Santander – Beijo

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/02/2016
Nelson Santander – Chuva
Nelson Santander – Quatro poemas sobre o tempo
RELIGIO1
o tempo me fascina
o tempo (os ponteiros fascistas)
de horas assassinas
suas facetas, seus lados
cegos
surdos
mudos me atraem
seus mundos
passados/
presentes/
futuros me traem
subtraem
(o tempo perdido
a perda de tempo:
pretextos para a vida
e a morte)
os relógios de hoje são tão
belos
táteis
frágeis
mesmo nas horas mais negras
brilham
glaciais
antiga-
mente, as horas fluíam enferrujadas
sujas
ocas
foscas
opacas
hoje, no ir
e vir elétrico
e silencioso dos pêndulos-dias,
os galos já não mais anunciam a aurora:
com a precisão digital
do sol,
meu coração bate
e observa os anos
que es-
correm, rapidamente
horas
abaixo
05/1988
TEMPO, TEMPO
I
Na lua,
ainda hoje,
é possível,
a olhos divinos
ou mecânicos,
entreverem-se pegadas de botas
num solo devastado e imóvel.
II
Pó isento de pó
cristalizadas em sua imobilidade.
Nem tempo,
nem vento.
Apenas como uma velha fotografia.
III
Mas a eternidade
inexiste.
SINGULARIDADE

LIMIAR
A maior parte de sua existência é mais
sorte do que você gostaria de admitir.
Woody Allen
quase
que
por
acaso
na casa
dos
quarenta
e nove:
já é
quase
o ocaso
- Notas:
Os poemas acima foram escritos em fases distintas da minha vida: Religio e Tempo, Tempo, aos 21 anos; Singularidade, por volta dos 40; e Limiar, como indicado no próprio texto, no dia em que completei 49 anos.
O tempo sempre fez parte das minhas reflexões, ainda que, muitas vezes, de forma inconsciente — como uma sombra persistente que molda não apenas o ritmo da minha existência, mas também o pensamento sobre o que significa ser finito em um universo que parece infinito. Essa presença constante, oscilando entre fascínio e resignação, se revela de modos distintos em cada poema, acompanhando a mudança da minha percepção ao longo dos anos.
Em Religio, escrito na juventude, o tempo emerge como uma entidade mecânica e opressora, personificada no relógio — ou “religio” (palavra latina do qual deriva religião, e que significava originalmente respeito, reverência ou culto a algo divino), trocadilho que tenta fundir o sagrado e o cronológico. O fascínio inicial (“o tempo me fascina”) logo dá lugar à inquietação diante da efemeridade, em imagens de horas “assassinas” e anos que “escorrem/correm” rapidamente em direção à última volta do ponteiro. Com a diagramação fragmentária, com versos e palavras isolados, eu quis criar um fluxo visual que imita o tique-taque de um relógio. O poema presta tributo ao concretismo e neoconcretismo (minha porta de entrada para a poesia), organizando o texto como se escorresse pela página — feito de areia de ampulheta. Curiosamente, a inspiração do poema não veio de especulações metafísicas, mas da troca de um velho despertador de corda, tiquetaqueante, por um silencioso e compacto relógio a pilha. Às vezes, a beleza e o silêncio são aliados da poesia.
Em Tempo, Tempo, também aos 21, a reflexão se expande para o cósmico: as pegadas humanas na Lua — aparentemente eternas — tornam-se metáfora de uma permanência ilusória. São comparadas a uma “velha fotografia”, imóveis e imunes ao tempo ou ao vento, até que o verso final afirma: “a eternidade inexiste”. Aqui, o tempo não é mais pessoal, mas uma força estéril que congela o movimento, revelando um temor implícito diante da insignificância humana no vazio espacial. A estrutura em três blocos pretende emprestar ao texto ritmo de silogismo poético, e o espaço em branco aqui não é apenas pausa, mas vazio físico — ecoando o próprio vácuo lunar.
Singularidade, gestado por volta dos meus 43, é um dos poemas de que mais gosto, dentre os poucos que escrevi. Nele, tempo e espaço se entrelaçam, inspirados na cosmologia: Big Bang, expansão do universo, o nada que contém o tudo. A existência surge reduzida a um “sopro” ou “espasmo” infinitesimal no meio de “tanto tempo / tanto espaço”. É um momento de escala relativística e de aceitação filosófica da brevidade e da insignificância, em que a ansiedade juvenil se transforma em meditação sobre o absurdo — e também a beleza — da vida como “um curto espaço de tempo”. No plano formal, a palavra “expandindo” literalmente se expande pela página, emulando a expansão do espaço-tempo; já “in- / finite- / si- / mal” — que designa uma existência de extrema pequenez, infinitamente pequena; mínima, ínfima; e que, na matemática, é uma quantidade mais próxima de zero do que qualquer número real, mas diferente de zero — se fragmenta para revelar sentidos ocultos: in (palavra inglesa polissêmica que significa, dentre outras coisas, o que vive dentro e dentro) finite (finito ou limitado, em inglês), si (o eu), mal (no contexto do poema, imperfeição, dor ou limite inerente à vida). O branco e o preto participam ativamente da narrativa visual: a página simula tanto uma explosão cósmica quanto um mapa do universo, com o tempo à esquerda, o espaço à direita e, no centro, a existência — minúscula, como um náufrago em mar aberto. É o poema mais explicitamente visual da série e herdeiro direto das vanguardas concretas.
Por fim, Limiar, aos 49, traz o tempo de volta ao plano íntimo, agora filtrado pelo humor e pela ironia. A epígrafe de Woody Allen lembra que a vida é mais obra do acaso do que do controle, e o poema registra, com simplicidade, o instante entre o “quase” e o “ocaso”. Aqui, a angústia inicial se converte em resignação bem-humorada, como se, depois de tanto refletir sobre o tempo, restasse apenas celebrá-lo — mesmo sabendo que ele é finito. ↩︎
Nelson Santander – Impermanência
Se há algo mais fascinante do que locais abandonados, desconheço. Toda vez que, em viagem, me deparo com uma casa desabitada há muito tempo, uma estação de trem em desuso ou o esqueleto do que um dia foi uma fábrica, acabo perdendo (ganhando) algum tempo na contemplação do local, tentando adivinhar quem nele pisou, morou ou trabalhou, por quanto tempo aquele espaço perdurou, que dramas humanos ali se desenrolaram.
Tudo nesses recantos em decomposição é desconcertante e belo.
As imagens que ilustram essa postagem1 demonstram o que quero dizer. A devastação preside, mas não é difícil, com um pouco de imaginação, encontrar detalhes que surpreendem pela beleza, pelo inusitado, pelo poético.
Um velho piano que um dia encantou o mundo com acordes de Chopin, Beethoven, Mozart e que já não emite mais um único som há décadas; a igreja decrépita da qual nem Deus mais se lembra; uma estátua decapitada que jamais será uma Vênus de Milo; a piscina seca que hoje não serve de diversão nem mesmo para rãs; um bar no qual apenas velhos fantasmas trocam amenidades e bebem seus uísques cowboy, sem nunca ficarem bêbados; o cinema que outrora exibiu a queda do império romano, longa jornada noite adentro e nunca fomos tão felizes e que agora assiste impassível o próprio the end; trilhos retos e escadas espiraladas que não levam a lugar nenhum; construções sendo devoradas pela vegetação que escala as paredes como labaredas verdes; a cama de casal que testemunhou um amor indomável como o fogo tornar-se fumaça e gelo e cinzas enfim (o que não tem fim sempre acaba assim, diria Humerto Gessinger).
Mas para muito além de tudo isso, esses lugares nos fazem lembrar principalmente de que madeira, ferro, pano, papel, pedra, gente, tudo, absolutamente tudo se transforma, e encontra a decadência e se converte em pó e acaba. Só uma coisa permanece: a impermanência. Que tudo o que começa não se presta para existir, mas para terminar.
Tenham todos um ótimo final de semana! Ou algo parecido.
(postado originalmente na página pessoal do autor no Facebook)
REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 03/08/2019




















- Imagens retiradas da internet ↩︎
Nelson Santander – Cinema Paradiso e a visita cruel do tempo
Há 30 anos, de forma despretensiosa, o diretor italiano Giuseppe Tornatore presenteava o mundo com aquele que, ao longo dos anos, se tornaria um dos filmes mais queridos da história do cinema: “Cinema Paradiso”.
O vídeo que ilustra este texto é o da famosa cena do mosaico de beijos, a mesma que encerra o filme. Sempre me questionei por que este trecho em particular me comovia tanto, em um filme repleto de passagens inesquecíveis: a cena em que Totó recebe um beijo inesperado de Elena, após ficar dias parado na frente da casa em que ela morava para provar que a amava; o momento da demolição do cinema; o excerto em que Alfredo – o simpático projecionista da cidade – projeta o filme na parede da praça; a cena do funeral de Alfredo.
Todos esses fragmentos – verdadeiros minicontos – são dotados de elevada voltagem emotiva. Contudo, não se comparam à cena final, na qual Totó, agora adulto, cabelos brancos e cineasta de sucesso, assiste à projeção de um filme que recebera das mãos de sua mãe, a pedido do recém-falecido Alfredo. O filme, na verdade, é uma colagem de várias cenas de beijos e algumas com erotismo e nudez, que o pároco da sua cidade natal costumava censurar nas películas antes da exibição no cinema em que Totó, quando criança, trabalhava como assistente de Alfredo.
Mas o que faz essa passagem me comover tanto? Seria o contexto e o momento em que o trecho é inserido (logo após a cena que mostra a demolição do cinema)? Ou o delicado tema musical composto por Ennio Morricone, que acompanha o desenrolar da cena?
Não. Ou melhor, não apenas isso. Esses elementos são cruciais para criar em “Cinema Paradiso” um ambiente emotivo que atinge seu ápice na fatídica cena dos beijos. No entanto, embora embevecido pelas cenas anteriores do filme e hipnotizado pela melodia inspirada de Morricone, o que mais me comove na cena é antes o vislumbre que ela nos proporciona de nossa própria efemeridade. Esteticamente, amor romântico e beleza física são opostos à doença, antônimos da decrepitude, a antítese da morte. Nada representa mais estar vivo do que as cenas que aparecem na tela: mulheres sensuais e beijos eróticos, arrebatadores, delicados, violentos, apaixonados, singelos – todos os tipos de beijos que o amor romântico criou para se expressar. E trocados por casais formados por atores que, quando filmaram essas cenas nos anos 20, 30, 40 e 50, estavam no auge de sua juventude e beleza física.
No entanto, a sensação de transitoriedade que transborda na célebre passagem se acentua ainda mais ao lembrarmos que os atores que aparecem nessas cenas estão todos mortos – Silvana Mangano, Vittorio Gassman, Cary Grant, Rosalind Russell, Jane Russell, Doris Duranti, Georgia Hale, Charlie Chaplin, Olivia de Havilland, Errol Flynn, Rudolph Valentino, Vilma Banky, James Stewart, Donna Reed, Vittorio de Sica, Yvonne Sanson, Anna Magnani, Marcello Mastroianni, Maria Schell, Jean Gabin, June Astor, Gary Cooper, Clark Gable, Joan Crawford, Greta Garbo, John Barrymore, Spencer Tracy, Ingrid Bergman. Todos mortos – alguns há mais de 90 anos. Atores e atrizes que conheceram a fama e a fortuna, que foram os mais desejados de sua época, e cuja beleza e juventude, hoje, não passam de poeira.
As lágrimas que um arrebatado Totó derrama ao assistir o filme são minhas também. Totó chora a saudade de tudo o que viveu e do que perdeu. A mim me emociona testemunhar, impotente, na película que comove o cineasta, a inexorável marcha do tempo.
PS.: um internauta me avisa que Olivia de Havilland não está morta; tem 102 anos e mora atualmente em Paris. Quando escrevi esse texto, eu podia jurar que havia lido em algum lugar a notícia de que ela falecera há alguns anos. Fica aí uma lição: depois dos 50, jamais confie em sua memória, já que o tempo – a matéria principal do meu texto – também faz estragos nesse campo. De toda forma, a ideia geral que eu quis transmitir permanece intacta – a decrepitude e a senilidade são as características principais da velhice profunda, e só com muita boa vontade dá para dizer que está vivendo quem chegou tão longe na corrida da existência.
PS2.: REPUBLICAÇÃO: o texto foi publicado na página, originalmente, em 23/12/2018. Portanto, onde está escrito “Há 30 anos”, no texto acima, leia-se: “Há 35 anos.”
PS3.: Olivia de Havilland, que ainda era viva quando escrevi o texto original, faleceu em 26 de julho de 2020, aos 104 anos de idade. O gigante Ennio Morricone havia morrido poucos dias antes – em 06 de julho daquele mesmo ano, com 91. E como o tempo é o grande nivelador de tudo, nesse meio tempo morreu também, em 21 de abril de 2022, aos 80, Jacques Perrin, o grande ator que interpreta o Totó adulto. Eu e você que me lê neste momento ainda podemos nos dar o luxo de ver esse e outros filmes e fazer outras coisas, boas e ruins. Mas o tempo está passando aqui também. “Diga-me, o que você planeja fazer / com sua única selvagem e preciosa vida?” (Mary Oliver). Tic tac tic tac…
Nelson Santander – Gene Tierney
Nem Marilyn, nem Greta, nem Ava, muito menos Angelina, Sharon, Julia ou Charlize. Para mim, o rosto mais bonito com que Hollywood nos presenteou em todos os tempos é o dessa beldade das fotos que acompanham esse texto: Gene Tierney, nascida no dia de hoje, em 1920.
Em 1944, ela estreou seu filme mais famoso, o belíssimo “Laura” – uma das obras que ajudou a consolidar no cinema o subgênero de filmes policiais conhecido como film noir.
Falando em beleza, a música tema de “Laura”, com o mesmo título, é também uma das melodias mais marcantes do cinema. Escrita por David Raksin especialmente para a película, nos anos que se seguiram “Laura” foi redescoberta por músicos de jazz e acabou se tornando um standard desse estilo musical, com mais de 400 regravações(!)
Gene se foi em 1991, aos 70. Sua beleza já se havia apagado há décadas – culpa em parte de uma depressão devastadora que lhe tirou o viço e a vontade no auge da carreira, deixando-a incapacitada por anos, e do tempo inexorável, que de tudo nos despoja.
“Laura” – o filme e a canção – permanecem.
Permanece também o meu sentimento de encanto diante dessa três belezas conjugadas.
O poeta John Keats tinha razão:
A beleza é a verdade, a verdade é a beleza
— É tudo o que há para saber, e nada mais.
REPUBLICAÇÃO: texto publicado originalmente na página em 19/11/2018







Nelson Santander – Dois capítulos perdidos de Memórias Póstumas de Brás Cubas
Capítulo ***
ESCOBAR
À entrada do Teatro São Pedro, deparei-me com Escobar, um negociante no ramo cafeeiro, apresentado a mim pelo meu cunhado Cotrim, com quem mantinha relações mercantis. Natural de Curitiba e ex-seminarista, Escobar começava a prosperar na capital, após um início modesto de carreira que fora impulsionado pela ajuda financeira aviada pela viúva do ex-Deputado Pedro de Albuquerque Santiago. Não faças mau juízo da viúva, caro leitor; o próprio Escobar me confidenciou que ela havia cedido o capital a título de empréstimo, exclusivamente por ingerência de seu filho único, Bentinho, que vinha de ser o melhor amigo de Escobar desde os tempos do seminário. Era de conhecimento geral que Escobar possuía uma certa habilidade ou vocação para administrar seus próprios recursos. E os dos outros também. Dizia-se no Andaraí que era dado a aventuras amorosas e que frequentava a casa de Bentinho e sua esposa Capitolina com muita frequência e em horários pouco comuns.
– Escobar, quanto tempo!
– Brás, que satisfação em revê-lo! Estava mesmo precisando falar com você.
Enquanto falava, Escobar me levou para um canto reservado sob a marquise do teatro, quase na esquina. Ele parecia deveras animado, o que me causou estranheza, pois sempre o tivera por reservado e pouco afeito ao alarde.
– Ouvi dizer que você alugou uma casa na Gamboa, perguntou.
Tive um sobressalto. Então já se comentava na cidade acerca do lugar que eu reservara para meus encontros com Virgília? Se Escobar estava sabendo, era possível que a história também já tivesse chegado aos ouvidos do Lobo Neves. Depois do episódio da carta anônima, Virgília me disse que o marido andava muito desconfiado. Será que ele já tinha ouvido alguma coisa sobre a Gamboa?
– Na verdade, a casa não me pertence, respondi; é da dona Plácida, uma senhora que foi agregada na casa de uma velha amiga. Eu apenas fiz um pequeno empréstimo e subscrevi algumas promissórias para que a pobre pudesse dar a entrada.
– Sei, respondeu ele com um meio sorriso; estou eu também à procura de uma casa como essa para acomodar a criada de uma amiga…
As palavras meticulosamente selecionadas e o olhar malicioso com que foram ditas deixaram pouca margem para dúvida: Escobar procurava estabelecer aquela espécie de relação de cumplicidade que às vezes há entre dois homens que se encontram na mesma situação de ilicitude matrimonial. Eu não tinha a menor intenção de manter tal nível de vínculo com aquele sujeito. Não confiava nele. Um homem que se prestava ao papel de comborço do melhor amigo não era alguém com quem se pudesse compartilhar segredos. Para mim, Escobar tinha o caráter de quem seria capaz de enviar um bilhete anônimo ao Lobo Neves apenas para ver o teatro em chamas.
– Dona Plácida tratou pessoalmente dos pormenores do negócio, repliquei secamente, iniciando meu caminho rumo à entrada do teatro.
– Que pena, disse ele, olhando divertido para mim enquanto me acompanhava; tenho uma certa urgência em encontrar algo. A criada que quero ajudar não é casada e está no início de uma gravidez. Quero acomodá-la antes que o estado dela se dê a mostrar. Minha amiga não deseja escândalos.
Então era verdade! Não havia criada alguma. Corria o boato de que dona Capitolina estava grávida. E que Bentinho não era o pai… Não sabia o que pensar disso. Embora eu também mantivesse um consórcio amoroso com uma mulher casada, começava a desenvolver, sem entender bem por que, um sentimento desconfortável de aversão por Escobar. Não conseguia precisar a causa exata daquela sensação. A princípio, pensei que minhas fidúcias decorriam de um desejo próprio por uma espécie de reserva de mercado no ramo dos amores ilícitos. Logo acudi que tal vaidade era uma impossibilidade: provavelmente havia centenas de homens na corte em situação semelhante à minha. Rapidamente compreendi que meu asco por Escobar decorria, na verdade, de um certo ciúme projetivo em relação à situação dos homens traídos em geral. Com efeito, o leitor pode não acreditar, mas às vezes eu fazia um exercício mental de projeção, colocando-me no lugar do Lobo Neves – embora raramente e despido de remorso. E, conquanto não me identificasse em nada com o Bentinho – um sujeito fechado, mal-humorado e desconfiado, com fama de sensível – o que acontecia com ele não me dava nenhuma satisfação particular. Ademais, Escobar se me apresentava como um reflexo mais limitado e menos pretensioso de mim mesmo – uma imagem que não parecia nem um pouco agradável.
– Preciso adentrar, a peça certamente já se iniciou, disse eu, impaciente; pedirei a Dona Plácida que pergunte nas redondezas se alguém sabe de alguma casa para vender ou alugar.
Ele pareceu se lembrar de algo. Contou-me então que estava a caminho da casa de um amigo para discutir um interdito proibitório – presumi logo que o amigo fosse o Bentinho. Antes de partir, pediu-me para manter discrição em relação às suas intenções com a casa, “para evitar maledicências desnecessárias”. Redargui que não se preocupasse.
Ele se despediu e estava prestes a partir, mas se voltou novamente para mim:
– Esquecia-me de contar-lhe; outro dia, em São Cristóvão, encontrei com uma amiga em comum, Virgília…
Olhei-o desconfiado. Ele continuou:
– Ela ia triste, parece que o marido havia sido forçado a desistir da nomeação para presidente de província. Ela me disse que você seria Secretário, é verdade?
– Ainda estava avaliando a conveniência…
– Tomamos um café, continuou ele. Ela é uma companhia muito agradável. E que mulher espetacular! Que magníficos braços ela tem! Mas desconfio de algo…
– Do que suspeita?
– Acredito que ela não é feliz no casamento, respondeu. Vendo meu olhar desconfiado ele continuou: Como eu sei? Bem, você sabe como as mulheres são, elas geralmente evitam abordar certos assuntos, especialmente com homens casados. No entanto, naquele dia no café, Virgília estava especialmente eloquente.
Chegamos a uma das portas de entrada e paramos por um momento. Escobar trazia no rosto uma expressão divertida e gaiata. Segurava levemente meu braço para impedir que eu fugisse.
– Sabe, ela até me confessou algo bastante indiscreto… – disse ele.
– Sim?, acudi eu, já alarmado.
– Disse-me que não tinha um casamento satisfatório, foi sua resposta. Confesso que não me incomodaria em ajuda-la com alguns dos problemas dela…
Tenta imaginar tu, leitor, o pasmo que experimentei! Não era para mim nenhuma novidade a indiscrição e lascívia do Escobar. Mas Virgília confessando insatisfações matrimoniais a um homem conhecido por sua infidelidade à esposa e ao melhor amigo? Ela sequer havia-me dito que tinha se encontrado com Escobar. Sobre o que mais teriam conversado os dois? Teria sido ela a revelar-lhe sobre a Gamboa? As garras do ciúme enterraram-se-me no coração; sentia-me uma espécie de Lobo Neves de véspera. Súbito, me ocorreu o óbvio: se ela trai o marido por que não trairia também o amante?
– Se eu fosse você, não me metia com ela, respondi com aspereza; o marido tem fama de valente e já me confessou que não hesitaria em atirar em quem se aproximasse da esposa, a quem ele idolatra.
Escobar sorriu levemente. Aquele esgar malicioso denotava que ele sabia de tudo: da traição de Virgília e de minha posição privilegiada nesse evento doméstico. De minhas inseguranças em relação ao nosso relacionamento. E de que tudo o que eu podia fazer era inventar essa mentira disparatada sobre o Lobo Neves – que apenas no nome carregava vagas evocações de ferocidade.
Não sei se explico o ódio que senti contra Escobar naquele momento. Desejei que ele se afogasse na praia do Flamengo, onde costumava nadar quase todos os dias, mesmo com o mar bravio.
– Vou levar isso em consideração, respondeu ele, ainda sorrindo daquele jeito velhaco – e se despediu novamente.
Capítulo ****
UM CUBAS! (II)
Permaneci à porta do teatro, sem ânimo para entrar mas com nenhum desejo de partir. Rememorava a conversa que tivera com Virgília naquela tarde, quando ela me confidenciara acerca da carta anônima que o marido recebera dias antes, alertando-o contra mim. Lembrei-me do gesto de recuo que ela fez quando, à saída, pousei-lhe um beijo à testa. Era evidente que já se cansara de mim. Pensei também no Bentinho, destinado a criar como seu, sem jamais suspeitar, o filho que, a se dar crédito ao que dizia o vulgo, o amigo gerara em sua esposa. Um amontoado de sentimentos mal-costurados revolviam em mim. Ciúme, desesperança, raiva e autocomiseração compunham um todo indigesto que me mantinha inerte à porta do teatro.
Enquanto mergulhava em tais pensamentos, avistei, num vislumbre, através da porta aberta, Nhá-loló, acompanhada de seu pai, o Damasceno. Lembrou-me o dia em que a conheci, naquele jantar em casa de Sabina (capítulo XCIII), de como seus olhos permaneceram fixos em mim durante toda a noite. Próximos a eles, vi também um deputado conhecido ao lado da esposa, filha do ministro da Justiça. Estavam rodeados por um pequeno séquito de sabujos (Damasceno era um deles). A imagem dos rapapés suscitou em mim a nostalgia daquele velho desvanecimento que me acompanhou até o fim e espertou novamente a paixão pela notoriedade que, em última instância, acabaria por me matar.
Senti meu ânimo revigorado e até me esqueci por um instante de Virgília quando, enfim, decidi ingressar no teatro. Quais eram, afinal, meus reais sentimentos por ela naquela época? Ainda a amava? Mesmo hoje, aqui na terceira margem do rio, não saberia dizê-lo. Contudo, a maneira como meu ânimo se elevou assim que vislumbrei Nhá-loló sugeria, ao menos, que minha atenção já não se depositava unicamente em Virgília.
Por que, então, as insinuações de Escobar haviam me perturbado tão profundamente? Obviamente, como homem, não gostava de pensar na ideia de ser derrotado na disputa pelo amor de uma mulher, sobretudo porque não poderia recorrer a soluções drásticas – como desafiar o peralta para um duelo – uma vez que a mulher em questão não me pertencia. O amor-próprio, em tais momentos, inflama-se de tal modo que o apego e o despeito se entrelaçam indissoluvelmente com o ciúme. Não o confirmam as Escrituras? “Vaidade de vaidades, tudo é vaidade”
Mas o que verdadeiramente me desagradava era o fascínio que um sujeito tão vulgar e mal-nascido como Escobar parecia despertar nas mulheres. Como Virgília poderia cogitar substituir um puro-sangue por um matungo?
Ocorreu-me que Virgília pudesse estar repetindo o lance que havia culminado na derrota das minhas pretensões matrimoniais, anos atrás, quando, sem maiores explicações, ela me substituiu pelo Lobo Neves. A diferença é que então éramos todos solteiros e a preterição de um pretendente por outro não passava de um capricho feminino socialmente aceitável. Virgília estava agora casada e eu era seu amante. Ao aceitar a possibilidade de me substituir por outro, ela deixava transparecer uma vontade de explorar outras vias escusas além daquelas que vínhamos trilhando.
Não nego que eu via um certo espírito empreendedor em sua atitude; só não me agradava a ideia de ser eu o negócio a ser sucedido para que ela alcançasse a glória…
Veio-me à memória a expressão de indignação que meu pai bradou quando Virgília me deixou pelo Lobo Neves:
– Um Cubas!
Aquela frase ecoou em meu pensamento e continuei repetindo-a mentalmente, enquanto procurava sofregamente o camarote de Nhá-loló.
– Um Cubas!
Convém intercalar o presente capítulo e o anterior entre a terceira e a quarta oração do capítulo XCVIII.
NOTAS SOBRE ESSA NARRATIVA
Dia desses, em uma página do Facebook, alguém que eu não conhecia nem de vista nem de chapéu postou um trecho curto propondo um exercício imaginativo: e se Machado tivesse promovido um encontro entre Capitu e Brás Cubas?
Comecei a tentar imaginar como seria, mas me ocorreu algo melhor: e se, em vez disso, o encontro fosse entre Brás e Escobar? O contraste entre o bem nascido Brás, típico representante da aristocracia oitocentista e o arrivista Escobar, arquétipo da burguesia do século XIX, poderia resultar em uma cena ainda mais interessante.
Ao iniciar minha narrativa de cara deparei-me com uma dificuldade. Os fatos narrados em Memórias Póstumas de Brás Cubas ocorrem entre 1805 e 1869, respectivamente as datas do nascimento e da morte de Brás. Não é possível precisar por quanto tempo e em que período Brás e Virgília viveram o seu relacionamento ilícito, pois Machado não quis dar datas exatas. Sabemos, todavia, que Brás se encontrou com Virgília uma vez mais, anos depois do término do relacionamento de ambos, em 1855 (Capítulo 130). Sabemos também que, àquela altura, ambos já estavam na fase de madureza pela descrição que Brás faz de sua ex-amante (“A primeira vez que pude falar a Virgília, depois da presidência, foi num baile em 1855. Trazia um soberbo vestido de gorgorão azul, e ostentava às luzes o mesmo par de ombros de outro tempo. Não era a frescura da primeira idade; ao contrário; mas ainda estava formosa de uma formosura outoniça, realçada pela noite.”). E também porque, na sequência, ele dedica um capítulo todo aos seus cinquenta anos de idade (Capítulo 134).
Já a história de ciúmes de Bentinho ocorre mais tarde: Machado não aponta a data de seu nascimento, mas nos conta que, em 1857, ele tinha 15 anos (de onde se presume que ele tenha nascido em 1842 – vide Capítulo II). Escobar, por sua vez, era três anos mais velho do que ele (vide Capítulo LVI) , tendo nascido, portanto, em 1839. Morreu em 1871 (Capítulo CXXII), aos 32 anos de idade. Pela leitura da obra, cogita-se que a suposta traição de Capitu não ocorreu antes do casamento dela com Bentinho, que se deu em 1865 (Capítulo CI). Assim, o suposto caso de adultério, se ocorreu, se deu entre 1865 e 1871, quando Virgília já teria mais de 60 anos. Portanto, cronologicamente falando, seria impossível que Escobar, por volta de seus 29, 30 anos de idade, pudesse ter algum interesse sexual por Virgília…
Não importa, a riqueza dessas criaturas de Machado de Assis é tão grande que me vi obrigado a cometer a heresia de antecipar os eventos narrados em Dom Casmurro para ajusta-los cronologicamente aos das Memórias Póstumas.
Do ponto de vista do Memórias Póstumas de Brás Cubas, o capítulo que imaginei se passa logo após o aborto espontâneo que Virgília sofrera e o recebimento de uma carta anônima por Lobo Neves entregando o caso amoroso de sua esposa com Brás. O caso dos dois está prestes a terminar, mas naquele momento os amantes não sabem disso. Não obstante, ao final do capítulo XCVI (“A Carta Anônima”), Brás relata que ao beijar Virgília na testa esta recuou, “como se fosse um beijo de defunto”. No capítulo seguinte, ele esclarece: “Há aí, no breve intervalo, entre a boca e a testa antes do beijo e depois do beijo, há aí largo espaço para muita coisa: a contração de um ressentimento, — a ruga da desconfiança, — ou enfim o nariz pálido e sonolento da saciedade… “
Em relação a Dom Casmurro, em minha narrativa Brás encontra Escobar logo após a gravidez de Capitu. Àquela altura do romance, Bentinho já havia iniciado sua estratégia de descrever fatos que, no clímax de suas memórias, mostrar-se-iam como verdadeiras peças acusatórias da traição e supostas provas do relacionamento entre Capitu e Escobar. São assim os Capítulo CV, CVI e CVIII. Em cada um desses capítulos, Bentinho conta uma passagem no qual fica subentendido de forma muito sutil o relacionamento de sua esposa com seu melhor amigo (Capitu só concorda em deixar de expor seus braços em eventos sociais depois que Bentinho diz que Escobar aprovava seu desagrado com esse fato; Capitu está com o olhar perdido no mar, o que leva a Bentinho a desconfiar de algo; na sequência, ela diz que estava “somando uns dinheiros para descobrir certa parcela que não achava”, o que, no final, leva à revelação de que Escobar fazia corretagens com as economias de Capitu e que naquele dia estivera com ela antes de Bentinho chegar; etc.).
Finalmente, o ponto de contato entre ambos não podia deixar de ser o Cotrim, cunhado de Brás Cubas, um self-made man na área do comércio, como Escobar.
Acho que não preciso mencionar que minha narrativa é apenas uma brincadeira pseudoliterária. Nem eu sou escritor e ainda que fosse não teria talento suficiente para reproduzir ou sequer imitar o estilo machadiano. Ninguém o tem, aliás. Na literatura latino-americana, Machado é incomparável. Coloca no bolso escritores como Guimarães Rosa, Borges ou Gabriel García Márquez. Na verdade, só vamos encontrar quem o ombreie na mais alta e estrita esfera da literatura mundial – falo de gente como Shakespeare, Dostoiévski, Faulkner.
No entanto, como diria Quincas Borba, “a inveja não é senão uma admiração que luta”. Assim, ao emular um ou dois capítulos das Memórias Póstumas estou apenas tentando ilustrar empiricamente um dos princípios humanitas mais bem elaborados. Se a inveja é uma virtude, como queria Quincas Borba, invejar o maior de todos – a ponto de querer interpolar alguns capítulos desnecessários em sua obra-prima – é sublime.
Independentemente de ter gostado ou não de minha narrativa, uma coisa é certa: você já a leu. Se gostou, caro leitor, ótimo; se não, não te pago com um piparote, como sugere Brás aos seus leitores. Tampouco lamento. Afinal de contas, como diria Quincas Borba, “Verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer.”
Em 20/06/2018
REPUBLICAÇÃO, com alterações no texto: narrativa publicada na página originalmente em 20/06/2018
Nelson Santander – Renata Maria
O episódio em que Chico Buarque foi xingado por um grupo de jovens aparentemente bêbados no final do ano passado suscitou uma série de discussões nas redes sociais, colocando em polos opostos, uma vez mais, de um lado, os defensores do PT e da esquerda de um modo geral, além dos fãs do compositor, e, de outro, os que querem ver o PT – e todos os que se identificam com o partido, como o compositor – varridos da face do planeta.
Acho que o assunto já foi exaustivamente debatido e acredito que a grosseria cometida contra o artista foi devidamente repudiada por aqueles que são detentores de um mínimo de bom senso: o fato de o Chico ter uma postura defensiva em relação ao PT não autoriza ninguém a xingá-lo na rua (“Você é um merda!”, vociferou um dos playboys).
No meio dos inúmeros impropérios bradados contra o artista pelos que defendiam os playboys nas redes sociais, chamou-me a atenção aqueles que diziam respeito à sua obra. Não foram poucos os que tacharam o compositor de “medíocre” e seu trabalho de “chato” ou de baixa qualidade. Provavelmente a maioria dos que emitiu sua opinião contra o Chico artista não conhece nada de seu trabalho. E se conhecem, realmente não gostam. A arte de Chico, de fato, não é para todos. Melodias pouco óbvias e letras mais elaboradas do que o habitual na música brasileira tornam seu trabalho praticamente inacessível ao grande público. Os demais críticos simplesmente não tiveram a habilidade de separar o Chico cidadão e eleitor do PT do Chico artista, e atacaram este pela orientação política daquele.
E houve aqueles que, embora reconheçam que o artista é detentor “de um certo talento”, suscitaram a existência de uma espécie de corte temporal na qualidade de seu trabalho. Para estes, a última canção de boa qualidade do Chico foi composta nos anos 80 e nada do que ele produziu de lá para cá prestaria. Será mesmo?
Olhando a discografia do Chico dos anos 90 até hoje, podemos ver que ele lançou cinco discos de canções inéditas (com algumas regravações): Paratodos (1993), As Cidades (1998), Cambaio (2001), Carioca (2006) e Chico (2011). Os dois primeiros são de altíssimo nível, e contam com canções que, se não superam, rivalizam com o que de melhor o compositor produziu nos anos anteriores. São de Paratodos (1993) as obras primas “Paratodos” (em que o compositor faz sua profissão de fé), “Choro Bandido”, “Tempo e Artista”, “De Volta ao Samba” (cuja aparente simplicidade melódica esconde um samba de melodia extremamente sofisticada), “A Foto da Capa” e aquela que é uma das mais belas canções compostas pelo artista, “Futuros Amantes”:
Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios no ar
E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos
Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização
Não se afobe, não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você
De As Cidades (1998), destacam-se: “Sonhos Sonhos São”, “A Ostra e o Vento” (que tem essa linda estrofe: “Se o mar tem o coral / A estrela, o caramujo / Um galeão no lodo / Jogada num quintal / Enxuta, a ostra guarda o mar / No seu estojo”), “Assentamento” e a belíssima “Cecília”, que tinha versos como estes:
(…)
Me escutas, Cecília?
Mas eu te chamava em silêncio
Na tua presença
Palavras são brutas
Pode ser que, entreabertos,
Meus lábios de leve
Tremessem por ti
Mas nem as sutis melodias
Merecem, Cecília, teu nome
Espalhar por aí
Como tantos poetas
Tantos cantores
Tantas Cecílias
Com mil refletores,
Eu, que não digo
Mas ardo de desejo,
Te olho
Te guardo
Te sigo
Te vejo dormir
Para Carioca (2006), Chico Buarque compôs (em parceria – a primeira – com Ivan Lins) uma verdadeira pérola chamada “Renata Maria”, que será objeto de análise deste artigo.
Para Luca Bacchini (in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos, organizado por Rinaldo de Fernandes), a letra de Renata Maria, “aparentemente insignificante”, chama a atenção pela sofisticação de sua construção, que contrastaria com a trivialidade da temática.
De que temática estamos falando?
De fato, a canção retrata uma história absurdamente simples: um homem vê uma mulher na praia (a quem ele chama de Renata Maria) e fica encantado por ela, passando a procura-la todos os dias na praia, em vão. Apenas isso. Mas, por baixo da aparente simplicidade do enredo, temos uma verdadeira ourivesaria na construção da letra da música, escancarando o talento do compositor no fazer poético.
A canção começa com uma descrição pictórica da primeira visão que o narrador tem de Renata Maria:
Ela era ela era ela no centro da tela daquela manhã
Tudo o que não era ela se desvaneceu
Cristo, montanhas, florestas, acácias, ipês
Pranchas coladas na crista das ondas, as ondas suspensas no ar
Pássaros cristalizados no branco do céu
E eu, atolado na areia, perdia meus pés
Já de início, percebemos a obsessão do narrador pela musa da canção na repetição da palavra “ela” (inclusive nas rimas internas encontradas nas palavras “tela” e “aquela”). O encantamento causado pelo surgimento da mulher objetificada prossegue a ponto de causar o desvanecimento de tudo o que estava ao alcance da vista do homem (Cristo, montanhas, florestas, acácias, ipês) e a imposição de uma percepção onírica da realidade (Pranchas coladas na crista das ondas, as ondas suspensas no ar / Pássaros cristalizados no branco do céu). A visão, a se crer no narrador, é de tirar o fôlego e de fazer perder o chão, o que se reflete no duplo sentido contido no verso E eu, atolado na areia, perdia meus pés.
A canção prossegue alterando o foco narrativo antes voltado para o contexto da visão do narrador para o seu eu interior, retornando em seguida, uma última vez, para o exterior. Acentua-se, também, a sensação de incapacidade de reação do personagem, que fica sem palavras diante da fulgurosa visão de sua musa saindo do mar:
Músicas imaginei
Mas o assombro gelou
Na minha boca as palavras que eu ia falar
Nem uma brisa soprou
Enquanto Renata Maria saía do mar
Na sequência, vemos que o narrador passa a buscar sua musa, obsessivamente, dia após dia na mesma praia em que a viu saindo do mar:
Dia após dia na praia com olhos vazados de já não a ver
Quieto como um pescador a juntar seus anzóis
Ou como algum salva-vidas no banco dos réus
É notável a força da qualidade poética contida no primeiro verso que, em poucas e bem colocadas palavras, dá a exata medida do estado de ânimo do narrador. Se, de um lado, a expressão dia após dia indica que o narrador visita a mesma praia por vários dias sucessivos, a menção aos olhos vazados de não a ver sugerem que o personagem não enxerga mais nada nem ninguém nesses longos dias, alimentados exclusivamente pela busca do objeto de seu desejo.
Os versos seguintes indicam que a busca é de uma quietude obstinada, mas inócua: o pescador que junta seus anzóis voltou de mãos vazias da pescaria; o salva-vidas no banco dos réus (que metáfora linda) nada fez o dia todo além de esperar.
A sequência de versos seguinte é primorosa:
Noite na praia deserta, deserta, deserta daquela mulher
Praia repleta de rastros em mil direções
Penso que todos os passos perdidos são meus
Luca Bacchini assim interpreta este trecho da canção:
“É noite e o homem fica sozinho na praia. Andando contra qualquer princípio da arte venatória, aproveita a escuridão para abandonar a posição passiva de espera e passar à procura ativa. Mas Renata Maria continua a escapar-lhe. Ainda nesses versos o significado expresso pelas palavras resulta enriquecido por sofisticadas engenharias linguísticas. O adjetivo “deserta”, repetido três vezes, assemelha-se a uma voz que ecoa dentro de um espaço vasto, vazio e paradoxalmente fechado. Embora a praia seja habitualmente um espaço aberto onde não se realiza o fenômeno do eco, estamos aqui numa paisagem surreal, petrificada e asfíxica, fechada em cada lado: atrás pelas montanhas, de frente pelas ondas suspensas, em cima pelo branco do céu e pelos pássaros cristalizados e embaixo pela areia. Ao mesmo tempo o adjetivo “deserta”, mesmo que se referindo ao lugar, fornece informações também sobre o protagonista. A sua repetição devolve também a angústia da busca infrutífera do homem que persegue, sem nunca achar, a personificação de uma obsessão. De fato, do ponto de vista prosódico e musical, a passagem do si bemol das primeiras sílabas ao mi da última – de(si b.)-ser(si b.)-ta(mi) – reproduz, cada vez que a palavra “deserta” é pronunciada, um efeito ofegante, como se quem fala tivesse apenas terminado uma corrida, ficando sem o ar suficiente para pronunciar a última sílaba.”
É noite, como o próprio protagonista deixa claro. A praia, vazia, está repleta de rastros em mil direções como seria de se esperar de um lugar que é, durante o dia, frequentado por inúmeras pessoas. O personagem, todavia, está tão obcecado em sua busca que afirma, categoricamente, que todos os passos perdidos são dele. Os versos têm um efeito imagético muito forte, mas sua força maior reside naquilo que revela sobre o estado de espírito do narrador: o de alguém completamente perdido por conta de sua obstinação.
A canção termina da mesma maneira com que acordamos de um sonho bom: com uma resignação encharcada de um sentimento de perda; perda de algo que se sabe inalcançável ou talvez inexistente.
Eu já sabia, meu Deus
Tão fulgurante visão
Não se produz duas vezes no mesmo lugar
Mas que danado fui eu
Enquanto Renata Maria saía do mar
Há uma resignação amarga na constatação de que, embora o personagem já soubesse disso de antemão, a fulgurante visão de Renata Maria não se reproduziria novamente naquela praia.
Os dois últimos versos indicam o destino do narrador. O adjetivo substantivo danado comporta, no contexto, ao menos duas interpretações.
A primeira delas tem a ver com a acepção mais vulgar do termo, no sentido de alguém que é muito esperto, malandro, travesso, arteiro. Nesse sentido, os versos mas que danado fui eu enquanto Renata Maria saía do mar adicionam um elemento novo à interpretação: o de que a visão da musa suscitou no narrador outro tipo de obsessão: a da lubricidade.
No entanto, danado é também sinônimo de condenado, o que implica dizer que o narrador reclama o seu destino de ter sido amaldiçoado para sempre assim que colocou os olhos naquela mulher que não mais retornará àquela praia. Ele sabe que teve uma breve visão da beleza absoluta e que a deixou escapar para nunca mais, tornando-se, assim, vítima de um momento de danação que se perpetuará no tempo, em sua memória.
Alguém ainda acha que o melhor Chico ficou nos anos 80?
Post Scriptum, em 07/02/16: Chico nunca esteve sozinho. Charles Baudelaire, há dois séculos, já havia escrito um poema magistral sobre o tema do encontro fortuito com a mulher desconhecida que fica gravada para sempre na memória do artista:
A Uma Passante – Charles Baudelaire
A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia;
Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.
Eu bebia, como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu de seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina.
Brilho… e a noite depois! – Fugitiva beldade
De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?
Longe daqui! tarde demais! “nunca” talvez!
Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!
Trad.: Guilherme de Almeida
REPUBLICAÇÃO: o artigo foi originalmente publicado no blog em 15/04/2016. No ano seguinte, Chico lançaria o álbum Caravanas, com outras pequenas pérolas, como “Tua Cantiga” (que causou um certo ruído na esquerda entre as feministas) e “Massarandupió”. Dentre elas, a última do disco, As Caravanas, cuja letra, de tão boa, reproduzo na íntegra:
É um dia de real grandeza, tudo azul
Um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos
Um sol de torrar os miolos
Quando pinta em Copacabana
A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba
A caravana do Irajá, o comboio da Penha
Não há barreira que retenha esses estranhos
Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho
A caminho do Jardim de Alá
É o bicho, é o buchicho, é a charanga
Diz que malocam seus facões e adagas
Em sungas estufadas e calções disformes
É, diz que eles têm picas enormes
E seus sacos são granadas
Lá das quebradas da Maré
Com negros torsos nus deixam em polvorosa
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné
Sol, a culpa deve ser do sol
Que bate na moleira, o sol
Que estoura as veias, o suor
Que embaça os olhos e a razão
E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar
Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana do Arará
Não há, não há
Sol, a culpa deve ser do sol
Que bate na moleira, o sol
Que estoura as veias, o suor
Que embaça os olhos e a razão
E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar
Ah, tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana
Nem caravana
Nem caravana do Arará
Sei não, mas tenho a impressão de que aqueles que criticavam o Chico em 2016, ao ver a letra dessa canção, devem ter odiado. Até o ser humano mais tosco consegue enxergar-se quando um espelho é colocado na sua cara.
Nelson Santander – O dia em que meu pai ouviu a voz de Deus
O conhecido escritor de ficção científica Arthur C. Clarke formulou três “leis” acerca da relação entre o homem e a tecnologia que ficaram muito famosas. Dentre elas, a mais conhecida é a terceira, que reza:
“Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia.”
Lembrei dessa Lei quando, em um certo domingo, fui visitar meus pais. Antes mesmo que eu tivesse tempo de tomar um café, meu pai disparou, com um olhar esquisito:
“Eu sei que você não acredita em sobrenatural, mas aconteceu uma coisa estranha comigo”.
Normalmente, quando alguém que conhece meu ceticismo tenta me convencer de algo sobrenatural, costuma me lançar um olhar que é um misto de temor e desafio. Mas não era esse o olhar do meu pai. Para mim a princípio me pareceu o olhar de quem, em face do desconhecido, quer ser convencido de que nada de extraordinário aconteceu, e que o mundo pode seguir seu curso regular novamente.
Ele então me contou que na semana anterior havia ligado a TV e que, inusitadamente, o aparelho não sintonizou no “Brasil Urgente” (seu programa favorito de todas as tardes). De forma surpreendente, a tela ficou escura e então os auto-falantes da TV começaram a reproduzir uma música, segundo ele, “maravilhosa”. Meu pai ficou paralisado, confuso. Ele tentou voltar para o Datena, mas não conseguiu. Vencido pela beleza da orquestração, sentou-se no sofá e pôs-se a ouvir o que saía da TV. Depois daquela música, outra se seguiu. E outra. E outra. Todas completamente desconhecidas pra ele, mas absurdamente lindas (ele não usou precisamente essas palavras, mas era isso que seus olhos diziam).
E assim se passaram mais de três horas em que meu pai, embora meio assustado por estar testemunhando um evento estranho, não conseguia deixar de apreciar o momento. Depois que o som cessou, ele tentou que a TV tocasse novamente aquelas canções, mas tudo o que conseguiu foi dar de cara com o Datena narrando a história de mais um esquartejamento. Para sua decepção, meu pai não mais conseguiu fazer a TV falar com ele com aquelas melodias.
Quando concluiu sua narrativa, ele me perguntou, genuinamente curioso, mas ainda um tanto quanto espantado: “E aí?”, o olhar desafiador finalmente surgindo.
À essa altura, eu já estava com um meio-sorriso no rosto. Chamei-o à sala, fui até a TV, liguei o aparelho, fiz a minha “magia” e de repente, o adágio do Concerto para Clarineta em A maior, K.622, de Mozart, inundava a sala, sob o olhar atento e extasiado do meu pai. Na sequência, veio a famosa Ária na corda sol, de Bach, seguida do Adágio em Sol Menor, de Albinoni. Só então ele se lembrou de me perguntar como eu tinha conseguido fazer aquilo.
Desliguei a TV, estiquei a mão e, tateando na parte de trás do aparelho, retirei o pendrive que eu havia colocado lá na última visita que fizera à casa dele, um mês antes. Na ocasião, eu havia tentado de toda forma ensinar meu pai a acessar o pendrive pelo controle remoto para que pudesse ouvir uma playlist de músicas clássicas em MP3 que eu havia criado especialmente pra ele. Sem sucesso. Meu pai sempre foi uma nulidade com equipamentos eletrônicos, mal e mal sabendo ligar a TV e colocar nos canais que ele gosta de assistir. Desisti de explicar e acabei esquecendo o pendrive lá. De alguma maneira, ao tentar sintonizar em seu programa na TV, ele apertou algum botão errado no controle e acessou a pasta com a playlist que eu havia criado. Como não conhecia aquelas músicas e como a TV não estava ligada em nenhum canal, ele ficou tentando imaginar o que acontecera, e não chegou a nenhuma conclusão lógica. Portanto, concluiu, só podia ser algo sobrenatural.
“Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia.”
Depois que mostrei que não havia nada de extraordinário no que acontecera com ele, a reação do meu pai foi muito interessante. Claramente, ele ficou um pouco envergonhado por ter pensado que havia testemunhado um milagre quando tudo não passara de um feito tecnológico. De entremeio com a vergonha, percebi também uma genuína frustração. Não sei se traduzo adequadamente, mas minha intuição é a de que ele talvez tenha imaginado que algo, ou “A Voz”, o havia escolhido para lhe mostrar a Sua obra: músicas divinas que ninguém jamais ouvira, a não ser o meu pai.
Mas o mais interessante foi que, depois de ter descoberto que não eram divinas, mas humanas as canções que o haviam arrebatado, seu interesse por elas claramente diminuiu:
– São bonitas sim, Nelsinho. Mas você sabe, eu gosto é de música orquestrada, Glenn Miller, Billy Vaughn. E Ray Conniff. Conhece? “Besame Mucho” é que é música!
Não sei se existe alguma lição a se tirar do episódio. Meu olhar cético para as coisas tende a achar graça na necessidade que as pessoas têm de encontrar o divino em qualquer fenômeno natural ou humano desconhecido ou inusitado com o qual se deparam. Meu velho pai achava que estava ouvindo a voz de Deus, quando na verdade eram os humanos Mozart, Beethoven, Chopin e etc. quem lhe falavam por meio de suas árias, adágios e andantes.
Mas minha visão seria totalmente limitada se eu negasse que uma outra leitura desse tipo de evento é também possível: não seriam essas canções uma forma que o Incognoscível encontrou para falar com os seres humanos? E, nesse contexto, não seriam os compositores e músicos apenas como aparelhos de TV nos quais Ele espetou Seu pendrive divino para emitir o Seu som e a Sua voz?
(relato retirado da página de perfil do autor no Facebook)
