Francisca Aguirre – E se, depois de tudo, fosse o resto

E se, depois de tudo, fosse o resto
um ir morrendo para ao fim morrermos
por este louco afã de convertermo-nos
em contadores de um momento lesto.

E se afigura que o correto era
este sermão que vem nos repetir
que avança o furacão de nos ferir,
e é vã e absurda esta carreira.

Então fique tranquilo, amor meu,
e goza desta gruta que ofereço,
e esgota a água que eu não consumi.

O vento nos arrasta, cego e frio,
toma esta manta enquanto eu envelheço,
amar-te de outro modo não aprendi.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 07/04/2018

Francisca Aguirre – Y si después de todo, todo fuera

Y si después de todo, todo fuera,
un ir muriendo para al fin morirnos
a qué este loco empeño en convertirnos
en contables de un tiempo que no espera.

Y si resulta que lo cierto era
este sermón que viene a repetirnos
que avanza el huracán para abatirnos
y es inútil y absurda esta carrera.

Entonces, amor mío, ten sosiego,
y aprovecha esta cueva que te ofrezco
y apura el agua que yo no he bebido.

El viento nos arrastra, frío y ciego,
toma mi manta mientras yo envejezco,
amarte de otro modo no he sabido.

Adam Zagajewski – Um breve poema

Eu ouvia cânticos gregorianos
num carro em alta velocidade
em uma rodovia na França.
As árvores passavam velozes. As vozes dos monges
entoavam preces a um deus invisível
(ao amanhecer de uma capela tremendo de frio).
Domine, exaudi orationem meum,
vozes graves rogavam calmamente
como se a salvação estivesse crescendo no jardim.
Para onde eu ia? Onde o sol se escondia?
Minha vida estava em farrapos
nos dois lados da estrada, frágil como um mapa de papel.
Com os doces monges
percorri o caminho em direção às nuvens, ao azul profundo,
pesado, denso,
rumo ao futuro, ao abismo,
sorvendo duras lágrimas de granizo.
Longe da aurora. Longe de casa.
Em lugar de paredes — chapa de metal.
Em vez de vigília — vôo.
Viagem em vez de lembrança.
Um breve poema em vez de um hino.
Uma pequena e cansada estrela corria
mais à frente
e o asfalto da rodovia brilhava,
mostrando onde estava a terra,
e onde espreitava a navalha do horizonte
e a aranha negra da tarde
e da noite, viúva de tantas esperanças.

Trad.: Nelson Santander da versão do poema em inglês traduzido por Clare Cavanagh

A Quick Poem

I was listening to Gregorian chants
in a speeding car
on a highway in France.
The trees rushed past. Monks’ voices
sang praises to an unseen god
(at dawn in a chapel trembling with cold).
Domine, exaudi orationem meum,
male voices pleaded calmly
as if salvation were just growing in the garden.
Where was I going? Where was the sun hiding?
My life lay tattered
on both sides of the road, brittle as a paper map.
With the sweet monks
I made my way toward the clouds, deep blue,
heavy, dense,
toward the future, the abyss,
gulping hard tears of hail.
Far from dawn. Far from home.
In place of walls — sheet metal.
Instead of a vigil — a flight.
Travel instead of remembrance.
A quick poem instead of a hymn.
A small, tired star raced
up ahead
and the highway’s asphalt shone,
showing where the earth was,
where the horizon’s razor lay in wait,
and the black spider of evening
and night, widow of so many dreams.

(translated by Clare Cavanagh)

Yehuda Amichai – Na história do nosso amor

Na história do nosso amor, um foi sempre
Uma tribo nômade, outro uma nação em seu próprio solo.
Quando trocamos de lugar, tudo tinha acabado.
O tempo passará por nós, como paisagens
Passam por trás de atores parados em suas marcas
Quando se roda um filme.
As palavras
Passarão por nossos lábios, até as lágrimas
Passarão por nossos olhos.
O tempo passará
Por cada um em seu lugar.
E na geografia do resto de nossas vidas,
Quem será uma ilha e quem uma península
Ficará claro pra cada um de nós no resto de nossas vidas
Em noites de amor com outros.

Trad.: Millôr Fernandes

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 05/04/2018

Czesław Miłosz – Uma vida afortunada

Sua velhice coincidiu com os anos de colheita abundante.
Não houve terremotos, secas ou inundações.
Dir-se-ia que a mudança das estações ganhava em regularidade,
As estrelas se fortaleciam e o sol aumentava seu poder.
Mesmo em províncias remotas nenhuma guerra foi travada.
Gerações cresceram amistosas para com seus semelhantes.
A natureza racional do homem não era motivo de escárnio.

Foi amargo dizer adeus a um planeta tão renovado.
Ele tinha inveja e se envergonhava de todas as suas dúvidas,
Satisfeito que sua dilacerada memória desaparecesse com ele.
Dois dias depois de sua morte um furacão arrasou os litorais.
Fumaças surgiram de vulcões inativos há cem anos.
A lava se espalhou por florestas, vinhedos e cidades.
E a guerra começou com uma batalha nas ilhas.

Trad.: Nelson Santander a partir de uma versão em inglês do poema traduzida do polonês por Peter Dale Scott & Czeslaw Milosz

A Felicitous Life

His old age fell on years of abundant harvest.
There were no earthquakes, droughts, or floods.
It seemed as if the turning of the seasons gained in constancy,
Stars waxed strong and the sun increased its might.
Even in remote provinces no war was waged.
Generations grew up friendly to fellow men.
The rational nature of man was not a subject of derision.

It was bitter to say farewell to the earth so renewed.
He was envious and ashamed of his doubt,
Content that his lacerated memory would vanish with him.
Two days after his death a hurricane razed the coasts.
Smoke came from volcanoes inactive for a hundred years.
Lava spread over forests, vineyards, and towns.
And war began with a battle on the islands.

Pedro Salinas – [A tua forma de amar]

A tua forma de amar
é deixar-me que te queiras.
O sim com que te rendes
é o silêncio. Teus beijos
são oferecer-me os lábios
para que eu possa beija-los.
Nunca palavras, abraços,
me dirão que exististe,
que me quiseste: nunca.
Dizem-mo as folhas em branco,
mapas, augúrios, chamadas;
tu, não.
E fico abraçado a ti
sem perguntar-te, com receio
que não seja verdade
que tu vives e me ama.
E fico abraçado a ti
sem olhar, sem tocar-te.
Com receio de descobrir
com perguntas, com carícias,
essa solidão imensa
de apenas eu te amar.

De “La voz a ti debida” [39]

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO (com alterações na tradução): poema publicado no blog originalmente em 03/04/2018

Pedro Salinas – La voz a ti debida [39]

La forma de querer tú
es dejarme que te quiera.
El sí con que te me rindes
es el silencio. Tus besos
son ofrecerme los labios
para que los bese yo.
Jamás palabras, abrazos,
me dirán que tú existías,
que me quisiste: jamás.
Me lo dicen hojas blancas,
mapas, augurios, teléfonos;
tú, no.
Y estoy abrazado a ti
sin preguntarte, de miedo
a que no sea verdad
que tú vives y me quieres.
Y estoy abrazado a ti
sin mirar y sin tocarte.
No vaya a ser que descubra
con preguntas, con caricias,
esa soledad inmensa
de quererte sólo yo.

Linda Pastan – Por que seus poemas são tão sombrios?

Por que seus poemas são tão sombrios?

Não é a lua também sombria,
na maior parte do tempo?

E a página em branco
não parece inacabada

sem a mancha escura
das letras?

Quando Deus demandou a luz,
Ele não baniu a escuridão.

Em vez disso, Ele criou
o ébano e os corvos

e aquela pequena pinta
no lado esquerdo do seu rosto.

Ou você quis perguntar
“Por que você está triste com tanta frequência?”

Pergunte à lua.
Pergunte o que ela testemunhou.

Trad.: Nelson Santander

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Why Are Your Poems so Dark?

Isn’t the moon dark too,
most of the time?

And doesn’t the white page
seem unfinished

without the dark stain
of alphabets?

When God demanded light,
he didn’t banish darkness.

Instead he invented
ebony and crows

and that small mole
on your left cheekbone.

Or did you mean to ask
“Why are you sad so often?”

Ask the moon.
Ask what it has witnessed.

Manuel António Pina – Depois

Primeiro sabem-se as respostas.
As perguntas chegam depois,
como aves voltando a casa ao fim da tarde
e pousando, uma a uma, no coração
quando o coração já se recolheu
de perguntas e de respostas.

Que coração, no entanto, pode repousar
com o restolhar de asas no telhado?
A dúvida agita
os cortinados
e nos sítios mais íntimos da vida
acorda o passado.
Porquê, tão tardo, o passado?

Se ficou por saldar algo
com Deus ou com o Diabo
e se é o coração o saldo
porquê agora, Cobrança,
quando medo e esperança

se recolheram também sob
lembranças extenuadas?
Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas,
e de poços, e de portas entreabertas,
e sonham no escuro
as coisas acabadas.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 31/03/2018

Jorge Valdés Díaz-Vélez – Xochiquetzal

Xochiquetzal1

(Homenagem a Chuang-Tzu2)

Ontem sonhei contigo. Vestias uma
gabardine de pele, e por baixo nada.
Era outono e estavas ensopada
pela chuva; caminhavas em alguma

gare de Madrid indo para lugar
nenhum. Estancavas ocasionalmente
teus passos para sentires transluzente
tua pele resplandecer ao luar

de um espelho invisível em que havia
um homem que sonhava com uma mulher
e uma mulher seminua e bonita,

molhada de orvalho. Mas eu, todavia,
ainda pareço olhar-te suster
o fixo olhar daquela borboleta.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.:

1. Segundo este site, Xochiquetzal “é a representação do arquétipo da mulher jovem em pleno vigor sexual. É a divinização da amante, uma deusa essencialmente feminina e seu âmbito é o amor, a volúpia, a sensualidade, o desejo sexual e o prazer em geral.” Mas Xochiquetzal é também uma espécie de borboleta, a Mariposa Cometa Xochiquetzal (Pterourus multicaudata), nativa da América do Norte, muito bonita por seu tamanho e coloração amarela tigrada. No poema, o substantivo próprio pode ser compreendido em ambas as acepções.

2. O poema homenageia o grande mestre taoísta Chuang-Tzu que teria formulado o famoso argumento do sonho, que pode ser assim resumido: depois de caminhar muito durante o dia, Chuang-Tzu adormeceu debaixo de uma amoreira e, em um sono profundo, sonhou ser uma borboleta que passeava pelos lugares que ele acabara de percorrer. Quando acordou, todavia, propôs para si o seguinte dilema filosófico: “Quem sou eu? Sou Chuang-Tzu que sonhou ser uma borboleta ou sou uma borboleta sonhando que se transformou em Chuang-Tzu?” O texto é interpretado, em termos filosóficos, como uma parábola para o seguinte questionamento: o que é realidade e o que é ilusão?

Xochiquetzal

(Homenaje a Chuang-Tzu)

Anoche te soñé. Llevabas una
gabardina de piel, y abajo nada.
Era otoño y estabas empapada
de lluvia; caminabas en alguna

estación de Madrid hacia ninguna
parte. Detenías tus pasos cada
tanto para sentir azafranada
tu piel resplandecer ante la luna

de un espejo invisible donde había
un hombre que soñaba una mujer
y una mujer semidesnuda, hermosa,

mojada en el orvallo. Todavía
me parece mirarte sostener
la mirada de aquella mariposa.

Laia Noguera Clofent – [Amo a vida simples]

Amo a vida simples,
sentar-me à entrada
para ver o ir e vir das pessoas,
como se move um pardal,
como se inclina a tarde
nas casas do corpo.

Bem sei que morrerei
muito antes de morrerem
as árvores que amo.

Mas isso não me preocupa,
porque no instante
em que se me romper o último fio
serei apenas aquela mulher
que se sentava à entrada
para simplesmente olhar
e ser folha e raiz.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO (com pequenas modificações na tradução): poema publicado no blog originalmente em 29/03/2018

[Amo la vida pequeña]

Amo la vida pequeña,
sentarse en la entrada
para ver cómo pasa la gente,
cómo se mueve un gorrión,
cómo se inclina la tarde
en las casas del cuerpo.

Ya sé que moriré
mucho antes de que hayan muerto
los árboles que quiero.

Pero no me preocupa nada,
porque en el instante
en que se me rompa el último hilo
seré sólo aquella mujer
que se sentaba en la entrada
para mirar simplemente
y ser hoja y raíz.

Nisha Atalie – Fazer/Não fazer

Eu cheiro o Lírio Tigre em flor,
duas línguas saltando
de uma boca.

Eu enveneno o rio involuntariamente.
Marcho nos caminho demarcados.

Eu corto a montanha, seu corpo e sua boca escancarados.
Recolho a água da chuva em um carrinho de mão.

Eu forro o ventre da baleia com presentes até
que eles dilacerem seu estômago.
Eu rego os morangos.

Novamente eu encho meu tanque com coisas mortas,
gerações girando juntas até brilhar.
Alimento os patos com alface fresca.

Eu manejo o esquilo morto
na estrada, marcando o momento
em que a criatura se torna carne.

Aceito que meu amor é uma
flor venenosa, rotineiramente fatal.

Eu calculo a força do
amor em cada morte reluzente.

O tempo todo nesta terra, nas
florestas profundas, os verdes elétricos e
a lama ainda úmida se contorcem com vida.

A lagoa borbulha e murmura.
Todos aqui sabem tremer
quando me vêem chegando.

As mangas chegam intactas
ao supermercado.
Os lobos devem começar a correr.

Trad.: Nelson Santander

Aqui: Do/Do Not

Sobre o poema: “Eu escrevi “Fazer/Não Fazer” como parte da luta contra a impotência que muitas vezes sinto ao viver em um momento de devastação e perdas. Não importa o quanto mudemos nossos comportamentos individuais, permanecemos presos e inseridos em um sistema que trata a vida humana e não-humana como descartável. Embora eu acredite que um mundo construído com base na prosperidade mútua de todos os seres vivos seja possível, ele parece distante na vida cotidiana, onde os cuidados e a proteção estão muitas vezes entrelaçados com a exploração e a dominação. Nestas condições, o impulso de amar e nutrir é tão insuficiente quanto absolutamente necessário”.Nisha Atalie

Do/Do Not

I sniff the blooming tiger lily,
two tongues sprung open
from one mouth.

I poison the river unintentionally.
I walk on the designated paths.

I splice the mountain, its body and mouth gaping.
I collect rainwater in a wheelbarrow.

I line the whale’s belly with gifts until
they rupture its stomach.
I water the strawberries.

Again I fill my gas tank with dead things,
generations spun together until shiny.
I feed the ducks fresh lettuce.

I maneuver the dead squirrel
on the road, mark the moment
when creature becomes meat.

I accept that my love is a
poisonous flower, routinely fatal.

I calculate the force of
loving in each glittering death.

All day on this land, in the
deep forest, the electric greens and
still-wet mud writhe with life.

The pond gurgles and whispers.
Everyone here knows to shudder
when they see me coming.

The mangos arrive unbruised
at the grocery store.
The wolves should start running.