Leah Silvieus – Espécies invasoras

Algo terrível aconteceu hoje, eu digo
e meu marido corre até mim procurando
por sinais de ferimentos. Não quero contar-lhe o resto:
de como encontrei uma rã-arborícola na canaleta do vidro da porta
do nosso carro, olhando para cima com o que eu então imaginei
ser um olhar de esperança, como a persuadi a entrar em um saco de papel
que carreguei até uma árvore com muita sombra
do outro lado do terreno, como empurrei o saco suavemente,
e esperei. E de como quando eu voltei,
ela olhava para mim, sua perna agora deslocada
no ponto onde eu, em minha pressa, a havia quebrado.
Seu olhar ainda era o mesmo, repleto não
de esperança, como eu havia imaginado, mas
de outra coisa. Eu só estava tentando ajudar, eu disse.
Eu sabia que isso não importava.

Trad.: Nelson Santander

Invasive Species

Something terrible happened today, I say
and my husband rushes to me, searching
for signs of harm. I do not want to tell him
the rest: how I found a tree frog in the door well
of our car, gazing up with what I then imagined
was hope, how I coaxed him into a paper sack
that I carried to a tree with plenty of shade
at the lot’s far end, nudged the bag gently,
and waited. How when I returned,
he stared up at me, his leg now askew
from where I had broken it in my hurry.
His gaze was still the same, full not
with hope as I had once imagined but
something else. I was just trying to help, I say.
I knew that did not matter.

Renata Correia Botelho – o vento a rondar os dragoeiros

morreu Ulrich Mühe e o seu rosto antigo
que olhara em tempos na minha direcção
enquanto ouvia a ‘Appassionata’ de Beethoven,
o amor e ‘As Vidas dos Outros’. eu vira o filme
sozinha, num teatro vazio como uma igreja

abandonada de Tonino Guerra, com a cerejeira
a erguer-se entre as cadeiras e o palco
que ninguém vê. ficou tudo ligado: aquele olhar
subterrâneo que regressava agora a águas fundas,
a minha avó a ajeitar, com os seus dedos térreos,
a planta que morreu com ela, a resignação
das gaivotas ao longo da praia
e as palavras de Borges sobre
as coisas que morrem em cada agonia.

ouvirá Mühe, nos seus auscultadores,
a nostalgia do vento a rondar os dragoeiros?
és tu que cantas, Lhasa, com os melros negros,
a luz melancólica desta manhã?
quem dormirá no colo da minha tia,
protegido pelas suas mãos de árvore?

o que morrerá comigo, avô, quando eu morrer?

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 26/06/2018

Richard Howard – Princípios elementares aos setenta e dois

                  Quando consideramos as estrelas
(o que mais podemos fazer com elas?) e inclusive
reconhecemos entre elas figuras paternas

                  siderais (foi nossa
consideração que as organizou assim),
elas sempre nos ofuscam, pois nós mudamos.

                  Quando observamos a água
(que não pode ser contida, pois não para de transformar-se
em si mesma), é assim que aspiramos nos mover -

                  mas a água nos ultrapassa.
E quando aspiramos nos envolver pelas chamas
(pois quem não trajaria tal vestimenta?)

                  as chamas apenas passam por nós -
esse é o jeito delas de passar.
Mas a terra é uma outra conversa. Peçamos à terra,

                 a última mãe, que nos leve -
para um útero que possamos reassumir. Sim, de fato,
nós podemos ter a terra. A terra nos acolherá.

Trad.: Nelson Santander

Elementary Principles At Seventy-Two

                  When we consider the stars
(what else can we do with them?) and even
recognize among them sidereal

                  father-figures (it was our
consideration that arranged them so),
they will always outshine us, for we change.

                  When we behold the water
(which cannot be held, for it keeps turning
into itself), that is how we would move-

                  but water overruns us.
And when we aspire to be clad in fire
(for who would not put on such apparel?)

                  the flames only pass us by-
it is a way they have of passing through.
But earth is another matter. Ask earth

                  to take us, the last mother-
one womb we may reassume. Yes indeed,
we can have the earth. Earth will have us.

Felipe Benítez Reyes – Uma Forma de Eternidade

Então o medo era isto?
Não os ameaçadores
fantasmas do pensamento e da consciência.
Não os longos corredores de hospitais
com lâmpadas fluorescentes dia e noite.
Nem sequer o tremor de irrealidade
que permanece na alma se te recordas.

O medo, aparentemente, é calmo:

Chega quando fechas a janela
e compreendes que tudo quanto vês
é o mesmo que ontem, e será
igual amanhã e para sempre.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO, com pequenas alterações na tradução: poema publicado na página originalmente em 25/06/2018

Felipe Benítez Reyes – Una Forma de Eternidad

Pero ¿el miedo era esto?
No los amenazantes
fantasmas del pensamiento y la conciencia.
No los largos pasillos de hospitales
con tubos fluorescentes día y noche.
Ni siquiera el temblor de irrealidad
que se queda en el alma si recuerdas.

El miedo, al parecer, es sosegado:

te llega cuando cierras la ventana
y comprendes que todo cuanto miras
es lo mismo que ayer, y que lo mismo
volverá a ser mañana y para siempre.

Cheryl Pearson – Contando estrelas

O cheiro de gelo nos pinheiros. Frio e verde,
como uma lufada de hortelã. Suas omoplatas como asas de anjo
cortando a grama. Moisés dividiu as águas assim mesmo.
Não foi tão milagroso quanto isto. Nós. Sua pele, a brancura dela brilhando
através do algodão. Você faz um círculo com o polegar e o indicador,
uma lente telescópica. E diz: Vamos tentar contar as estrelas, e eu observo
enquanto você vasculha o universo de ponta a ponta para mim, toda aquela velha e variada luz
numerada, definida, caindo pelo aro ósseo como um punhado de sal.
Agora eu sei. Como as galáxias colapsam.
Como mundos inteiros podem nascer de uma garganta.

Trad.: Nelson Santander

Counting Stars

The smell of ice in the pines. Cold and green,
like lungfuls of mint. Your shoulderblades like angelwings
cleaving the grass. Moses parted water like that.
It wasn’t as miraculous as this. Us. Your skin, the white of it shining
through cotton. You make a circle of thumb and finger,
a telescopic lens. You say, Let’s try and count the stars, and I watch
as you sift the universe through to me, all that old assorted light
numbered, defined, falling through the bone ring like so much salt.
I know it now. How galaxies collapse.
How whole worlds can be born in a throat.

Joan Margarit – Shostakovich. Sinfonia ‘Leningrado’

Lembras-te? Joana1 havia morrido.
Íamos para o norte, tu e eu, de carro,
para o apartamento junto ao mar,
e ouvíamos esta sinfonia.
Iniciamos a viagem em uma manhã
luminosa e, dentro da música,
o dia era de muros cobertos pelo gelo,
sombras com sacos meio cheios
e, no lago, trenós com cadáveres.
Como uma pista de aeroporto ao sol,
fugia a estrada, e por trás dos sons se estendia
uma névoa de obuses ocultando
os rastros dos tanques na neve.
Foi em julho, em uma manhã azul dourada
que brilhava no cristal do mar.
Os metais e cordas ressoavam
gloriosamente – no passado, como sempre;
rejeitando a vida, como sempre.

À noite não se ouvia nenhum outro rumor
que o das ondas sob o terraço.
Por outro lado, dentro de nós,
como ocorria dentro da música,
rugia a tempestade de neve e ferro
que desata a história ao virar a página.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: 1. Joana foi uma das filhas do poeta, falecida em 2001, aos 30 anos de idade, em decorrência de um câncer. Portadora de uma doença genética rara, sua presença permeia toda a obra de Joan Margarit. Em sua homenagem, o autor escreveu a coleção de poemas Joana, inteiramente dedicada à filha, e considerada sua obra-prima. Em 2021, tive o prazer de traduzir o livro na íntegra para o blog (aqui).

REPUBLICAÇÃO, com alterações na tradução: poema publicado na página originalmente em 21/06/2018

Joan Margarit – Shostakovich. Sinfonía “Leningrado”

¿Lo recuerdas? Joana había muerto.
Íbamos hacia el norte, tú y yo, en coche,
hasta el apartamento junto al mar,
y escuchábamos esta sinfonía.
Iniciamos el viaje una mañana
llena de luz y, dentro de la música,
el día era de muros cubiertos por el hielo,
sombras con sacos a medio llenar
y, en el lago, trineos con cadáveres.
Como una pista de aeropuerto al sol,
huía la autopista e trás de los sonidos se extendía
una niebla de obuses ocultando
las huellas de los tanques en la nieve.
Fue en julio, una mañana de oro azul
que destellaba en el cristal del mar.
Los metales y cuerdas resonaban
con la gloria, en pasado como siempre,
rechazando la vida, como siempre.

De noche no se oía más rumor
que el de las olas bajo la terraza.
En cambio, dentro de nosotros,
como ocurría dentro de la música,
rugía el temporal de nieve y hierro
que desata la historia al pasar página.

Ada Limón – O real motivo

Eu não tenho nenhuma tatuagem, elas não fazem parte da minha história, e sim da história
de minha mãe. Certa vez, caminhando pela Bedford Avenue quando tinha vinte e poucos anos,

liguei para ela como costumava fazer, como faço. E disse-lhe que queria uma
tatuagem na nuca. Algo discreto, mas permanente,

e como ela é uma artista, eu queria que ela fizesse a arte, um símbolo —
um peixe com o qual eu sonhava todas as noites. Um amuleto aquático, um presente

de mãe em meu corpo. Para ser honesta, pensei que ela ficaria honrada. Mas nós
realmente conhecemos uns aos outros completamente? Um silêncio como num quarto de hospital; ela

estava em lágrimas. Eu jurei que não faria uma. Que não permitiria que uma agulha
tocasse a minha pele, meu braço, meu torso. Eu permaneceria eu mesma, com a pele

com a qual ela me acolheu no mundo. Só mais tarde eu soube que
o problema não era tanto a tatuagem, mas a marca, a ideia

de cicatrizes. O que você não sabe (e é por isso que esta não é a minha história)
é que minha mãe tem cicatrizes de queimadura em grande parte do corpo.

A maioria de uma explosão, que levou o primeiro filho que ela carregava
na barriga; outras, dos enxertos de pele com a pele que eles levaram para cobrir

o que era necessário. Ela tinha vinte e poucos anos quando isso aconteceu.
Na frente do seu estúdio, no centro da cidade. Você tem que entender,

minha mãe é linda. Alta e elegante, magra e forte. Eu nunca a
conheci de outra maneira, sua pele que mapeei com meus dedos

juvenis, a estranha dureza em alguns lugares, os padrões como retalhos aqui,
leitos de rios ali. Ela é assombrosa, sobrenatural, sobreviveu ao fogo,

ao fim do filho por nascer. O calor e a chama e a morte, tudo isso a tornou
algo quase mágico, uma fênix. O que sei

agora é que ela queria outra coisa para mim. Para que eu acordasse todas
as manhãs e reconhecesse minha própria carne, para que essa coisa que ela fez —

eu — permanecesse como ela planejou, para que uma de nós
saísse ilesa.

Trad.: Nelson Santander

The Real Reason

I don’t have any tattoos is not my story to tell. It’s my
mother’s. Once, walking down Bedford Avenue in my twenties,

I called her as I did, as I do. I told her how I wanted a tattoo
on the back of my neck. Something minor, but permanent,

and she is an artist, I wanted her to create the design, a symbol,
a fish I dream of every night. An underwater talisman, a mother’s

gift on my body. To be clear, I thought she’d be honored. But do we
ever really know each other fully? A silence like a hospital room; she

was in tears. I swore that I wouldn’t get one. Wouldn’t let a needle
touch my skin, my arm, my torso. I’d stay me, my skin the skin

she welcomed me into the world with. It wasn’t until later that
I knew it wasn’t so much the tattoo, but the marking, the idea

of scars. What you don’t know (and this is why this is not my story)
is that my mother is scarred from burns over a great deal of her body.

Most from an explosion that took her first child she was carrying
in her belly, others from the skin grafts where they took skin to cover

what needed it. She was in her late twenties when that happened.
Outside her studio in the center of town. You have to understand,

my mother is beautiful. Tall and elegant, thin and strong. I have not
known her any other way, her skin that I mapped with my young

fingers, its strange hardness in places, its patterns like quilts here,
riverbeds there. She’s wondrous, preternatural, survived fire,

the ending of an unborn child. Heat and flame and death, all made
her into something seemingly magical, a phoenixess. What I know

now is she wanted something else for me. For me to wake each
morning and recognize my own flesh, for this thing she made—

me—to remain how she intended, for one of us
to make it out unscathed.

Carlos Drummond de Andrade – A um varão que acaba de nascer

Chegas, e um mundo vai-se
como animal ferido,
arqueja. Nem aponta
um forma sensível,
pois já sabemos todos
que custa a modelar-se
uma raiz, um broto.
E contudo vens tarde.
Todos vêm tarde. A terra
anda morrendo sempre,
e a vida, se persiste,
passa descompassada,
e nosso andar é lento,
curto nosso respiro,
e logo repousamos
e renascemos logo.
(Renascemos? talvez)
Crepita uma fogueira
que não aquece. Longe.
Todos vêm cedo, todos
chegam fora do tempo,
antes, depois. Durante,
quais os que aportam? Quem
respirou o momento,
vislumbrando a paisagem
de coração presente?
Quem amou e viveu?
Quem sofreu de verdade?
Como saber que foi
nossa aventura, e não
outra, que nos legaram?
No escuro prosseguimos.
Num vale de onde a luz
se exilou, e no entanto
basta cerrar os olhos
para que nele trema,
remoto e matinal,
o crepúsculo. Sombra!
Sombra e riso, que importa?
Estendem os mais sábios
a mão, e no ar ignoto
o roteiro decifram,
e é às vezes um eco,
outras, a caça esquiva,
que desafia, e salva-se.
E a corrente, atravessa-a,
mais que o veleiro impróprio,
certa cumplicidade
entre nosso corpo e água.
Os metais, as madeiras
já se deixam malear,
de pena, dóceis. Nada
é tão rude bastante
que nunca se apiede
e se furte a viver
em nossa companhia.
Este é de resto o mal
superior a todos:
a todos como a tudo
estamos presos. E
se tentas arrancar
o espinho de teu flanco,
a dor em ti rebate
a do espinho arrancado.
Nosso amor se mutila
a cada instante. A cada
instante agonizamos
ou agoniza alguém
sob o carinho nosso
Ah, libertar-se, lá
onde as almas se espelhem
na mesma frigidez
de seu retrato, plenas!
É sonho, sonho. Ilhados,
pendentes, circunstantes,
na fome e na procura
de um eu imaginário
e que, sendo outro, aplaque
todo este ser em ser,
adoramos aquilo
que é nossa perda. E morte
e evasão e vigília
e negação do ser
com dissolver-se em outro
transmutam-se em moeda
e resgate do eterno.
Para amar sem motivo
e motivar o amor
na sua desrazão,
Pedro, vieste ao mundo.
Chamo-te meu irmão.

Adrienne Rich – (Dedicatórias)

Eu sei que você está lendo este poema
tarde, antes de deixar o seu escritório
com uma intensa luz amarelada e uma janela fosca
na lassidão de um prédio silencioso e desbotado
muito depois da hora do rush. Eu sei que você está lendo este poema
em pé em uma livraria distante do oceano
em um dia cinzento do início da primavera, fracos flocos
impulsionados pelos vastos espaços das planícies ao seu redor.
Eu sei que você está lendo este poema
em um quarto onde coisas demais aconteceram com você,
onde as roupas de cama repousam em rolos estagnados sobre o colchão
e a mala aberta fala de fuga,
mas você não pode partir ainda. Eu sei que você está lendo este poema
enquanto o metrô reduz a velocidade e antes de subir correndo as escadas
para um novo tipo de amor
que a sua vida nunca permitiu.
Eu sei que você está lendo este poema à luz
da tela da televisão onde imagens sem som tremeluzem e se movimentam
enquanto você aguarda as notícias da intifada.
Eu sei que você está lendo este poema em uma sala de espera
de olhos que se encontram e se desencontram e de identificação com estranhos.
Eu sei que você está lendo este poema à luz fluorescente
do tédio e do cansaço de jovens que são subestimados,
e subestimam a si mesmos, em uma idade muito precoce. Eu sei
que você está lendo este poema através de sua visão fraca, as grossas
lentes ampliando estas letras além de todo significado, mas você segue lendo
porque mesmo o alfabeto é precioso.
Eu sei que você está lendo este poema enquanto caminha impaciente ao lado do fogão
onde o leite é aquecido, uma criança chorando em seu ombro, um livro em sua mão
porque a vida é curta e você também tem sede.
Eu sei que você está lendo este poema que não está em seu idioma,
adivinhando algumas palavras enquanto outras prendem a sua atenção
e eu quero saber que palavras são estas.
Eu sei que você está lendo este poema enquanto ouve algo, entre a amargura e a esperança,
e retornando à tarefa que você não pode recusar.
Eu sei que você está lendo este poema porque não há mais nada para ler
onde você desembarcou, despojado como está.

Trad.: Nelson Santander

(Dedications)

I know you are reading this poem
late, before leaving your office
of the one intense yellow lamp-spot and the darkening window
in the lassitude of a building faded to quiet
long after rush-hour. I know you are reading this poem
standing up in a bookstore far from the ocean
on a grey day of early spring, faint flakes driven
across the plains’ enormous spaces around you.
I know you are reading this poem
in a room where too much has happened for you to bear
where the bedclothes lie in stagnant coils on the bed
and the open valise speaks of flight
but you cannot leave yet. I know you are reading this poem
as the underground train loses momentum and before running up the stairs
toward a new kind of love
your life has never allowed.
I know you are reading this poem by the light
of the television screen where soundless images jerk and slide
while you wait for the newscast from the intifada.
I know you are reading this poem in a waiting-room
of eyes met and unmeeting, of identity with strangers.
I know you are reading this poem by fluorescent light
in the boredom and fatigue of the young who are counted out,
count themselves out, at too early an age. I know
you are reading this poem through your failing sight, the thick
lens enlarging these letters beyond all meaning yet you read on
because even the alphabet is precious.
I know you are reading this poem as you pace beside the stove
warming milk, a crying child on your shoulder, a book in your hand
because life is short and you too are thirsty.
I know you are reading this poem which is not in your language
guessing at some words while others keep you reading
and I want to know which words they are.
I know you are reading this poem listening for something, torn between bitterness and hope
turning back once again to the task you cannot refuse.
I know you are reading this poem because there is nothing else left to read
there where you have landed, stripped as you are.

Nelson Santander – Dois capítulos perdidos de Memórias Póstumas de Brás Cubas

Capítulo ***

ESCOBAR

À entrada do Teatro São Pedro, deparei-me com Escobar, um negociante no ramo cafeeiro, apresentado a mim pelo meu cunhado Cotrim, com quem mantinha relações mercantis. Natural de Curitiba e ex-seminarista, Escobar começava a prosperar na capital, após um início modesto de carreira que fora impulsionado pela ajuda financeira aviada pela viúva do ex-Deputado Pedro de Albuquerque Santiago. Não faças mau juízo da viúva, caro leitor; o próprio Escobar me confidenciou que ela havia cedido o capital a título de empréstimo, exclusivamente por ingerência de seu filho único, Bentinho, que vinha de ser o melhor amigo de Escobar desde os tempos do seminário. Era de conhecimento geral que Escobar possuía uma certa habilidade ou vocação para administrar seus próprios recursos. E os dos outros também. Dizia-se no Andaraí que era dado a aventuras amorosas e que frequentava a casa de Bentinho e sua esposa Capitolina com muita frequência e em horários pouco comuns.

– Escobar, quanto tempo!

– Brás, que satisfação em revê-lo! Estava mesmo precisando falar com você.

Enquanto falava, Escobar me levou para um canto reservado sob a marquise do teatro, quase na esquina. Ele parecia deveras animado, o que me causou estranheza, pois sempre o tivera por reservado e pouco afeito ao alarde.

– Ouvi dizer que você alugou uma casa na Gamboa, perguntou.

Tive um sobressalto. Então já se comentava na cidade acerca do lugar que eu reservara para meus encontros com Virgília? Se Escobar estava sabendo, era possível que a história também já tivesse chegado aos ouvidos do Lobo Neves. Depois do episódio da carta anônima, Virgília me disse que o marido andava muito desconfiado. Será que ele já tinha ouvido alguma coisa sobre a Gamboa?

– Na verdade, a casa não me pertence, respondi; é da dona Plácida, uma senhora que foi agregada na casa de uma velha amiga. Eu apenas fiz um pequeno empréstimo e subscrevi algumas promissórias para que a pobre pudesse dar a entrada.

– Sei, respondeu ele com um meio sorriso; estou eu também à procura de uma casa como essa para acomodar a criada de uma amiga…

As palavras meticulosamente selecionadas e o olhar malicioso com que foram ditas deixaram pouca margem para dúvida: Escobar procurava estabelecer aquela espécie de relação de cumplicidade que às vezes há entre dois homens que se encontram na mesma situação de ilicitude matrimonial. Eu não tinha a menor intenção de manter tal nível de vínculo com aquele sujeito. Não confiava nele. Um homem que se prestava ao papel de comborço do melhor amigo não era alguém com quem se pudesse compartilhar segredos. Para mim, Escobar tinha o caráter de quem seria capaz de enviar um bilhete anônimo ao Lobo Neves apenas para ver o teatro em chamas.

– Dona Plácida tratou pessoalmente dos pormenores do negócio, repliquei secamente, iniciando meu caminho rumo à entrada do teatro.

– Que pena, disse ele, olhando divertido para mim enquanto me acompanhava; tenho uma certa urgência em encontrar algo. A criada que quero ajudar não é casada e está no início de uma gravidez. Quero acomodá-la antes que o estado dela se dê a mostrar. Minha amiga não deseja escândalos.

Então era verdade! Não havia criada alguma. Corria o boato de que dona Capitolina estava grávida. E que Bentinho não era o pai… Não sabia o que pensar disso. Embora eu também mantivesse um consórcio amoroso com uma mulher casada, começava a desenvolver, sem entender bem por que, um sentimento desconfortável de aversão por Escobar. Não conseguia precisar a causa exata daquela sensação. A princípio, pensei que minhas fidúcias decorriam de um desejo próprio por uma espécie de reserva de mercado no ramo dos amores ilícitos. Logo acudi que tal vaidade era uma impossibilidade: provavelmente havia centenas de homens na corte em situação semelhante à minha. Rapidamente compreendi que meu asco por Escobar decorria, na verdade, de um certo ciúme projetivo em relação à situação dos homens traídos em geral. Com efeito, o leitor pode não acreditar, mas às vezes eu fazia um exercício mental de projeção, colocando-me no lugar do Lobo Neves – embora raramente e despido de remorso. E, conquanto não me identificasse em nada com o Bentinho – um sujeito fechado, mal-humorado e desconfiado, com fama de sensível – o que acontecia com ele não me dava nenhuma satisfação particular. Ademais, Escobar se me apresentava como um reflexo mais limitado e menos pretensioso de mim mesmo – uma imagem que não parecia nem um pouco agradável.

– Preciso adentrar, a peça certamente já se iniciou, disse eu, impaciente; pedirei a Dona Plácida que pergunte nas redondezas se alguém sabe de alguma casa para vender ou alugar.

Ele pareceu se lembrar de algo. Contou-me então que estava a caminho da casa de um amigo para discutir um interdito proibitório – presumi logo que o amigo fosse o Bentinho. Antes de partir, pediu-me para manter discrição em relação às suas intenções com a casa, “para evitar maledicências desnecessárias”. Redargui que não se preocupasse.

Ele se despediu e estava prestes a partir, mas se voltou novamente para mim:

– Esquecia-me de contar-lhe; outro dia, em São Cristóvão, encontrei com uma amiga em comum, Virgília…

Olhei-o desconfiado. Ele continuou:

– Ela ia triste, parece que o marido havia sido forçado a desistir da nomeação para presidente de província. Ela me disse que você seria Secretário, é verdade?

– Ainda estava avaliando a conveniência…

– Tomamos um café, continuou ele. Ela é uma companhia muito agradável. E que mulher espetacular! Que magníficos braços ela tem! Mas desconfio de algo…

– Do que suspeita?

– Acredito que ela não é feliz no casamento, respondeu. Vendo meu olhar desconfiado ele continuou: Como eu sei? Bem, você sabe como as mulheres são, elas geralmente evitam abordar certos assuntos, especialmente com homens casados. No entanto, naquele dia no café, Virgília estava especialmente eloquente.

Chegamos a uma das portas de entrada e paramos por um momento. Escobar trazia no rosto uma expressão divertida e gaiata. Segurava levemente meu braço para impedir que eu fugisse.

– Sabe, ela até me confessou algo bastante indiscreto… – disse ele.

– Sim?, acudi eu, já alarmado.

– Disse-me que não tinha um casamento satisfatório, foi sua resposta. Confesso que não me incomodaria em ajuda-la com alguns dos problemas dela…

Tenta imaginar tu, leitor, o pasmo que experimentei! Não era para mim nenhuma novidade a indiscrição e lascívia do Escobar. Mas Virgília confessando insatisfações matrimoniais a um homem conhecido por sua infidelidade à esposa e ao melhor amigo? Ela sequer havia-me dito que tinha se encontrado com Escobar. Sobre o que mais teriam conversado os dois? Teria sido ela a revelar-lhe sobre a Gamboa? As garras do ciúme enterraram-se-me no coração; sentia-me uma espécie de Lobo Neves de véspera. Súbito, me ocorreu o óbvio: se ela trai o marido por que não trairia também o amante?

– Se eu fosse você, não me metia com ela, respondi com aspereza; o marido tem fama de valente e já me confessou que não hesitaria em atirar em quem se aproximasse da esposa, a quem ele idolatra.

Escobar sorriu levemente. Aquele esgar malicioso denotava que ele sabia de tudo: da traição de Virgília e de minha posição privilegiada nesse evento doméstico. De minhas inseguranças em relação ao nosso relacionamento. E de que tudo o que eu podia fazer era inventar essa mentira disparatada sobre o Lobo Neves – que apenas no nome carregava vagas evocações de ferocidade.

Não sei se explico o ódio que senti contra Escobar naquele momento. Desejei que ele se afogasse na praia do Flamengo, onde costumava nadar quase todos os dias, mesmo com o mar bravio.

– Vou levar isso em consideração, respondeu ele, ainda sorrindo daquele jeito velhaco – e se despediu novamente.

Capítulo ****

UM CUBAS! (II)

Permaneci à porta do teatro, sem ânimo para entrar mas com nenhum desejo de partir. Rememorava a conversa que tivera com Virgília naquela tarde, quando ela me confidenciara acerca da carta anônima que o marido recebera dias antes, alertando-o contra mim. Lembrei-me do gesto de recuo que ela fez quando, à saída, pousei-lhe um beijo à testa. Era evidente que já se cansara de mim. Pensei também no Bentinho, destinado a criar como seu, sem jamais suspeitar, o filho que, a se dar crédito ao que dizia o vulgo, o amigo gerara em sua esposa. Um amontoado de sentimentos mal-costurados revolviam em mim. Ciúme, desesperança, raiva e autocomiseração compunham um todo indigesto que me mantinha inerte à porta do teatro.

Enquanto mergulhava em tais pensamentos, avistei, num vislumbre, através da porta aberta, Nhá-loló, acompanhada de seu pai, o Damasceno. Lembrou-me o dia em que a conheci, naquele jantar em casa de Sabina (capítulo XCIII), de como seus olhos permaneceram fixos em mim durante toda a noite. Próximos a eles, vi também um deputado conhecido ao lado da esposa, filha do ministro da Justiça. Estavam rodeados por um pequeno séquito de sabujos (Damasceno era um deles). A imagem dos rapapés suscitou em mim a nostalgia daquele velho desvanecimento que me acompanhou até o fim e espertou novamente a paixão pela notoriedade que, em última instância, acabaria por me matar.

Senti meu ânimo revigorado e até me esqueci por um instante de Virgília quando, enfim, decidi ingressar no teatro. Quais eram, afinal, meus reais sentimentos por ela naquela época? Ainda a amava? Mesmo hoje, aqui na terceira margem do rio, não saberia dizê-lo. Contudo, a maneira como meu ânimo se elevou assim que vislumbrei Nhá-loló sugeria, ao menos, que minha atenção já não se depositava unicamente em Virgília.

Por que, então, as insinuações de Escobar haviam me perturbado tão profundamente? Obviamente, como homem, não gostava de pensar na ideia de ser derrotado na disputa pelo amor de uma mulher, sobretudo porque não poderia recorrer a soluções drásticas – como desafiar o peralta para um duelo – uma vez que a mulher em questão não me pertencia. O amor-próprio, em tais momentos, inflama-se de tal modo que o apego e o despeito se entrelaçam indissoluvelmente com o ciúme. Não o confirmam as Escrituras? “Vaidade de vaidades, tudo é vaidade”

Mas o que verdadeiramente me desagradava era o fascínio que um sujeito tão vulgar e mal-nascido como Escobar parecia despertar nas mulheres. Como Virgília poderia cogitar substituir um puro-sangue por um matungo?

Ocorreu-me que Virgília pudesse estar repetindo o lance que havia culminado na derrota das minhas pretensões matrimoniais, anos atrás, quando, sem maiores explicações, ela me substituiu pelo Lobo Neves. A diferença é que então éramos todos solteiros e a preterição de um pretendente por outro não passava de um capricho feminino socialmente aceitável. Virgília estava agora casada e eu era seu amante. Ao aceitar a possibilidade de me substituir por outro, ela deixava transparecer uma vontade de explorar outras vias escusas além daquelas que vínhamos trilhando.

Não nego que eu via um certo espírito empreendedor em sua atitude; só não me agradava a ideia de ser eu o negócio a ser sucedido para que ela alcançasse a glória…

Veio-me à memória a expressão de indignação que meu pai bradou quando Virgília me deixou pelo Lobo Neves:

– Um Cubas!

Aquela frase ecoou em meu pensamento e continuei repetindo-a mentalmente, enquanto procurava sofregamente o camarote de Nhá-loló.

– Um Cubas!

Convém intercalar o presente capítulo e o anterior entre a terceira e a quarta oração do capítulo XCVIII.

NOTAS SOBRE ESSA NARRATIVA

Dia desses, em uma página do Facebook, alguém que eu não conhecia nem de vista nem de chapéu postou um trecho curto propondo um exercício imaginativo: e se Machado tivesse promovido um encontro entre Capitu e Brás Cubas?

Comecei a tentar imaginar como seria, mas me ocorreu algo melhor: e se, em vez disso, o encontro fosse entre Brás e Escobar? O contraste entre o bem nascido Brás, típico representante da aristocracia oitocentista e o arrivista Escobar, arquétipo da burguesia do século XIX, poderia resultar em uma cena ainda mais interessante.

Ao iniciar minha narrativa de cara deparei-me com uma dificuldade. Os fatos narrados em Memórias Póstumas de Brás Cubas ocorrem entre 1805 e 1869, respectivamente as datas do nascimento e da morte de Brás. Não é possível precisar por quanto tempo e em que período Brás e Virgília viveram o seu relacionamento ilícito, pois Machado não quis dar datas exatas. Sabemos, todavia, que Brás se encontrou com Virgília uma vez mais, anos depois do término do relacionamento de ambos, em 1855 (Capítulo 130). Sabemos também que, àquela altura, ambos já estavam na fase de madureza pela descrição que Brás faz de sua ex-amante (“A primeira vez que pude falar a Virgília, depois da presidência, foi num baile em 1855. Trazia um soberbo vestido de gorgorão azul, e ostentava às luzes o mesmo par de ombros de outro tempo. Não era a frescura da primeira idade; ao contrário; mas ainda estava formosa de uma formosura outoniça, realçada pela noite.”). E também porque, na sequência, ele dedica um capítulo todo aos seus cinquenta anos de idade (Capítulo 134).

Já a história de ciúmes de Bentinho ocorre mais tarde: Machado não aponta a data de seu nascimento, mas nos conta que, em 1857, ele tinha 15 anos (de onde se presume que ele tenha nascido em 1842 – vide Capítulo II). Escobar, por sua vez, era três anos mais velho do que ele (vide Capítulo LVI) , tendo nascido, portanto, em 1839. Morreu em 1871 (Capítulo CXXII), aos 32 anos de idade. Pela leitura da obra, cogita-se que a suposta traição de Capitu não ocorreu antes do casamento dela com Bentinho, que se deu em 1865 (Capítulo CI). Assim, o suposto caso de adultério, se ocorreu, se deu entre 1865 e 1871, quando Virgília já teria mais de 60 anos. Portanto, cronologicamente falando, seria impossível que Escobar, por volta de seus 29, 30 anos de idade, pudesse ter algum interesse sexual por Virgília…

Não importa, a riqueza dessas criaturas de Machado de Assis é tão grande que me vi obrigado a cometer a heresia de antecipar os eventos narrados em Dom Casmurro para ajusta-los cronologicamente aos das Memórias Póstumas.

Do ponto de vista do Memórias Póstumas de Brás Cubas, o capítulo que imaginei se passa logo após o aborto espontâneo que Virgília sofrera e o recebimento de uma carta anônima por Lobo Neves entregando o caso amoroso de sua esposa com Brás. O caso dos dois está prestes a terminar, mas naquele momento os amantes não sabem disso. Não obstante, ao final do capítulo XCVI (“A Carta Anônima”), Brás relata que ao beijar Virgília na testa esta recuou, “como se fosse um beijo de defunto”. No capítulo seguinte, ele esclarece: “Há aí, no breve intervalo, entre a boca e a testa antes do beijo e depois do beijo, há aí largo espaço para muita coisa: a contração de um ressentimento, — a ruga da desconfiança, — ou enfim o nariz pálido e sonolento da saciedade… “

Em relação a Dom Casmurro, em minha narrativa Brás encontra Escobar logo após a gravidez de Capitu. Àquela altura do romance, Bentinho já havia iniciado sua estratégia de descrever fatos que, no clímax de suas memórias, mostrar-se-iam como verdadeiras peças acusatórias da traição e supostas provas do relacionamento entre Capitu e Escobar. São assim os Capítulo CV, CVI e CVIII. Em cada um desses capítulos, Bentinho conta uma passagem no qual fica subentendido de forma muito sutil o relacionamento de sua esposa com seu melhor amigo (Capitu só concorda em deixar de expor seus braços em eventos sociais depois que Bentinho diz que Escobar aprovava seu desagrado com esse fato; Capitu está com o olhar perdido no mar, o que leva a Bentinho a desconfiar de algo; na sequência, ela diz que estava “somando uns dinheiros para descobrir certa parcela que não achava”, o que, no final, leva à revelação de que Escobar fazia corretagens com as economias de Capitu e que naquele dia estivera com ela antes de Bentinho chegar; etc.).

Finalmente, o ponto de contato entre ambos não podia deixar de ser o Cotrim, cunhado de Brás Cubas, um self-made man na área do comércio, como Escobar.

Acho que não preciso mencionar que minha narrativa é apenas uma brincadeira pseudoliterária. Nem eu sou escritor e ainda que fosse não teria talento suficiente para reproduzir ou sequer imitar o estilo machadiano. Ninguém o tem, aliás. Na literatura latino-americana, Machado é incomparável. Coloca no bolso escritores como Guimarães Rosa, Borges ou Gabriel García Márquez. Na verdade, só vamos encontrar quem o ombreie na mais alta e estrita esfera da literatura mundial – falo de gente como Shakespeare, Dostoiévski, Faulkner.

No entanto, como diria Quincas Borba, “a inveja não é senão uma admiração que luta”. Assim, ao emular um ou dois capítulos das Memórias Póstumas estou apenas tentando ilustrar empiricamente um dos princípios humanitas mais bem elaborados. Se a inveja é uma virtude, como queria Quincas Borba, invejar o maior de todos – a ponto de querer interpolar alguns capítulos desnecessários em sua obra-prima – é sublime.

Independentemente de ter gostado ou não de minha narrativa, uma coisa é certa: você já a leu. Se gostou, caro leitor, ótimo; se não, não te pago com um piparote, como sugere Brás aos seus leitores. Tampouco lamento. Afinal de contas, como diria Quincas Borba, “Verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer.”

Em 20/06/2018

REPUBLICAÇÃO, com alterações no texto: narrativa publicada na página originalmente em 20/06/2018