Joan Margarit – Mari

Ela te acompanhou por muito tempo,
todas as tardes, na natação e na escola.
Foi tua amiga e também a confidente
daquela dolorosa adolescência
de lua de hospital e das tardes azuis
da lenta juventude. Foi a tua Mari,
as últimas visitas, quando teus olhos
pesavam-te interiormente como a morte
que apagou todo o brilho por trás das frias
vidraças embaçadas de passado.
Tu e Mari, teu sorriso e o sorriso dela,
água morna, o odor dos vestiários,
tu nadando, nadando para a morte.
Agora Mari o sabe e despede-se de ti
olhando para suas duas filhas.
Mari que, grávida,
recusou-se a fazer qualquer exame
porque ela jamais se preocupou
em dar à luz uma criança como tu.

Trad.: Nelson Santander

MARI

Ella te acompañó durante mucho tiempo
a nadar y a la escuela cada tarde.
Fue tu amiga y también la confidente
de aquella dolorosa adolescencia
de luna de hospital y azules tardes
de lenta juventud. Era tu Mari,
sus últimas visitas, con tus ojos
pesándote hacia dentro por la muerte
que apagó todo el brillo tras los fríos
cristales empañados del ayer.
Tú y Mari, tu sonrisa y su sonrisa,
agua tibia, el olor de los vestuarios,
tú nadando, nadando hacia la muerte.
Ahora Mari lo sabe y te despide
mirando a sus dos hijas.
Mari, que, embarazada,
se negó a someterse a prueba alguna
porque a ella jamás le preocupó
dar a luz a una niña como tú.

Joan Margarit – Súplica

Desta manhã invernal, morna e aprazível,
por favor, não te vás.
Fica submersa neste pátio
como se houvesses naufragado
dentro de nossa vida.
Sob o loureiro, entre as aspidistras
de folhas românticas, verdes e largas,
por favor, não te vás, não te vás.

Tudo está preparado para ti.
Fica, por favor, e não te vás.
Diz-me se te lembras: preciso de
algumas palavras com a clara e profunda
voz da ausência para perguntar-te
sobre a fugacidade
de tua vitória sobre o nunca mais.
Mas te calas, descansas em teu ontem,
um leito de tristeza fulgurante.

Encerraste-te por oito meses
no casulo da escuridão,
e agora, horrorizada pela luz,
surge batendo as asas a furiosa
e pálida mariposa da morte.
Mas, se estás morrendo, ainda vives,
e faço irromper a última alegria
em teu rosto cansado enquanto tomo
entre as minhas tuas pequenas mãos.
E repito para mim mesmo:
morrer ainda é viver.
Desta manhã invernal, morna e aprazível,
por favor, não te vás, não te vás.

Trad.: Nelson Santander

SÚPLICA

De esta invernal mañana, amable y tibia,
por favor, no te vayas.
Quédate sumergida en este patio
como si hubieses naufragado
dentro de nuestra vida.
Bajo el laurel, entre las aspidistras
de románticas, verdes y anchas hojas,
por favor, no te vayas, no te vayas.

Todo está preparado para ti.
Quédate, por favor, y no te vayas.
Dime si lo recuerdas: necesito
unas palabras con la clara y honda
voz de la ausencia para preguntarte
por la fugacidad
de tu victoria sobre el nunca más.
Pero callas, descansas en tu ayer,
un lecho de tristeza fulgurante.

Te has ido encerrando durante ocho meses
en el capullo de la oscuridad,
y ahora, horrorizada por la luz,
surge aleteando la furiosa,
pálida mariposa de la muerte.
Pero, si estás muriéndote, aún vives,
y hago estallar la última alegría
de tu rostro cansado mientras tomo
entre las mías tus pequeñas manos.
Y me repito:
morirse todavía es vivir.
De esta invernal mañana, amable y tibia,
por favor, no te vayas, no te vayas.

Joan Margarit – Pilhagem

Hoje és outra.
A morte, como um vento do deserto,
sopra e abandona teu rosto
ressecado pela morfina.
Passa uma andorinha com seu rápido voo
e reluz ao cruzar a luz laranja
da janela aberta de teu quarto.
Talvez com teu voo também chegues
ao claro terraço onde tua voz risonha
prateava o crepúsculo. Foste-te e só resta
um corpo que uma pilhagem devastou
e que eu amo agora, assim como amei a ti.

Trad.: Nelson Santander

SAQUEO

Hoy eres otra.
La muerte, como un viento del desierto,
sopla y te deja el rostro
seco por la morfina.
Pasa una golondrina con su rápido vuelo
y reluce al cruzar la luz naranja
de la ventana abierta de tu cuarto.
Puede que con tu vuelo también llegues
a la clara terraza donde tu voz risueña
plateaba el crepúsculo. Te has ido y sólo queda
un cuerpo al que un saqueo ha devastado
y al que amo ahora, igual que te amé a ti.

Joan Margarit – Mãe e filha

Hoje tuas mãos são todo o passado dela:
há trinta anos de amor no fundo de tuas palmas.
Velaste-a durante toda a noite:
deitas-te na cama ao lado dela,
teu peito quente contra suas costas,
seus cansados cabelos em teu rosto.
Tu a abraças murmurando em seu ouvido
e, enquanto isso, a acaricias.
São as últimas noites, e sentes o calor
de seu esgotado corpo que conheces tão bem.
Aprenderás a cuidar dela na morte.
Ela sempre foi uma menina: deves velar seu sono,
que se parece cada vez mais com
a profunda sombra da alegria
para onde escorre entre tuas mãos.

Trad.: Nelson Santander

MADRE E HIJA

Hoy tus manos son todo su pasado:
hay treinta años de amor al fondo de tus palmas.
La has velado a lo largo de la noche:
te tiendes en la cama junto a ella,
tu pecho cálido contra su espalda,
sus cansados cabellos en tu rostro.
La abrazas murmurándole al oído
y, mientras, la acaricias.
Son las últimas noches, y sientes el calor
de su cuerpo agotado que conoces tan bien.
Aprenderás a cuidarla en la muerte.
Siempre ha sido una niña: debes velar su sueño,
que se va pareciendo, más y más,
a la profunda sombra de alegría
por donde se desliza entre tus manos.

Joan Margarit – Água

Poderíamos falar da água ou da menina,
porque a água e a menina permanecem
juntas na minha memória.
A menina é a água, é a liberdade
de um dorso que tem,
sob a pele, a rigidez de um tirante.
A ternura da água salvou suas pernas débeis:
vejo novamente o azul das piscinas
na temperatura de sua alma,
tão distantes agora nos invernos
que se vão desfazendo na memória.
Piscinas onde nadam suas lembranças.
Resta-me o mar de ferro em S’Aucanada,
com conchas brancas como joias perdidas
em uma luz de pedras sob a água.
E o mar definitivo, tempestuoso. Olhos vermelhos
por trás dos óculos escuros, dizendo:
a água foi sua liberdade, e agora
é o espelho que no-la devolve.

Trad.: Nelson Santander

AGUA

Podríamos hablar del agua o de la chica,
porque el agua y la chica permanecen
juntas en mi memoria.
La chica es agua, es la libertad
de una espalda que tiene,
bajo la piel, la rigidez de un ancla.
La ternura del agua salvó sus piernas débiles:
vuelvo a ver el azul de las piscinas
a la temperatura de su alma,
tan lejanas ahora en los inviernos
que se van deshaciendo en la memoria.
Piscinas donde nada su recuerdo.
Me queda el mar de hierro en S’Aucanada,
con caracoles blancos como joyas perdidas
en una luz de piedras bajo el agua.
Y el mar final, ventoso. Ojos enrojecidos
tras las gafas de sol, que van diciendo:
el agua fue su libertad, y ahora
es el espejo que nos la devuelve.

Joan Margarit – História natural

Meu trato com a morte.
Ouço-a colidir como uma mosca
na luz da vidraça, e posso vê-la
ascender ao céu vespertino
em seu sereno anil. Encontro com
o médico durante a protocolar
visita noturna.
Não quero falar e concordo com tudo o que ele diz.
Somos parte do fundo escuro
de uma pintura em que surge
a janela iluminada deste quarto
onde nossa Joana está chegando ao fim.

Trad.: Nelson Santander

HISTORIA NATURAL

Mis tratos con la muerte.
La oigo golpear como una mosca
en la luz del cristal, y puedo verla
por levante en el cielo de la tarde
en su calmoso añil. Me encuentro
al médico durante la visita
ceremoniosa del anochecer.
No quiero hablar y asiento a cuanto dice.
Formamos parte del oscuro fondo
de un cuadro en el que surge
la ventana encendida de este cuarto
donde nuestra Joana está acabándose.

Joan Margarit – Oceano Atlântico, 1956

Preferia o mercante, sua solidão. Estava
envolto em silêncio. Parecia
que navegava sem tripulação,
e que o mar era um navio,
maior ainda, de mármore, que o balançava.
Era maravilhoso subir ao convés,
entre caixas de bananas: o peso delas
afundava o navio até a linha d’água
em meio às ondas como montanhas.
O navio, às vezes, adernava:
parecia atender a alguma voz do mar.
Havia um camarote
com uma grande cama de metal e uma mesa,
ambas muito bem fixadas no chão.
Como minha alma na morte de minha filha.
É o que estou dizendo. E também que daria meus olhos
para empreender a viagem de volta com ela.

Trad.: Nelson Santander

OCÉANO ATLÁNTICO, 1956

Prefería el mercante, su soledad. Estaba
envuelto en el silencio. Parecía
que navegaba sin tripulación,
y que el mar era un barco,
mayor aún, de mármol, que lo balanceaba.
Era maravilloso salir a la cubierta,
entre cajas de plátanos: su peso
hundía el barco hasta la misma línea
de flotación, en medio de las olas como montes.
El mercante, a veces, se escoraba:
parecía atender alguna voz del mar.
Tenía un camarote
con una cama grande de metal y una mesa,
las dos muy bien clavadas en el suelo.
Como mi alma a la muerte de mi hija.
Eso digo. Y también que daría mis ojos
por emprender el viaje de retorno con ella.

Joan Margarit – A felicidade

O vento do norte varre o mar,
prata plana perto da praia
e agitada junto ao horizonte:
é como se, com seu pincel, o vento
pintasse um quadro da costa: o mar,
o porto e aquela barraca solitária
que abre todo inverno.
As gaivotas planam e suas asas
indiferentes e confiantes
se adaptam às rajadas de vento
como foices imóveis.
Mas a noite tudo apagou:
os postes escassos e debilmente
iluminados ouvem como o vento
assobia e assusta as janelas cegas.

Os três no pequeno apartamento
que parece uma jaula sobre o oceano.
Ouve-se a areia e a água do mar
batendo na janela durante toda a noite.
Viemos para estar mais juntos
e mais sozinhos. Os lugares familiares
são tão distantes, frios, nebulosos:
o esquecimento já começou
já não existimos longe de nós.
São alguns dias de felicidade.
Com o vento sem teto, o mar tão frio.
A vila e seu abandono. Ser feliz
sempre foi uma coisa muito estranha.

Trad.: Nelson Santander

LA FELICIDAD

La tramontana barre el mar,
de plata lisa cerca de la playa
y agitado junto al horizonte:
es como si, con su pincel, el viento
pintase un cuadro de la costa: el mar,
el puerto y esa tienda solitaria
que abre todo el invierno.
Las gaviotas planean y sus alas
indiferentes y seguras
se adaptan a las ráfagas de viento
como inmóviles hoces.
Pero la noche lo ha borrado todo:
las escasas y débiles farolas
escuchan cómo el viento
silba y asusta a las ventanas ciegas.

Los tres en el pequeño apartamento
que parece una jaula sobre el mar.
Se oye el golpear en los cristales
de la arena y del agua del mar toda la noche.
Hemos venido para estar más juntos
y más solos. Los sitios familiares
son tan ausentes, fríos, nebulosos:
ya ha empezado el olvido,
ya no existimos lejos de nosotros.
Son unos días de felicidad.
Con el viento sin techo, el mar tan frío.
El pueblo y su abandono. Ser feliz
siempre ha sido una cosa muy extraña.

Joan Margarit – Sant Just, 2 de março de 2001

Suavemente, as rodas da cadeira
te levam para casa. As nuvens violáceas
acumulam-se atrás dos telhados.
Todas te dizem coisas: tu, tímida, respondes
sorrindo, mas às vezes
com um vazio dentro dos olhos
que reflete a luz da tempestade.

E a chuva começa a falar contigo
como uma mãe perigosa e acolhedora,
pedindo de longe que regresses.
Buscas — molhada, absorta — no umbral
os anos sob o abrigo da casa.
Nossa vida jamais regressará.
Deslizaremos juntos pelo pátio,
límpida chuva de olvido,
como folhas em um curso d’água.

Trad.: Nelson Santander

SANT JUST, 2 DE MARZO DE 2001

Con suavidad, las ruedas de la silla
te llevan hacia casa. Las nubes violáceas
se amontonan detrás de los tejados.
Todos te dicen cosas: tú, tímida, contestas
sonriente, pero a veces
con un vacío dentro de los ojos
que refleja la luz de la tormenta.

Y la lluvia comienza a hablar contigo
como una madre peligrosa y cálida,
pidiendo desde lejos que regreses.
Buscas —mojada, absorta— en el umbral
los años al amparo de la casa.
Nuestra vida jamás regresará.
Resbalaremos juntos por el patio,
limpia lluvia de olvido,
como briznas en un reguero de agua.

Joan Margarit – Pai e filha

Diante das janelas que se abrem para o pátio
ele adormeceu na poltrona,
ao lado do sofá onde ela descansava.
O jovem rosto
que a morfina havia endurecido,
tinha aos poucos deixado seu sorriso
no ontem que guardam os retratos.
À noite, ele a carregou para o quarto,
colocou-a para dormir e fechou as persianas.

E se deu conta, diante do sofá vazio,
de que não tinha,
de que nunca teria
lembranças suficientes para fingir a vida.

Trad.: Nelson Santander

PADRE E HIJA

Ante los ventanales que se abren al patio
él se dormía en la butaca,
junto al sofá donde ella descansaba.
El joven rostro
que la morfina había endurecido,
había ido dejando su sonrisa
en el ayer que guardan los retratos.
De noche la subía al dormitorio,
la acostaba y cerraba los postigos.

Se daba cuenta, ante el sofá sin nadie,
de que no le quedaban,
de que nunca le iban a quedar
suficientes recuerdos para fingir la vida.